O processo de execução fiscal, um dos mais morosos no País, poderá ganhar nova face caso sejam aprovados quatro projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados. A expectativa é de que as proposições sejam apreciadas ainda neste ano. No entanto, no que depender da Advocacia, os textos não sairão do papel. Na avaliação da categoria, as propostas ampliam em demasia as atribuições do Fisco no tocante à realização da cobrança tributária. Um dos projetos, que tramita com o número 5.080/09, institui a execução fiscal no âmbito administrativo. As demais proposições dispõem sobre as formas de cobrança da Dívida Ativa (PL 5.081/09), a possibilidade de transação tributária (PL 5.082/09) e a responsabilização de sócios e gestores por eventuais débitos da empresa na qual trabalham (PLP 469/09). Todos os textos são de autoria do Executivo.
A posição da Advocacia é endossada pelo jurista Ives Gandra Martins. Em relação ao PL 5.080/09, ele disse à “Revista Justiça & Cidadania” que o texto parte do princípio da legalidade da cobrança prévia. Nesse sentido, institui o Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes — um banco de dados sobre os bens dos devedores, a ser administrado pelo Ministério da Fazenda e atualizado com informações da Secretaria da Receita Federal do Brasil, dentre outros órgãos. O projeto também prevê a constrição de bens, inclusive de valores depositados em contas bancárias, diretamente pela Fazenda Pública; assim como a realização do ajuizamento da execução fiscal por esse mesmo órgão.
Gandra critica a proposta. “Querem fazer tudo no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Quem pode dizer se determinada cobrança é legal, ou não, é o Judiciário”, afirmou o Jurista, destacando que o projeto não é claro quanto a um eventual ressarcimento ao contribuinte no caso de a cobrança ser declarada ilegal posteriormente. Ele citou como exemplo um imóvel penhorado, cuja avaliação tenha sido de um R$1 milhão, mas vendido por R$300 mil — valor muito abaixo do mercado. Nesse caso, o contribuinte receberá o valor de venda do bem.
Já o PL 5.081/99 fixa os mecanismos para a cobrança dos créditos inscritos em Dívida Ativa mediante a regulamentação da prestação de garantias extrajudiciais, da oferta de bens imóveis em pagamento e do parcelamento e pagamento à vista de dívida de pequeno valor.
A proposta 5.082/09, por sua vez, visa a estabelecer as regras para a transação tributária. Nesse tocante, o texto prevê quatro hipóteses em que tal medida seria possível: durante o processo judicial; em insolvência civil, recuperação judicial e falência; na recuperação tributária; ou no âmbito administrativo por adesão. Na avaliação de Gandra, a filosofia da proposta não é ruim, mas a sistemática prevista pode ensejar questionamentos na Justiça. O Jurista explicou que, pelo texto, a transação é conduzida pelo procurador. Acontece que todo ato administrativo deve estar vinculado a uma lei. “Quando cada procurador faz a transação como quiser, isso pode ser contestado no Judiciário”, afirmou.
Outro projeto, o de Lei Complementar 469/09, também foi criticado por Gandra. Sob a justificativa de combater a sonegação fiscal, a proposta prevê a responsabilização de sócios e gerentes por débitos de pessoas jurídicas, assim como dos administradores ou gestores, ainda que não sócios, por tributos não pagos pela empresa. Esses dirigentes seriam responsabilizados de maneira subsidiária — ou seja, depois de esgotadas as possibilidades de cobrar o débito das empresas — quando comprovado que não agiram com diligência; autorizaram a venda ou a entrega em garantia de bens da companhia sem as devidas provisões para pagamento de tributos; ou agiram em desacordo com o mandato, o contrato social ou estatuto e em infração à lei. “O PLP aumenta o rol de pessoas que podem ser responsabilizadas, no entanto, algumas delas não têm nada a ver. O projeto leva as pessoas a não quererem gerenciar mais nada”, criticou o Jurista.
Os projetos foram elaborados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ainda sob o comando de Luís Inácio Lucena Adams — hoje, Advogado-Geral da União. O Ministro buscou trabalhar em conjunto com a Magistratura federal na construção das propostas, ao realizar, à época, audiências públicas sobre as proposições. Ele dialogou com representantes do Conselho da Justiça Federal (CJF) e da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Mesmo estando atualmente à frente da Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministro continua lutando pela aprovação do projeto. Ele vem participando ativamente de eventos e audiências sobre os projetos de lei, esclarecendo dúvidas e as principais alterações em relação ao sistema atual. Neste ano, Adams voltou ao CJF para explicar os textos já em curso no Legislativo, como também compareceu à reunião no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada para tratar dessa matéria.
