Mulheres e mercado de trabalho: Pandemia e desigualdade de gênero

8 de junho de 2020

Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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Com mais de 200 mil casos, a pandemia do coronavírus (covid-19) tem se agravado no Brasil, com efeitos que transcendem os desafios relacionados à emergência de saúde pública, atingindo outros âmbitos como a economia, a política, o Direito e o mundo do trabalho.

A emergência de saúde trouxe à tona a necessidade do afastamento social como forma de prevenção e contenção da doença, o que impactou de forma imediata as relações de trabalho, potencializando os riscos de demissões e de decréscimo na renda. Com esse cenário, o dilema sobre o papel do Estado quando se trata do pacto social e de um desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo surgiu de forma mais latente nos debates públicos.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou o alerta de que o combate à desigualdade de gênero precisa fazer parte das respostas que os países estão construindo no campo do trabalho considerando a crise e o pós-pandemia. A ONU Mulheres também indicou a necessidade de se reconhecer a corresponsabilidade social com os desígnios de uma sociedade mais igualitária, considerando o grau de afetação da pandemia na vida das mulheres.

O fato é que a pandemia atinge homens e mulheres de formas diferentes. No caso das mulheres isso ocorre de várias maneiras, incluindo preocupações com a saúde, segurança e renda, responsabilidades adicionais de assistência e maior exposição à violência doméstica, essa, por vezes, resultado de uma convivência forçada que pode exacerbar tensões.

Exemplo dessa realidade de um impacto desigual ocorre nos serviços domésticos, com a situação das trabalhadoras formalizadas, com risco de desemprego, e das diaristas, deixadas sem ocupação, circunstâncias essas que apontam para situações de insegurança na renda e, como consequência, de insegurança alimentar, justamente atingindo famílias que sofrem com outras vulnerabilidades em razão da pobreza.

A pandemia também revelou a presença substancial das mulheres na linha de frente como profissionais de saúde, cuja emergência exigiu trabalho por longas horas e exposição ao risco no trato e cuidado com os pacientes. A despeito disso, nem sempre se trata de empregos bem remunerados.

As mulheres, no Brasil e no mundo, se inserem no mercado de trabalho sofrendo reiteradamente com a desigualdade. Como há perceptivelmente mais mulheres ocupando diversos postos no mercado de trabalho, isso pode gerar uma compreensão, equivocada, de que essa presença viria acompanhada, na prática, de igualdade de acesso, de permanência e de ascensão profissional, o que, porém, não ocorre. Quanto a aspectos que demonstram a ausência, na prática, de condições igualitárias de trabalho para as mulheres, a despeito da taxa crescente de sua ativação no mundo do trabalho, podem ser citados: a diferença salarial persistente; índices indicativos de trabalho sem remuneração; presença na informalidade em atividades com qualidade inferior à dos homens; ocupação com o trabalho doméstico, tradicionalmente considerado como feminino.

A pandemia não nivela, neutraliza ou elimina tais circunstâncias. Ao contrário, a situação de emergência de saúde, com impactos na economia, na política, na sociedade e no direito tende a tornar essa desigualdade mais latente, impondo às mulheres situação adicional de sofrimento.

O agravamento da situação de desigualdade de gênero é uma realidade que se projetará no futuro. Há indicativos de que a perda de empregos decorrente da crise afetará especialmente as mulheres, que se concentram no setor de serviços, um dos mais impactados pela crise. Deve-se considerar, ainda, que muitas mulheres atuam na informalidade e que várias delas sequer terão acesso às atividades que eram até então desenvolvidas, ainda que precariamente, como fonte de sustento.

O fechamento de escolas e de creches também impôs encargos adicionais significativos para as mulheres em casa. Essa circunstância atrai reflexões sobre a cidadania feminina, no que diz respeito à divisão sexual de tarefas domésticas, sendo essas últimas socialmente atribuíveis às mulheres, e que, na prática, representam dificuldades, quando não obstáculos, para a inserção e a presença delas no mercado de trabalho.

Em suma, as mulheres têm sido sobremaneira afetadas pela crise pandêmica, e sem que as medidas, executivas, legislativas ou judiciárias, sejam, até aqui, suficientes para concretizar o princípio da igualdade. Acrescenta-se também a questão da sub-representação feminina nos espaços políticos de tomadas de decisão (no Parlamento; no Poder Executivo; no Poder Judiciário; e até nos sindicatos).

