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Negociação coletiva atípica: O desenvolvimento da maturidade das partes nas relações de trabalho

20 de julho de 2016

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Vanessa Anitablian Baltazar1. Introdução

O jurista Alain Supiot[1] descreve a liberdade individual de agir coletivamente como a liberdade de união dos trabalhadores (liberdade sindical), liberdade de luta (direito de greve) e liberdade de negociação conjunta (direito à negociação coletiva).

A autonomia das partes na negociação deve ser valorizada, assim como o é em questões acerca do dissídio coletivo (art. 114, §2o, CF).

No entanto, quanto à liberdade de negociação, no Brasil prevalece, na doutrina e na jurisprudência majoritárias, que convenções e acordos coletivos de trabalho não podem ser celebrados, a não ser com a participação dos sindicatos, com fulcro, a priori, no art. 8o, VI, da Carta Magna.

Há uma presunção absoluta de que os trabalhadores, por hipossuficientes na relação empregatícia, não teriam condições de negociar com seu empregador sem o aparato sindical.

No entanto, hodiernamente, estamos a ver que das partes se exige uma participação mais ativa e leal não somente no processo de negociação, mas, inclusive, no processo de formação da decisão.

Exemplo da participação popular nas decisões judiciais é a figura do amicus curiae que fora adotada como espécie de intervenção de terceiros no CPC/15.

Objeto de ADI, esta de no 4439, ainda sub judice, trava-se a discussão acerca da legalidade ou não de se incluir obrigatoriamente o ensino religioso na grade curricular das escolas públicas, estando em pauta os arts. 5o, VI, 19, I e 210, § 6o, da Carta Maior.

A audiência pública convocada atraiu representantes de 31 entidades ligadas ao tema, o que sinaliza que o tema possui grande relevância social e possibilita ao magistrado dimensionar as forças em conflito.

Ao abrir os trabalhos, o ministro Luís Roberto Barroso[2] afirmou que a democracia contemporânea contempla três dimensões que devem ser equilibradas: a dimensão representativa, feita por meio do voto; a dimensão substantiva, na qual o Estado deve proteger direitos; e a dimensão deliberativa, baseada no debate público e na apresentação de razões. Com a audiência, o ministro pretende acolher subsídios para que se obtenha “o melhor equilíbrio possível entre esses elementos, votos, direitos e razões”.

Ao final da audiência pública, relatou os aspectos positivos da reunião com a sociedade civil tendo proporcionado grande enriquecimento intelectual, pelo que asseverou que saiu da audiência muito mais capaz de equacionar as questões tratadas no processo do que antes da audiência[3].

Extrai-se daí que a manifestação do amicus curiae, bem como a convocação da audiência pública na prática, conduzem a efeitos similares, eis que ambas colaboram na composição do julgado pela ampliação do diálogo social.

Nessa toada, entendemos que o alcance do diálogo social deve se estender às relações laborais, de forma que às partes possa ser dada a possibilidade de formar seus próprios veredictos.

2. Experiência alienígena

Em sua obra “Negociação coletiva atípica”, a professora lusitana Maria do Rosário Palma Ramalho trata da questão de forma elucidativa.

A negociação atípica, apesar de aparentemente contrariar comandos legais, vem sendo difundida em alguns países europeus e impressiona pela sua novidade, rápida difusão e aparente sucesso.

A negociação coletiva atípica muito se assemelha a uma convenção coletiva prevista no Código do Trabalho de Portugal.No entanto, é protagonizada por um empregador e representantes dos trabalhadores que não são associações sindicais.

Ela é celebrada e outorgada à margem das entidades que tradicionalmente representam os trabalhadores (como ocorre em Portugal, art. 491, CTP[4]) para formar um acordo atípico. Na prática, os acordos atípicos são normalmente outorgados pelas comissões de trabalhadores e não se olvide que esses acordos atípicos não têm previsão legal. O exemplo fático indicado é o da Autoeuropa Portugal que firma essa espécie de negociação há alguns anos com sucesso.

