Michelle: A mulher de Obama

28 de fevereiro de 2009

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

Compartilhe:

As aparências nem sempre traduzem a verdade histórica, razão pela qual muitas vezes a versão se sobrepõe à efetiva compreensão dos fatos. O casal Barack Obama  traduz, aparentemente, a nova versão da vida política americana, mas não exatamente a verdadeira questão imposta pelos fatos históricos.
Michelle, a Primeira Dama, apesar do nome de origem francesa, é descendente de negros escravos do sul dos Estados Unidos, e conviveu com a história do seu país a partir do próprio sofrimento. Barack Hussein Obama, o Presidente, ao contrário, é descendente de negros africanos do Quênia e de brancos americanos, criado em longínquo estado perdido no Pacífico. Ele estudou na Universidade de Harvard, referência dos padrões de qualidade da educação americana, onde também se doutorara o pai, negro queniano, dentro dos princípios da elite missioneira americana calvinista (protestante), na visão capitalista da economia, republicana e federativa, como pressupostos de funcionamento democrático do Estado.
Barack Obama é a saída e o resultado desta sociedade. Michelle Obama, todavia, como tetraneta de escravos, diferentemente do marido, não tem brancos pelo caminho. Ela representa o impasse na contradição entre o trabalho sem frutos e a frutificação concentrada da prosperidade. Não há como desconhecer que a sua história é  o efeito lídimo e puro dos sofrimentos do povo negro que sustentou a prosperidade do sul agrícola dos Estados Unidos (antes mesmo da independência) e que viabilizou a industrialização têxtil e alimentícia do novo país. Barack Obama não representa esta história, mas é a esperança de uma saída da história da prosperidade e da cooptação positiva daqueles que sofreram os efeitos do espírito missioneiro.
No sul agrícola nasceu o Partido Democrata, que, com seus grandes proprietários e juristas, pensaram e fizeram a independência, quando os escravos negros serviram apenas para sustentar a combatividade da Guerra Civil contra o Partido Republicano do norte, que prosperara a partir da industrialização da produção agrícola no sul. A audácia, coragem e perspicácia do Presidente Abraham Lincoln, republicano, venceu a Guerra de Secessão (1861 a 1865) e submeteu os oligarcas escravocratas a um projeto modernizador e progressista, o que lhe valeu um assassinato covarde, na esperança de trazer para o cômputo da grande nação o povo trabalhador do sul. Neste sentido, o Partido Republicano deu continuidade ao processo de democratização da grande nação americana, inaugurada pelo Partido Democrata (e escravocrata) que ainda sobrevivia no sul. Assim, as primeiras emendas modernizadoras evoluíram da proposta republicana, com a resistência dos democratas. A décima terceira emenda constitucional (1865) suprimiu a escravidão; a décima quarta (1868) garantiu a igualdade jurídica dos cidadãos e a décima quinta (1870) suspendeu os critérios raciais que limitavam os direitos políticos.
No entanto, a grande industrialização do norte provocou a formação dos primeiros monopólios e lhe subtraiu o projeto de abertura política, devolvendo aos democratas a proposta progressista voltada para a inclusão social. Em 1920, a décima nona emenda constitucional estendeu às mulheres o direito de voto, que no Brasil foi alcançado em 1932, quando parte significativa da população negra já votava. Lyndon Johnson, democrata que paradoxalmente sucedeu ao ícone da democracia americana John Kennedy, foi quem promulgou, em 1963, o Ato dos Direitos Civis, que sufocou as leis Jim Crow e que permitia a segregação racial em municípios e estados em espaços públicos, e, em 1968, o Ato dos Direitos Eleitorais dos negros, eliminando os movimentos burocráticos que a pretexto da alfabetização, deixavam os descendentes de antigos escravos fora do processo eleitoral.
Michelle descende deste mundo, do espaço escravista do trabalho, e a sua presença política é a consequência histórica das lutas pelos direitos civis dos negros, que até 1960 também não votavam na grande federação. O Presidente Barack Obama não evoluiu nesta história, apesar de sua aproximação com pastores negros americanos, que lideraram e contribuíram para a edição destas leis. Michelle, todavia, resulta da força discursiva de Luther King, que tinha um sonho para a América, que não exatamente estava no seu incito “espírito de missão”; de Malcom X, que pagou o preço pela agressividade verbal, ou mesmo das ações radicais dos Panteras Negras ou da conversão inesperada do grande campeão do box americano Cassius Clay, que se converteu ao islamismo (faço o ring, não faço a guerra, dizia).
Este é o drama político que se coloca para a grande nação americana: Barack retomará o espírito missioneiro das diversidades dos programas do Exército da Salvação e o american fields, buscando nos povos do mundo a conversão profética da democracia calvinista, ou ouvirá de sua esposa Michelle, herdeira da carga dos lamentos daqueles que ainda em terceira geração sofriam no eito do cultivo do chá, para fortalecer suas exportações, e dos plantations de algodão, para alimentar a indústria têxtil. Aqueles lânguidos cânticos que soavam da escravidão, aquelas cantigas de banzo, para usar a palavra que exprimia o mesmo estado de espírito dos negros brasileiros, que embalavam os netos dos que forjaram os direitos civis e políticos conquistados pelos negros, ou os duros discursos que propunham um “novo sonho” não representam a proposta pioneira de construção da confederação americana nem as grandes corporações que fizeram a América moderna.
Estas elites politicamente pioneiras não são as precursoras da música lânguida do jazz e do soul de New Orleans, que sucumbiu nas prioridades do Iraque. Este é o novo dilema americano: espiritualmente (ou culturalmente), para onde vão os Obamas? Para a recuperação do espírito de missão, que construiu o grande capitalismo com seus oligopólios e as suas frentes de guerra, uma determinância na sua história? Ou se abrirão para as dores dos ressentimentos de seus corações que, com as próprias e calejadas mãos, cavaram o solo da prosperidade, uma proposta recorrente de suas vidas? Aliás, o termo recorrente demonstra exatamente que o passado ainda está presente, principalmente se considerarmos que os cômputos eleitorais ainda demonstram que as regiões em que Barack Obama perdeu são, se não absolutamente, os estados confederados e escravistas, que fizeram uma guerra civil e combateram os projetos de Abraham Lincoln, principalmente a libertação dos escravos.
Finalmente, como repete o democrata Obama, “nós podemos”. Se for a saída e o resultado que se encontrou nesta sociedade, significa um pacto de reversão histórica, como foram as leis de Lincoln, o republicano, e as Lei dos Direitos Civis e do Direito de Voto, dos democratas, ou vamos conviver com novos padrões de cooptação das dissidências da complexa rede imperial? Estas são as angústias do mundo inteiro, mas principalmente as esperanças das vítimas da crise econômica e do dilema que afetou a histórica nação americana do norte, na expectativa de se recompor, não um assistencial New Deal (democrata), mas um novo pacto de convivência mútua com a riqueza, desembaraçando-se da complexa rede de incompreensão que tomou o grande país do Norte.