Edição

Ministro Celso Mello – Em decisão histórica, defende a liberdade de imprensa

5 de setembro de 2005

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PETIÇÃO 3.486-4 DISTRITO FEDERAL

EMENTA: LIBERDADE DE IMPRENSA (CF, ART. 5º, IV, c/c O ART. 220). JORNALISTAS. DIREITO DE CRÍTICA. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL CUJO SUPORTE LEGITIMADOR REPOUSA NO PLURALISMO POLÍTICO (CF, ART. 1º, V), QUE REPRESENTA UM DOS FUNDAMENTOS INERENTES AO REGIME DEMOCRÁTICO. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÍTICA INSPIRADO POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO: UMA PRÁTICA INESTIMÁVEL DE LIBERDADE A SER PRESERVADA CONTRA ENSAIOS AUTORITÁRIOS DE REPRESSÃO PENAL. A CRÍTICA JORNALÍSTICA E AS AUTORIDADES PÚBLICAS. A ARENA POLÍTICA: UM ESPAÇO DE DISSENSO POR EXCELÊNCIA.
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Decisão

O ora requerente postula que seja instaurado procedimento penal contra jornalistas da revista Veja (edição de 03/08/2005, págs. 75 e 125), por vislumbrar tenham eles praticado, no exercício de sua atividade profissional (fls. 06/07), “crime de subversão contra a segurança nacional, que está colocando em perigo o regime representativo e democrático brasileiro, a Federação e o Estado de Direito e crime contra a pessoa dos Chefes dos Poderes da União (…)” (fls. 02).

Observo, no entanto, que as pessoas indicadas na petição de fls. 02/05 não estão sujeitas à jurisdição imediata do Supremo Tribunal Federal, razão pela qual nada justifica a tramitação originária, perante esta Suprema Corte, do procedimento em causa. Cabe assinalar que a competência originária do Supremo Tribunal Federal, por revestir-se de extração eminentemente constitucional, sujeita-se, por tal razão, a regime de direito estrito, o que impede venha ela a ser estendida a situações não contempladas no rol exaustivo inscrito no art. 102, inciso I, da Constituição da República, consoante adverte a doutrina (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2/217, 1992, Saraiva) e proclama a jurisprudência desta própria Corte (RTJ 43/129 – RTJ 44/563 – RTJ 50/72 – RTJ 53/776 – RTJ 159/28):

“(…) A competência do Supremo Tribunal Federal -cujos fundamentos repousam na Constituição da República -submete-se a regime de direito estrito A competência originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida – não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os limites fixados, em numerus clausus, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Constituição da República. Precedentes. (…)”.(RTJ 171/101-102, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

A ratio subjacente a esse entendimento, que acentua o caráter absolutamente estrito da competência constitucional do Supremo Tribunal Federal, vincula-se à necessidade de inibir indevidas ampliações descaracterizadoras da esfera de atribuições institucionais desta Suprema Corte, conforme ressaltou, a propósito do tema em questão, em voto vencedor, o saudoso Ministro ADALÍCIO NOGUEIRA (RTJ 39/56-59, 57).

Desse modo, os fundamentos ora expostos levam-me a reconhecer a impossibilidade de tramitação originária deste procedimento perante o Supremo Tribunal Federal.

Não obstante as considerações que venho de fazer no sentido da plena incognoscibilidade do pleito ora formulado, impõe-se observar que o teor da petição em referência, longe de evidenciar supostas práticas delituosas contra a segurança nacional, alegadamente cometidas pelos jornalistas mencionados, traduz, na realidade, o exercício concreto, por esses profissionais da imprensa, da liberdade de expressão e de crítica, cujo fundamento reside no próprio texto da Constituição da República, que assegura ao jornalista o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e exposta em tom contundente e sarcástico, contra quaisquer pessoas ou autoridades.

Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão penal ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse público e decorra da prática legítima, como sucede na espécie, de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional (CF, art. 5º, IV, c/c o art. 220).

Não se pode ignorar que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.

A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer parcela de autoridade no âmbito do Estado, pois o interesse social, fundado na necessidade de preservação dos limites ético-jurídicos que devem pautar a prática da função pública, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar os detentores do poder.

Uma vez dela ausente o animus injuriandi vel diffamandi, tal como ressalta o magistério doutrinário (CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, “A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade”, p. 100/101, item n. 4.2.4, 2001, Atlas; VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR,

“A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 88/89, 1997, Editora FTD; RENÉ ARIEL DOTTI, “Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação”, p. 207/210, item n. 33, 1980, RT, v.g.), a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade.

Lapidar, sob tal aspecto, a decisão emanada do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consubstanciada em acórdão assim ementado:

“Os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas, sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma”. (JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO CESAR).

Vê-se, pois, que a crítica jornalística, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas, com alto grau de responsabilidade na condução dos negócios de Estado, não traduz nem se reduz, em sua expressão concreta, à dimensão de abuso da liberdade de imprensa, não se revelando suscetível, por isso mesmo, em situações de caráter ordinário, à possibilidade de sofrer qualquer repressão estatal ou de se expor a qualquer reação hostil do ordenamento positivo.

É certo que o direito de crítica não assume caráter absoluto, eis que inexistem, em nosso sistema constitucional, como reiteradamente proclamado por esta Suprema Corte (RTJ 173/805-810, 807-808, v.g.), direitos e garantias revestidos de natureza absoluta.