Na opinião da professora[5], estes acordos desafiam o monopólio sindical da negociação, mas têm contribuído para prosseguir vetores axiológicos importantes do direito do trabalho, como a uniformização mínima das condições de trabalho no seio das empresas, a estabilização das relações coletivas pela mediação dos interesses dos trabalhadores e da gestão, adaptação dos regimes laborais a conjunturas econômicas menos favoráveis e, por certo, a busca pela paz social.

Países como a França também dispõem no Code du Travail, em seus arts. 2231-1 e 2232-2, que o direito de contratação coletiva é uma prerrogativa exclusiva das associações sindicais. Na Itália, o monopólio sindical é previsto na própria Constituição em seu art. 39, no 1.

No entanto, há em alguns países certa abertura limitada à intervenção de outras entidades na negociação coletiva.

Por exemplo, na França, foi admitida pela Lei 12 de novembro de 1996 e Lei 4 de maio de 2004 a representação não sindical dos trabalhadores na negociação de nível empresarial (les accords atypiques), a título subsidiário, na ausência de associações ou delegados sindicais. Dispõe, ainda, que tal competência apenas surge quando prevista nas convenções do setor e os acordos coletivos resultantes precisam ser validados por uma comissão paritária da área de atividade (também exigido no accord de branche).

Por sua vez, o modelo de organização sindical alemão possui uma importante particularidade que é a cogestão, que permite que os trabalhadores participem diretamente das decisões empresariais.

3. Da prática em terras tupiniquins

Nas suas origens, a negociação coletiva teve como atores por excelência as associações sindicais, havendo um monopólio sindical nesta seara.

Em países como Portugal (art. 56, no 3, CRP), assim como no Brasil (art. 8o, VI, CF), a Constituição atribui com exclusividade o direito de negociação coletiva às entidades sindicais.

As atípicas são as negociações que resultam num acordo global sobre as condições de trabalho entre sujeitos não sindicais, quando o sindicato é o ente exclusivo para o exercício de tal prerrogativa.

A doutrina majoritária defende essa exclusividade em virtude de disposição constitucional imperativa que indica as entidades mais adequadas para negociar, não recepcionando a qualificação dos acordos coletivos atípicos como nova categoria de instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho.

De fato, a negociação coletiva está definida no art. 8o como resultado de acordos firmados com intervenção sindical. Não obstante, podemos enquadrar os acordos atípicos como uma manifestação coletiva diferenciada. Nesse ínterim, a jurista Maria do
Rosário sugere, com o que concordamos, que possa se moldar como uma espécie de negócio jurídico.

A jurista defende que a negociação atípica, portanto, não precisa estar no rol de nova modalidade de regulação coletiva, pois trata-se de admitir os acordos atípicos como manifestação diferenciada da autonomia coletiva, desenvolvida à margem das associações sindicais.

Do mesmo modo, o autor francês Gérard Vachet[6] salienta que o problema não reside em qualificar esses acordos como uma nova categoria de convenção coletiva de trabalho, ante o monopólio sindical na França também.

Reside em saber se apenas as convenções coletivas de trabalho podem conter normas gerais sobre os vínculos laborais; a isto, o autor responde que não, invocando a variedade e multiplicidade das fontes laborais e o relevo normativo de usos das empresas e de seus regulamentos internos.

No Brasil, o Código Civil, em seu art. 104, permite a elaboração de negócios jurídicos que para sua validade exigem agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.

Sendo assim, não vislumbro qualquer óbice na legítima formação de composição coletiva entre empregados e empregadores.

Mas, há quem se inquiete no que pertine à personalidade e capacidade de negociar das comissões de trabalhadores.

No Brasil, o art. 11 da CF assegura aos trabalhadores a criação de representações nas empresas ou nos estabelecimentos destas, desvinculadas das entidades sindicais, com o objetivo de coordenar e defender seus interesses perante o empregador.

José Claudio Monteiro de Brito Filho[7], por sua vez, embora entenda a criação da comissão de empresa como experiência válida, defende que a criação será mais efetiva em um modelo ideal, pois no modelo vigente ou ele é criado pela empresa, à margem do sindicato, com submissão ao empregador, ou é braço do sindicato, sofrendo as vicissitudes de seu criador.

