Edição

Mutirão Carcerário completa dez anos

10 de dezembro de 2018

Compartilhe:

Após percorrer todos os estados e rever os processos de 400 mil presos, Programa concedeu mais de 80 mil benefícios. Em entrevista exclusiva, o idealizador do projeto, ministro do STF Gilmar Mendes, fala sobre as dificuldades para superar a cultura do encarceramento e a crise no sistema prisional brasileiro

Presídios lotados, em condições degradantes e com muitos casos de encarceramento por tempo superior à pena imposta. São alguns dos problemas diagnosticados e que passaram a ser frontalmente enfrentados pelo Poder Judiciário a partir da experiência do Mutirão Carcerário, uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, à época presidido pelo ministro Gilmar Mendes, que acumulava a presidência do CNJ com a do Supremo Tribunal Federal.

O primeiro Mutirão foi realizado nas penitenciárias do Estado do Rio de Janeiro em agosto de 2008, após denúncias de violação de garantias constitucionais e direitos humanos, de atraso na análise de processos e excesso de prazo nas prisões provisórias. Desde então, após a inspeção de estabelecimentos prisionais nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, foram analisados os processos de cerca de 400 mil presos. Mais de 80 mil receberam benefícios, incluindo progressões de pena, autorizações para trabalho externo e mais de 45 mil alvarás de soltura.

No final de 2009, a iniciativa foi premiada pelo Instituto Innovare por atender ao conceito de justiça rápida e eficaz disseminado pela entidade. A notoriedade dos resultados levou o Congresso Nacional a formalizar o Mutirão Carcerário na legislação com a aprovação da Lei no 12.106/2009, que criou no âmbito do CNJ o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF).

Bandido bom é bandido ressocializado – Em articulação com os Tribunais de Justiça, que cedem juízes para participar dos mutirões, o DMF tem a missão de fiscalizar as condições de encarceramento, as ações de reinserção social dos presos, o andamento dos processos criminais, a execução penal e o atendimento aos adolescentes em conflito com a lei. Com base no diagnóstico encontrado é recomendada a tomada de providências pelas instituições do sistema de Justiça. Além de reavaliar a situação processual dos presos, busca-se identificar e replicar as melhores práticas locais de programas de reinserção social de egressos do sistema prisional.

A experiência acumulada pelo Mutirão ajudou na criação de outras políticas públicas judiciárias, como as audiências de custódia, mecanismo que contribui para evitar a superlotação das cadeias e a prática de abusos policiais ao exigir a apresentação do preso a um juiz em até 24 horas. Outro exemplo é o Banco Nacional de Monitoramento de Prisão (BNMP/2.0), que monitora em tempo real e com abrangência nacional as ordens de prisão e soltura expedidas pelo Poder Judiciário.

Para conhecer as perspectivas do Mutirão, entrevistamos o ministro Gilmar Mendes

Revista J&C – A revisão do sistema prisional entrou na agenda do país com a criação do Mutirão Carcerário. O quanto avançamos desde então?

Ministro Gilmar Mendes – Voltado para o mapeamento da realidade carcerária brasileira, o projeto trouxe a lume transgressões corriqueiras e rotineiras aos direitos fundamentais dos encarcerados (art. 5o, XLIX, da CF), cujo enfrentamento ficava a cargo apenas da corregedoria local, sem qualquer compartilhamento ou fiscalização nacional. Em síntese, se pudesse resumir, as principais realizações dos mutirões foram: de forma inédita, diagnosticar a realidade carcerária e buscar meios para atenuar os problemas encontrados, mediante atuação conjunta do CNJ e dos governos estaduais. De fato, constatou-se inadmissível déficit de mais de 167 mil vagas no sistema prisional – que hoje mantém, segundo dados do CNJ, mais de 602 mil pessoas. Esse número é ainda mais grave se considerados os milhares de mandados de prisão que ainda não foram cumpridos.

Em um ano e meio de trabalho e após exame de mais de 111 mil processos, foram concedidos cerca de 34 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, entre os quais mais de 20 mil liberdades. Em outras palavras, por dia, 36 pessoas indevidamente encarceradas reconquistaram o vital direito à liberdade. Havia a preocupação não só de enfrentar o grave problema do encarceramento abusivo, mas também de adotar medidas que dificultassem a continuidade daquele estado de coisas desumano (o qual, apenas em 2015, o STF reconheceu inconstitucional, na ADPF 347, rel. min. Marco Aurélio, DJe 19.2.2016).

RJC – Quais problemas foram mais recorrentemente identificados nas inspeções?

MGM – No meu discurso de posse na presidência do Conselho Nacional de Justiça (2008-2010), em março de 2008, citei casos que chocavam a todos, como os de menores recolhidos em prisões de adultos e outros atentados inadmissíveis às garantias individuais dos cidadãos. Por isso, anunciei que atuaria institucionalmente, em parceria com os demais órgãos públicos responsáveis, a fim de mudar de vez essa triste realidade. Nos mutirões, encontramos inúmeras irregularidades, por exemplo: superpopulação carcerária; presos doentes sem qualquer atendimento médico; lixo acumulado nos presídios e infestação por ratos (Espírito Santo); preso provisório que aguardava pelo julgamento há mais de quatorze anos (Ceará); preso com sentença absolutória há mais de um ano, sem expedição de alvará de soltura (Paraíba); além de prisão por tempo superior à pena imposta e manutenção em regime indevido diante da omissão de análise pelas autoridades competentes. Essas e outras situações formavam um quadro de horror, em que não havia espaço para falar em educação, capacitação profissional ou reinserção social.

