A partir da esquerda, o Vice-Secretário do Conselho Superior do MPSP, Antonio Calil Filho; o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão; o Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo; a Promotora do MPSP Fabíola Sucasas Negrão Covas; o Subprocurador-Geral de Justiça de Políticas Criminais do MPSP, José Carlos Cosenzo; a Diretora de Redação da Revista JC e Vice-Presidente do Instituto Justiça e Cidadania, Erika Siebler Branco; e o Promotor de Justiça Zenon Lotufo Tertius, substituindo o Diretor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, e no telão, a Promotora do MPRN Érica Canuto
Inovações possibilitam que medidas protetivas de urgência sejam pleiteadas pelas vítimas de violência doméstica mesmo que não exista ação criminal contra o agressor
A cada seis horas uma mulher morre no Brasil em razão de seu gênero, segundo o Monitor da Violência. Esse cálculo tem base no total de 1.400 mulheres vítimas de feminicídio registradas em 2022. Somos o quinto país com maior número de mortes de mulheres, de acordo com dados do Mapa da Violência 2015. Ao mesmo tempo, nossa Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) uma das três normas mais avançadas do mundo no âmbito dos crimes de violência doméstica, entre os 90 países que têm legislação sobre o tema.
Neste ano, a Lei Maria da Penha passou por uma edição com vistas a ampliar as garantias de proteção às mulheres. Foi para debater essas alterações que a Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e a Revista Justiça & Cidadania se uniram para realizar o seminário “As recentes alterações das Medidas Protetivas na Lei Maria da Penha”, em 19 de maio, no auditório do Conselho Superior do MPSP, com participação híbrida.
O foco dos debates foi a Lei nº 14.550/2023, sancionada em 19 de abril, que altera a Lei Maria da Penha e dispõe sobre medidas protetivas de urgência, estabelecendo que a causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação da Lei. O propósito é transpor alguns obstáculos interpostos às providências judiciais que resguardam as vítimas de seus agressores.
O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, destacou que cerca de 70% dos processos nas promotorias criminais do estado envolvem a violência doméstica e familiar. “É um importante tema, que merece a discussão por parte dos palestrantes, nomes de envergadura que estão aqui nesta manhã”, disse ele na mesa de abertura, da qual também participaram a Diretora de Redação da Revista JC e Vice-Presidente do Instituto Justiça e Cidadania, Erika Siebler Branco; o Subprocurador-Geral de Justiça de Políticas Criminais do MPSP, José Carlos Cosenzo; o Vice-Secretário do Conselho Superior do MPSP, Antonio Calil Filho; e o Promotor de Justiça Zenon Lotufo Tertius.
Novo paradigma – A alteração na legislação decorre de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Recurso Especial nº 1.419.421/GO, em abril de 2014, sob relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão. Ficou sedimentado o entendimento de que as medidas protetivas de urgência não dependem da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Portanto, as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma, exista ou não um processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.
“Naquela ocasião, nós julgamos no âmbito do Direito Privado, mas tive que fazer uma análise de vários aspectos, incluindo os de ordem criminal. Percebemos que aquele processo transbordava para o âmbito da sociedade, trazendo consequências tanto de ordem econômica, com a retirada da mulher do mercado de trabalho, quanto psicológicas, que afetam a criação dos filhos”, esclareceu em sua participação o Ministro Luis Felipe Salomão, atual Corregedor Nacional de Justiça, que recebeu na ocasião uma homenagem do MPSP.
Na opinião do Subprocurador-Geral José Carlos Cosenzo, a atuação do Ministro Salomão como relator dessa decisão do STJ criou um novo paradigma, aperfeiçoando a legislação. “A violência contra as mulheres está presente em todos os segmentos. Infelizmente também está dentro das instituições. Não sei se um dia isso terá fim, mas essas mudanças na lei me fazem acreditar que vamos caminhando neste sentido”, disse. “Vejo com muita alegria a inserção do Conselho Superior do Ministério Público no debate de uma questão tão importante, que são as alterações da Lei Maria da Penha. Este é um instrumento fundamental para a defesa não só da mulheres, mas da família”, acrescentou o Procurador Antonio Calil Filho.