Quanto à eficácia dessa negociação, inexistiria uma automática representatividade entre a comissão de empregados e os trabalhadores da empresa, suficiente para produzir efeitos do acordo na esfera jurídica de cada um dos empregados.

Nessa alheta, a jurista Maria do Rosário propugna que a ideia, portanto, é adotar um processo de ratificação que valide o acordo atípico de forma coletiva.

Não fosse o bastante, a Convenção 154 da OIT em seu art. 2o, ratificada pelo Brasil em 1992, após a promulgação da CF, que permite a negociação coletiva que prescinde do sindicato:

Art. 2 — Para efeito da presente Convenção, a expressão “negociação coletiva” compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com fim de:

a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou

b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou

c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez.

Ora, se o art. 5o, §3o, permite que as convenções, versando sobre direitos humanos, possam ser incorporadas ao Direito positivo brasileiro, há total compatibilidade com esses documentos que, anteriormente, já haviam sido editados como Direito vigente no Brasil. Só que, a partir de então, seu status passará, automaticamente, a ser o de emenda constitucional.

Nesse sentido, o professor André Ramos Tavares[8] sustenta que, no que tange aos tratados internacionais anteriores à EC 45/2004, foi omisso o legislador constituinte derivado. Ao que tudo indica, não houve a preocupação em estabelecer uma regra de transição que disciplinasse o delicado e relevante tema dos tratados incorporados anteriormente à EC 45/2004.

Admite o professor a possibilidade de passarem automaticamente a ter status de emenda constitucional, numa espécie de recepção.

Na mesma linha de entendimento, o professor José Carlos Francisco[9] assevera que a recepção é a melhor conclusão, ante o princípio da máxima efetividade, pela lógica da recepção constitucional e até mesmo pela interpretação sistemática da Emenda Constitucional 45.

Pela máxima efetividade quer dizer que o operador do Direito deve primar por dar maior aplicação concreta aos comandos da Constituição, especialmente tratando-se de direitos humanos. Negar a hierarquia constitucional a esses atos internacionais significaria violentar a própria lógica que impulsionou o Constituinte Reformador a introduzir o §3o no art. 5o da CF/88.

Vale ressaltar que são mudanças que, embora lentas, precisam ser plantadas para que possamos colher um futuro promissor, uma democracia efetivamente participativa.

Como aduz a jurista Maíra Neiva Gomes[10], um dos desafios do movimento sindical brasileiro, neste momento, deve ser a luta pela superação da hegemonia cultural dominante, a fim de que se possa conscientizar e emancipar os trabalhadores, permitindo-se que estes restabeleçam os laços de solidariedade que os identificam enquanto classe que deve participar democraticamente da construção social.

4. Conclusão

O fim maior de permitir essa espécie de negociação é justamente ressoar a ‘harmonia social’, preconizada no preâmbulo da Constituição, com a solução pacífica das controvérsias, podendo ser implícita (obrigação de paz) ou explícita (sob a forma de cláusula obrigacional, a cláusula de paz).

Os avanços, como na legislação alemã (cogestão, que permite que os trabalhadores participem diretamente das decisões empresariais), com a conscientização da classe trabalhadora e incentivo de fomentar a informação por parte da ala patronal, devem ser vistos com bons olhos, dando abertura a ambos os lados da relação de trabalho na solução de conflitos e tomada de decisões.

No Brasil, entendemos que há previsão consti­tucional suficiente para sustentar a formação de acordos atípicos, eis que o art. 11, CF, adota o modelo livre de representação direta dos trabalhadores.

Bem como porque, quanto ao seu conteúdo, comungamos do entendimento da jurista Maria do Rosário Palma Ramalho de que podem as partes firmar um negócio jurídico com natureza normativa com a finalidade de reduzir o vazio interno e se aproximar da realidade de cada empresa.

Nesse sentido, inclusive, o Código Civil brasileiro, que permite a elaboração de negócios jurídicos, bem como a própria disposição na Convenção n. 154 da OIT, ratificada pelo Brasil.

