Edição 90
Niemeyer, uma ponte eterna no tempo
31 de janeiro de 2008
Pedro do Coutto Jornalista do Tribuna da Imprensa
O gênio Oscar Niemeyer, que completou 100 anos, com seu talento de arquiteto e sua alma livre de artista, construiu, ao longo de sua vida, uma ponte eterna no tempo buscando sempre a sensação de um vôo para o futuro e talvez a utopia de uma igualdade que proporcionou o sentido construtivo e fraterno de seu traço. Estas características, creio, estão contidas em seus projetos, uma série enorme a partir de 36, quando juntamente com Lúcio Costa traduziu para o concreto o risco ousado de Le Corbusier.
Nascia o Palácio da Cultura, no Rio, na Avenida Graça Aranha, por coincidência o nome de um dos integrantes da Semana de Arte Moderna de 22. Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema sobre sua obra. Niemeyer, no fundo, representa não apenas a presença de um intelectual na vida, mas também a procura do ser humano. Neste ponto, não sei se o encontrará. Porém, encontrou a si mesmo. Marxista teórico, não leninista, portanto não passando do pensamento à ação, sonhou e sonha com algo ideal, que não se encontra nos outros. Mas que seria dos artistas não fossem as utopias?
É nesta quimera que gira o seu mundo interior. Se os fatos, no plano geral, não confirmarem o impulso, como dizia Nelson Rodrigues, ironizando, pior para os fatos. Niemeyer não é apenas o arquiteto do presente e do futuro, mas o artista que ficará para sempre, assim como Michelangelo e Leonardo da Vinci. Ele construiu mais uma estrada na existência humana. Seu universo é o espaço da liberdade de sentir, pensar e viver. Daí porque sua vasta obra, sobretudo porque, permanentemente exposta, é o museu de si mesma.
O Palácio da Cultura está de pé, com um painel de Portinari, seu grande companheiro na jornada, como a Pampulha, o edifício-sede da ONU, em Nova York, que projetou novamente, ao lado de Corbusier e de vários outros notáveis arquitetos. Seu toque está na construção de Berlim, bairro de Hansa, tarefa para a qual foi convidado com representantes de vários estilos, todos arrojados e voltados para os tempos então modernos. Era a primeira década de 50, era pós-Plano Marshall. No Estado de Israel, encontram-se as impressões digitais de sua técnica nas cidades de Tel Aviv e Neguev.
No entanto, estão também em Argel, na Argélia, logo depois da independência do país decretada por De Gaulle. Ele passa por Trípoli, na Líbia. Está no Líbano. Está na sede do Partido Comunista Francês, em Paris. Sua visão de artista plástico, um dos maiores do último século, está em Portugal, na reurbanização do Algarve. Consagração internacional não lhe falta. Ao contrário: são inúmeras as obras publicadas sobre o pulsar de sua inteligência extremamente criativa e sensível. Está na sensualidade das curvas do Sambódromo
do Rio. Principalmente em Brasília, sua apoteose na arquitetura e na arte.
Lembro bem as palavras de André Malraux, ministro da Cultura de De Gaulle, quando visitou a capital recentemente inaugurada. Esta é a capital da esperança, disse o autor de “A condição humana”. Os traços aqui projetados, tendo a paisagem como moldura, voltam-se para o futuro, não somente o do Brasil, mas o da humanidade. Brasília constitui uma ruptura no tempo à procura do porvir.
Niemeyer e Juscelino pertencem à história dos encontros fantásticos, não somente entre duas pessoas, mas entre dois temperamentos iguais. A parceria começou na Pampulha e, dezessete anos depois, culminou em Brasília, com a presença de Lúcio Costa no urbanismo e de Burle Marx no verde do cerrado e no Lago Paranoá. Portinari, que morreu um ano depois, é outra presença nos vitrais da pequena capela do Palácio da Alvorada. Na década de 40, a igreja de Portinari, na Pampulha, foi interditada pela Diocese de Belo Horizonte. Um cão – lá está até hoje – assistia à missa.
Uma tempestade contestou a obra. Porém, como é do destino de todas as obras de arte, hoje ela é aceita com absoluta naturalidade, o que deveria ter acontecido no momento de sua inauguração. O painel de Portinari, em vez de motivar interpretação religiosa, assinalando a presença de Deus, foi traduzido como manobra de comunistas teóricos para desacreditar a Igreja e até as instituições leigas.
Incrível, mas foi o que aconteceu. O episódio fica na estatística dos grandes encontros. Por paradoxal que seja, não há como se fazer as estatísticas dos desencontros, pois não podemos saber quais os encontros que estive-ram a um passo de ocorrer, mas que não aconteceram.
Que fazer? Portinari está também na ONU, ao lado de Pablo Picasso.
O século de vida que Oscar Niemeyer alcança no sábado é o encontro de dois seres da ciência e da arte que vivem nele. Este encontro está no Palácio do Planalto, está na capela do Alvorada – em que os traços de concreto buscam o alto, o céu, em que Niemeyer diz não acreditar. Está no Museu em Niterói, sobretudo na emoção e na consciência de todos que admiram o gênio brasileiro, aliás, um dos grandes gênios de toda a humanidade em todos os tempos. Niemeyer é uma ponte eterna entre o passado, o presente e o futuro.