Na ocasião, o Presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, decidiu criar uma comissão para estudar os projetos, depois de vários conselheiros da entidade terem se posicionado totalmente contrários aos textos. A posição inicial dos integrantes da Ordem prevaleceu. No último dia 30 de abril, Cavalcante encaminhou ao Presidente do CJF, Ministro Cesar Asfor Rocha, manifestação no sentido de rejeitar integralmente os quatro projetos de lei. Cavalcante destacou no documento que a entidade tem assento e voz no Conselho, que voltou a apreciar os projetos. E explicou que decidiu rechaçar as proposições porque a entidade as considerou autoritárias e atentatórias aos direitos do cidadão. Atitude parecida já havia tomado a Seção paulista da OAB. Em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria, Fecomércio e Associação Comercial de São Paulo, a seccional entregou ao Presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), em fevereiro último, parecer repudiando o conjunto de projetos.
As propostas, de fato, são polêmicas. Adams, no entanto, as justifica. Segundo dados do Ministério da Justiça, as ações de execução fiscal representam 52% do contencioso no Brasil. O número de processos de cobrança em curso no País já teria ultrapassado à casa dos 25 milhões. Além disso, somente os créditos revertidos em dívida ativa em favor do Governo Federal somariam, atualmente, R$890 bilhões. Na justificativa das propostas, o Executivo informa que menos de 20% dos novos processos de execução fiscal distribuídos em cada ano tem a correspondente conclusão nos processos judiciais em curso, o que produz um crescimento geométrico do estoque. Em 2005, a taxa média de encerramento de controvérsias em relação às novas execuções fiscais ajuizadas era inferior a 50% e a taxa de congestionamento médio na primeira instância da Justiça era de 80%.
Com essa demanda, a demora não surpreende. No Judiciário, uma ação de cobrança fiscal leva em média 12 anos para ser concluída. Atualmente, os procedimentos estão regulados na Lei 6.830, de 1980. Pela norma, todo processo, desde o seu início, com a citação do contribuinte, até a sua conclusão, com a arrematação dos bens e a satisfação do crédito, tem de ser conduzido por um juiz. “Tal sistemática, pela alta dose de formalidade de que se reveste o processo judicial, apresenta-se como um sistema altamente moroso, caro e de baixa eficiência”, diz a justificativa dos projetos. No âmbito da PGFN, por sua vez, a ação pode levar até quatro anos para ser concluída. Por esse motivo, os quatro projetos de lei visam a fortalecer a cobrança administrativa.
Independentemente de serem polêmicos ou mesmo da aprovação deles, no entanto, é consenso entre os próprios membros do Poder Judiciário a necessidade de se retirar da esfera judicial procedimentos de modo a tornar a cobrança mais ágil. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, recomendou aos Tribunais de Justiça que editem ato normativo que regulamente a possibilidade de protesto extrajudicial da certidão da Dívida Ativa por parte da Fazenda Pública. A medida foi aprovada em abril, em decorrência de dois pedidos de providência protocolados pelas Corregedorias-Gerais de Justiça do Rio de Janeiro e Goiás que solicitavam alternativas que pudessem “viabilizar a utilização de meios de cobrança que se mostrassem seguros e não dependessem da estrutura do Poder Judiciário”. De certa forma, a medida poderá viabilizar também o cumprimento da Meta 3 do Judiciário, estabelecida pelo Conselho em fevereiro deste ano, que prevê a redução em 20% do acervo de execuções fiscais.
Adams destacou a importância de se desburocratizar a execução fiscal, seja com a aprovação dos projetos ou de medidas como a que foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça. “Todos nós somos responsáveis pela dívida pública e sem uma interlocução entre os Poderes, que ainda é difícil, continuaremos repetindo ações que não se interrelacionam e, por consequência, não se efetivam em soluções para esse problema”, disse o Advogado-Geral da União, ao participar de evento recente, promovido pelo CNJ sobre a Meta 3.