Não é menos exato afirmar-se, no entanto, que o direito de crítica encontra suporte legitimador no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apóia, constitucionalmente,o próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, V).

Na realidade, e como assinalado por VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR (“A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 87/88, 1997, Editora FTD), o reconhecimento da legitimidade do direito de crítica, tal como sucede no ordenamento jurídico brasileiro, qualifica-se como “pressuposto do sistema democrático”, constituindo-se, por efeito de sua natureza mesma, em verdadeira “garantia institucional da opinião pública”:

“(…) o direito de crítica em nenhuma circunstância é ilimitável, porém adquire um caráter preferencial, desde que a crítica veiculada se refira a assunto de interesse geral, ou que tenha relevância pública, e guarde pertinência com o objeto da notícia, pois tais aspectos é que fazem a importância da crítica na formação da opinião pública”.

Não foi por outra razão que o Tribunal Constitucional espanhol, ao proferir as Sentenças nº 6/1981 (Rel. Juiz FRANCISCO RUBIO LLORENTE), nº 12/1982 (Rel. Juiz LUIS DÍEZ-PICAZO), nº 104/1986 (Rel. Juiz FRANCISCO TOMÁS Y VALIENTE) e nº 171/1990 (Rel. Juiz BRAVO-FERRER), pôs em destaque a necessidade essencial de preservar-se a prática da liberdade de informação, inclusive o direito de crítica que dela emana, como um dos suportes axiológicos que informam e que conferem legitimação material à própria concepção do regime democrático.

É relevante observar, aqui, que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), em mais de uma ocasião, também advertiu que a limitação do direito à informação e do direito (dever) de informar, mediante (inadmissível) redução de sua prática “ao relato puro, objetivo e asséptico de fatos, não se mostra constitucionalmente aceitável nem compatível com o pluralismo, a tolerância (…), sem os quais não há sociedade democrática (…)” (Caso Handyside, Sentença do TEDH, de 07/12/1976).

Essa mesma Corte Européia de Direitos Humanos, quando do julgamento do Caso Lingens (Sentença de 08/07/1986), após assinalar que “a divergência subjetiva de opiniões compõe a estrutura mesma do aspecto institucional do direito à informação”, acentua que “a imprensa tem a incumbência, por ser essa a sua missão, de publicar informações e idéias sobre as questões que se discutem no terreno político e em outros setores de interesse público (…)”, vindo a concluir, em tal decisão, não ser aceitável a visão daqueles que pretendem negar, à imprensa, o direito de interpretar as informações e de expender as críticas pertinentes.

Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento. Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembléia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático.

A livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado.

É preciso advertir, bem por isso, notadamente quando se busca promover, como no caso, a repressão penal à crítica jornalística, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social.

Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento, como precedentemente assinalado, representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento. Isso, porque “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, “o mais precioso privilégio dos cidadãos…” (“Crença na Constituição”, p. 63, 1970, Forense).

Vale registrar, finalmente, por relevante, fragmento expressivo da obra do ilustre magistrado federal SÉRGIO FERNANDO MORO (“Jurisdição Constitucional como Democracia”, p. 48, item n. 1.1.5.5, 2004, RT), no qual põe em destaque um landmark ruling da Suprema Corte norte-americana, proferida no caso New York Times v.Sullivan (1964), a propósito do tratamento que esse Alto Tribunal dispensa à garantia constitucional da liberdade de expressão:

“A Corte entendeu que a liberdade de expressão em assuntos públicos deveria de todo modo ser preservada. Estabeleceu que a conduta do jornal estava protegida pela liberdade de expressão, salvo se provado que a matéria falsa tinha sido publicada maliciosamente ou com desconsideração negligente em relação à verdade. Diz o voto condutor do Juiz William Brennan:

‘(…) o debate de assuntos públicos deve ser sem inibições, robusto, amplo, e pode incluir ataques veementes, cáusticos e, algumas vezes, desagradáveis ao governo e às autoridades governamentais.’ ”

Concluo a minha decisão: as razões que venho de expor levam-me a reconhecer que a pretensão deduzida pela parte requerente não se mostra compatível com o modelo consagrado pela Constituição da República, considerando-se, para esse efeito, as opiniões jornalísticas ora questionadas (Veja, edição de 03/08/2005), cujo conteúdo traduz – como precedentemente assinalei – legítima expressão de uma liberdade pública fundada no direito constitucional de crítica.

Sendo assim, presentes tais razões, e tendo em vista que este procedimento foi impropriamente instaurado perante o Supremo Tribunal Federal, não conheço da medida proposta pelo Advogado ora requerente.

Arquivem-se os presentes autos (RISTF, art. 21, § 1º), incidindo, na espécie, para tal fim, a orientação jurisprudencial firmada por esta Suprema Corte (Pet 2.653-AgR/AP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 24.261/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – AO 175-AgR-ED/RN, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, v.g.).

Publique-se.
Brasília, 22 de agosto de 2005.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator

NOTA DO EDITOR _____________________________________________

Como jornalista e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa e Defesa dos Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, divulgamos com júbilo a importante decisão do Ministro Celso Mello, que constitui uma elucidativa aula daecidadania e liberdade de imprensa, como exemplifica a pérola deste parágrafo:

“A Constituição da República assegura ao jornalista, o direito de expender crítica, ainda que desfavorável e exposta em tom contundente e sarcástico, contra quaisquer pessoas e autoridades”.

O editor