RJC – Mesmo após dez anos, os mutirões continuam encontrando presos que estão encarcerados há mais tempo do que a sentença determinada pela Justiça. Por que isso ainda acontece?

MGM – Percebe-se que, infelizmente, em nossa sociedade, ainda prevalece a cultura do encarceramento, de forma que a polícia acaba prendendo pessoas que, ante a insignificância da conduta, não deveriam estar reclusas, como nos casos de furto de comida, ou de medicamentos, ou nos casos de usuários de pequena quantidade de drogas. Tal situação sobrecarrega o sistema, que deveria estar voltado para os casos mais graves. É necessário compreender que, às vezes, todo o aparelho estatal punitivo (Poder Judiciário e sistema carcerário) empreende a situações comezinhas de furto ou de posse de droga (usuário) a mesma atenção dispensada aos casos mais graves, como os de homicídio, latrocínio, roubo, etc. O material humano disponível para dar atenção adequada a esses casos é finito, e acaba-se por não priorizar aquilo que é mais grave. Outra questão é a falta de sincronia entre quem manda prender e quem administra o sistema prisional, necessitando-se da padronização de procedimentos e da informatização das varas de execução penal – providências que tiveram início durante minha gestão no CNJ e nas quais a gestão atual, do ministro Dias Toffoli, continua focando.

RJC – O descumprimento da decisão levou o STF a reiterar recentemente, nove meses depois da primeira decisão, o habeas corpus coletivo que concedeu às mães de filhos de até 12 anos o direito de aguardar o julgamento em prisão domiciliar. Segundo estimativa do Depen, apenas 4% das possíveis beneficiárias tiveram o benefício de fato concedido. A situação destas mulheres presas também é analisada pelos mutirões carcerários? Ao que o senhor atribui a baixa taxa de cumprimento do HC nos estados?

MGM – A situação dessas cidadãs também é analisada nos mutirões carcerários. A baixa efetividade do cumprimento, pelos estados, do habeas corpus coletivo decorre primordialmente daquilo que mencionei anteriormente: cultura do encarceramento, agravada pela resistência de alguns integrantes do Poder Judiciário de liberarem pessoas que, no seu entender, deveriam permanecer reclusas. No entanto, não é assim que o sistema deve funcionar. Recentemente, tivemos várias discussões sobre o tema, inclusive o presidente do STJ chegou a declarar que o Judiciário bandeirante é historicamente refratário a seguir a orientação daquela Corte de Justiça, que é a responsável pela interpretação da legislação infraconstitucional e cujo entendimento deveria ser seguido pelas instâncias inferiores. O sistema recursal, sob a ótica interna da Justiça, deve ser entendido como uma sobreposição de ideias que precisam se oxigenar e se retroalimentar. Não adianta determinado Tribunal dizer que não vai seguir tal orientação de Tribunal Superior. O sistema de repercussão geral e de recursos repetitivos visa a diminuir essa refração, contudo ainda persistem os atritos, principalmente na seara criminal e das gestantes, lactantes e genitoras de filhos de até 12 anos. É necessária mudança de pensamento dos integrantes da 1a e 2a instâncias, e isso pode ser resolvido com diálogos, seminários, reciclagem, sem prejuízo de outras medidas mais enérgicas se estas não surtirem efeito a longo prazo.

RJC – Quais medidas de médio e longo prazo podem ser tomadas para superar a crise do sistema prisional brasileiro?

MGM – Com o objetivo de institucionalizar as atividades afetas ao Mutirão, em agosto de 2009, apresentei proposta ao Congresso Nacional, que restou aprovada e transformada na Lei no 12.106/2009, a qual criou o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, integrado ao CNJ. O DMF atua na fiscalização e no controle do cumprimento das penas no sistema carcerário. Além disso, cabe a ele a proposição de medidas para sanar eventuais irregularidades encontradas no sistema carcerário. O Departamento também ficou responsável por coordenar a realização de mutirões, no âmbito de cada Tribunal de Justiça, para a análise das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e de internação de adolescentes em conflito com a lei. Da mesma forma, o Departamento deve contribuir para o aperfeiçoamento das rotinas cartorárias e acompanhar a implantação de sistemas eletrônicos de execução penal.

A implementação e a efetividade do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), recentemente criado pela Lei no 13.675/2018, são medidas importantes na tentativa de compreender a temática como urgente e de âmbito nacional. Historicamente, a questão da segurança pública, na qual está inserido o sistema prisional, sempre foi relegada aos estados, não havendo qualquer padronização ou troca de informações de inteligência de forma institucionalizada e estruturada. As soluções para os problemas que se repetiam eram pensadas caso a caso e de maneira desorganizada. Basta relembrar as inúmeras rebeliões em presídios e o poderio das facções criminosas. São problemas que perduram por décadas, todos sabiam que iriam acontecer e ninguém agia de forma antecipada para evitar as rebeliões ou impedir, de forma concreta e legal, que ordens de dentro de presídios fossem executadas nas ruas contra a população. Com essa mudança de pensamento, é preciso que se efetivem, na prática, todas as medidas empreendidas no âmbito do SUSP. Não adianta termos leis avançadas se não as cumprirmos e se não tornarmos realidade o trabalho de inteligência e interlocução do aparelho estatal repressivo, de modo a primeiro compreender os problemas para, depois, resolvê-los de maneira programada, interligada e operacional.