Este modelo se apresenta como um importante mecanismo de democratização das relações que possibilita a busca pela emancipação dos trabalhadores e pela função social da sociedade privada, tornando o acesso à educação de qualidade no país um fator primordial para que possa ser implantado.

Ainda, desconstrói ou, ao menos, ameniza a ideia fixa da judicialização excessiva de conflitos, e, de outro lado, aumenta a crença na independência dos trabalhadores, eis que não existe sentença que possa alcançar a realidade de forma tão próxima, e dificilmente haverá consenso de ambas as partes quanto a seu termo.

E, de conseguinte, essa mudança de paradigma pode ser a semente da adoção da pluralidade sindical, já que as partes envolvidas terão mais segurança quanto à aplicação das cláusulas normativas e para negociar entre elas, desenvolvendo maior confiança e lealdade entre as partes.

 

Referências bibliográficas_____________________________

AROUCA, José Carlos. Curso básico de direito sindical. São Paulo: LTr, 2009.

BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Direito Sindical. São Paulo:LTr, 2000.

COSTA, Orlando Teixeira da. A negociação coletiva no Brasil. In: RUPRECHT, Alfredo J; FERRARI, Irany (rev. técn.). Relações coletivas de trabalho. São Paulo: LTr, 1995.

FRANCISCO, José Carlos. Bloco de constitucionalidade e recepção dos tratados internacionais. In: Reforma do Judiciário analisada e comentada. São Paulo: Método, 2005.

GOMES, Maíra Neiva. Em busca da liberdade sindical: análise comparativa dos sistemas sindicais de Portugal e da Alemanha. Disponível em http://jus.com.br/artigos/14183/em-busca-da-liberdade-sindical/3. Acesso em 29.09.2015.

RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Negociação coletiva atípica. Coimbra: Almedina, 2009.

RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de direito do trabalho: fac-similada. São Paulo: LTr, 2015.

SUPIOT, Alain. Critique du droit du travail. Paris: PUF, 2015.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 12o Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

TEIXEIRA FILHO, João de Lima. A obrigação de paz e os instrumentos normativos. In: RUPRECHT, Alfredo J; FERRARI, Irany (rev. técn.). Relações coletivas de trabalho. São Paulo: LTr, 1995.

VACHET, Gerard. Les accords atypiques. Paris: DS, 1990.

 

Notas______________________________________________

1 Critique du droit du travail, p. 140.

2 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293563. Acesso em 23.6.2015.

3 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293673. Acesso em 23.6.2015.

4 1 – A convenção colectiva é assinada pelos representantes das entidades celebrantes.

2 – Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se representantes:

a) Os membros de direcção de associação sindical ou associação de empregadores, com poderes para contratar;

b) Os gerentes, administradores ou directores com poderes para contratar;

c) No caso de empresa do sector empresarial do Estado, os membros do conselho de gerência ou órgão equiparado, com poderes para contratar;

d) As pessoas titulares de mandato escrito com poderes para contratar, conferido por associação sindical ou associação de empregadores, nos termos dos respectivos estatutos, ou por empregador.

3 – Sem prejuízo da possibilidade de delegação noutras associações sindicais, a associação sindical pode conferir a estrutura de representação colectiva dos trabalhadores na empresa poderes para, relativamente aos seus associados, contratar com empresa com, pelo menos, 500 trabalhadores.

4 – A revogação do mandato só é eficaz após comunicação à outra parte, por escrito e até à assinatura da convenção colectiva.

5 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Negociação colectiva atípica, p. 26.

6 Les accords atypiques, p. 621.

7 Curso básico de direito sindical, p. 427.

8 Curso de direito constitucional, p. 412.

9 Bloco de constitucionalidade e recepção dos tratados internacionais, p. 103/104.

10 Em busca da liberdade sindical: análise comparativa dos sistemas sindicais de Portugal e da Alemanha. Disponível em http://jus.com.br/artigos/14183/em-busca-da-liberdade-sindical/3. Acesso em 29.09.2015.