O respeito à igualdade e à diversidade é um desafio social e jurídico. O Poder Judiciário tem um papel constitucional muito importante a ser desempenhado, considerando os primados que decorrem do Estado Democrático de Direito (art. 1º da Constituição). Isso deve significar, na prática, uma lógica hermenêutica orientadora que possa considerar a diferença de gênero na análise de casos concretos que se apresentem à discussão judiciária.

No campo do trabalho, a dissonância entre o desempenho exigido, por algumas empresas e instituições, e o fechamento de escolas e creches, além de outros atributos de cuidado, como aqueles endereçados aos idosos, pode trazer consequências das mais variadas para as mulheres, tais como: ausências ao trabalho que não se enquadra em algum tipo legal específico de falta justificada; sujeição a dispensas motivadas ou imotivadas, relacionadas ou não ao baixo rendimento e às ausências ao trabalho; fatiga e exaustão pelo acúmulo de atribuições; comprometimento emocional com impacto no desenvolvimento do trabalho; dificuldades adicionais para produtividade e rendimento quando utilizado o modelo de teletrabalho; comparativos de rendimento com os trabalhadores homens que não têm as mesmas atribuições. Além de tudo isso, as situações de violência doméstica também têm implicações no campo do trabalho (absenteísmo; baixo rendimento; abalo psicológico; impossibilidade de desenvolvimento das tarefas exigidas).

Para o Judiciário, uma hermenêutica orientada pela prevalência dos direitos fundamentais, que incorporam a tensão constitutiva entre liberdade e igualdade, e nela o desafio presente na questão de gênero, precisará estar presente no horizonte dos incontáveis casos judiciais que poderão orbitar o tema do trabalho das mulheres, desde as demissões, até as condições para o teletrabalho, passando pelos temas remuneratórios.

Quanto aos demais poderes constituídos e à sociedade civil, a pandemia exige e exigirá uma resposta imediata, mas também de médio e longo prazos, coordenada, centrada nas pessoas, e sensível às questões de gênero.

Os Poderes Executivo e Legislativo necessitam de atuações sincrônicas. Considerando as diversas crises, dentro da crise de emergência de saúde, será crucial a adoção de políticas públicas, no plano executivo e legislativo, que considerem que o impulsionamento apenas do desenvolvimento econômico não é suficiente para propiciar a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Observando o nível de afetação das mulheres, será necessário o reforço de ações afirmativas para a mínima correção do atual quadro, na medida em que as soluções emergenciais adotadas até aqui apenas timidamente incorporaram a questão da chamada vulnerabilidade segmentada, a exemplo das Medidas Provisórias nº 927 e nº 936 e da Lei n° 13.982/2020. A tutela pública da regulação do trabalho não poderá ser uma não-tutela, e menos ainda uma tutela que não considere as especificidades dos diversos grupos, e suas necessidades, que constituem o conjunto dos cidadãos e das cidadãs trabalhadores.

Na mesma linha de raciocínio, empresas, representações coletivas, trabalhadoras e trabalhadores precisarão estar envolvidos para mitigar o impacto na vida das pessoas e abordar os riscos e vulnerabilidades específicos que meninas e mulheres enfrentam devido às desigualdades e estereótipos profundamente enraizados na sociedade. O compromisso social com estratégias que possam, partindo da compreensão sobre as situações de desigualdade, diminuir os impactos econômicos, trabalhistas e sociais da crise é a única alternativa para que algum nível de desenvolvimento sustentável logre ser estabelecido em âmbito nacional.

Em nenhuma medida, essas complexidades no equacionamento dos impactos da crise, da pobreza e das desigualdades, incluída a de gênero no mercado de trabalho, têm relação com promessas vazias que insistem na lógica, nunca comprovada, entre negar ou diminuir direitos trabalhistas e bravar a criação de postos de trabalho.

É possível que um dos legados desta era seja o reconhecimento da importância da justiça social, da dignidade da pessoa trabalhadora e de um ambiente de trabalho seguro e saudável para todos e todas. Porém, esses princípios apenas ganharão amplitude, e não serão mera retórica jurídica ou dos juristas, se todas as vulnerabilidades puderem ser consideradas na atuação dos poderes constituídos e da sociedade civil. A dignidade, prevista como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inc. III, da Constituição), precisa transpor a mera expectativa e avançar para o campo de uma igualdade efetiva em todos os âmbitos, ou seja, uma igualdade que passe a ser vivenciada.

Notas__________________________

1 Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_745194/lang—pt/index.htm

2 Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-mulheres-faz-chamado-ao-setor-privado-por-igualdade-de-genero-na-resposta-a-covid-19/