Presunção de veracidade – Na presidência da mesa de debates, a Promotora Fabíola Sucasas Negrão Covas, Coordenadora do Núcleo de Gênero do MPSP, ressaltou que os promotores de enfrentamento à violência comemoraram a mudança na legislação, pois mesmo os juízes responsáveis pelas varas de enfrentamento à violência contra a mulher muitas vezes não concordavam com a tese das medidas protetivas autônomas. “Eles não entendiam que é preciso ouvir sempre a mulher e preservar a autonomia desta, inclusive nessa decisão”, disse ela, que acrescentou: “A desigualdade de gênero muitas vezes está no pensamento dos julgadores, que precisam compreender que a perspectiva de gênero pode nortear o olhar que se deve dar à Lei Maria da Penha como ação afirmativa”.
Coordenadora do Núcleo de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar (NAMVID) do Ministério Público do Rio Grande do Norte, a Promotora de Justiça Érica Canuto ressaltou que os avanços na jurisprudência e na legislação estabeleceram um conteúdo normativo que vai direcionar diversas ações. “Agora temos uma lei que fala expressamente que esta natureza das medidas protetivas não é criminal, não depende de processo, da viabilidade de uma ação penal, de um inquérito, de uma queixa-crime ou do prosseguimento desta ação penal por parte da vítima”, enfatizou a promotora.
“A doutrina da proteção integral se caracteriza, primeiramente, por definir que toda violência contra a mulher no contexto doméstico é uma grave violação dos direitos humanos. Significa dizer que o Direito Penal não é suficiente para abarcar essa perspectiva de proteção”, acrescentou Érica Canuto, que disse ainda: “Não se pode ser econômico, nem restritivo, ao analisar pedidos de medida protetiva, exigindo excessivas comprovações de que ocorreu o crime, quando a jurisprudência já está acertada na presunção de veracidade da palavra da vítima. O segundo princípio, da presunção da vulnerabilidade, o STJ deixou muito claro que esta não é a condição de uma ou de outra mulher, mas uma regra generalizante para todas as que estão na mesma situação de violência doméstica e familiar”.
Proteção integral – A Juíza de Direito Maria Domitila Prado Manssur, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), lembrou que a Lei Maria da Penha está inserida em um sistema protetivo global, mas não estava sendo reconhecida dessa forma. “[A norma] não pode, de forma alguma, ser interpretada de maneira restritiva. Temos que analisar qual é o maior risco: conceder ou não a medida protetiva? Claro que o maior risco é não conceder”. Ela também destacou outra questão importante na inovação: “O legislador não se preocupou somente com a mulher, mas com o dependente, que, agora, é reconhecido também como vítima direta”.
O Promotor de Justiça Thiago André Pierobom de Ávila, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, lembrou que a Lei Maria da Penha tem sua origem em anteprojeto redigido no âmbito de um consórcio de organizações não-governamentais de movimentos feministas. “Até hoje, todo o esforço do consórcio foi o de nunca alterar a lei. Tivemos várias alterações de 2017 para cá, mas nenhuma delas com apoio do consórcio. Esta é a primeira vez que elas vêm a público manifestar seu apoio a uma mudança na Lei. Isso diz muito sobre a legitimidade da demanda que está por trás dessa alteração legislativa”, disse.
Estrada aberta – Encerrando o debate, a Promotora de Justiça do MPSP Valéria Diez Scarance Fernandes declarou que este é o momento em que a Lei Maria da Penha precisa existir de fato. “Ela existe para poucas mulheres e em poucos lugares do nosso País. A Lei Maria da Penha construiu um castelo maravilhoso, mas não trouxe o caminho das pedras. Não traz procedimento, não nos ensina como agir, não diz que a medida protetiva é mandamental. Não diz que nós temos contraditório diferido ou postergado. Ela diz o que nós não podemos fazer, mas não diz o que nós devemos fazer. Com todo o respeito que tenho pela norma, a Lei Maria da Penha precisa se inserir estrategicamente em um sistema jurídico. Ela não é um universo à parte, precisa ser pensada para ser efetiva dentro da estrutura da organização judiciária que temos hoje”, pontuou.
Seja como for, escreveu o MPSP em sua apresentação do evento: “A estrada aberta pelo Ministro Luis Felipe Salomão abriu espaço para a louvável postura do legislador, que valorosamente se pautou pelas vozes daquelas que são diretamente atingidas pela pretendida mudança da norma: as próprias mulheres”.