“Nos momentos de crise, o mutualismo é fundamental”

5 de novembro de 2020

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Foi realizada na manhã desta quarta-feira (4/11) a primeira etapa do 3º Seminário Jurídico de Seguros, evento promovido pela Revista Justiça & Cidadania em parceria com a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Complementar e Capitalização (CNseg).

Com coordenação científica do Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, o evento tem apoio institucional do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que vai certificar a participação dos inscritos – bem como da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Escola Nacional da Magistratura (ENM) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados (Enfam).

O primeiro painel discutiu “As Incapacidades nos seguros de pessoas na visão do Superior Tribunal de Justiça (STJ)”, com abordagens complementares da questão sob os pontos de vista médico, econômico e jurídico. Participaram do debate o Ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino, o Ministro João Otávio de Noronha, ex-Presidente do Tribunal, o médico Roberto Albuquerque, que é membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Medicina de Seguros, e o Diretor Jurídico e de Compliance do Grupo Zurich de Seguros, Washington Luís da Silva, que é também Presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos da CNseg.

Participações especiais – Antes de passar a palavra aos debatedores, o mediador Tiago Salles, que é Editor-Executivo da Revista JC, convidou para as saudações de boas-vindas o presidente da CNseg, Márcio Coriolano, e o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro Humberto Martins.

Ao apresentar informações relevantes sobre o Setor, o Presidente da Confederação ressaltou que durante esse “dramático período da pandemia, os seguros vêm demonstrando sua importância, amparando milhares de pessoas que foram ou estão sendo vítimas de toda espécie de infortúnios”. Segundo Coriolano, são pagas anualmente no Brasil indenizações, pecúlios e rendas que se aproximam de R$ 260 bilhões. Quanto às expectativas da entidade em relação ao Seminário, o Presidente da CNseg resumiu que se trata de “reduzir as assimetrias de informações entre o Poder Judiciário e os agentes da cadeia de valor do Setor de Seguros”.

O Ministro Humberto Martins, em mensagem gravada aos participantes do evento, também pontuou que o momento impõem “que as atividades econômicas sejam cada vez mais amparadas pelos seguros”. O magistrado disse acreditar que os debates travados no Seminário vão contribuir para dar maior segurança jurídica aos diversos aspectos ligados à área: “A realização desse evento é de extrema relevância e representa a certeza de que o Poder Judiciário brasileiro está atento e alerta às questões que permeiam a atividade securitária”.

Invalidez e incapacidade  – Para introduzir o assunto do painel à luz da ciência, o primeiro a se apresentar foi o médico Roberto Albuquerque, que desde 1979 atua no segmento da Medicina de Seguros, com passagens por várias seguradoras de prestígio. Ele conceituou definições importantes para entender a questão, como os termos invalidez e os diferentes tipos de incapacidades.

As coberturas oferecidas pelo mercado são para a incapacidade temporária, invalidez por acidente e a invalidez por doença. A incapacidade temporária garante indenização caso o segurado se torne incapaz de exercer sua atividade remunerada, em função de doença ou acidente. Tem caráter temporário, pois cessa no momento em que há a recuperação do problema. A invalidez por acidente garante o pagamento de indenização em função da perda ou da limitação funcional definitiva de um membro ou órgão, causada por lesão física em função de acidente pessoal coberto. Ela deve ter caráter permanente, quando não há perspectiva de cura diante da ciência médica.

A invalidez permanente por doença, segundo Albuquerque, foi a que mais sofreu alterações nas duas últimas décadas. “Há vários anos atrás, quando comecei a trabalhar com Medicina dos Seguros, as cláusulas da invalidez permanente por doença eram extremamente rígidas, exigiam que o segurado estivesse total e permanentemente inválido para qualquer atividade da qual adviesse remuneração ou ganho. A rigidez das cláusulas e a ausência de critérios médicos que pudessem respaldar as decisões das companhias seguradoras provocaram uma série de conflitos e demandas judiciais”.

Segundo ele, porém, em 2005 a Superintendência de Seguros Privados (Susep) publicou a Resolução Normativa 302, que veio alterar significativamente a definição da invalidez por doença, sobretudo por ter incorporado o fator profissional ao conceito, criando o produto “invalidez laborativa permanente por doença”, que garante indenização nos casos em que há incapacidade total para o exercício profissional em decorrência de uma doença.

Roberto Albuquerque observou que é “impossível listar todas as situações clínicas que possam potencialmente prejudicar ou impedir o exercício profissional das diversas atividades do ser humano. É sempre uma análise caso a caso”. O que já não acontece, segundo ele, em relação à invalidez funcional permanente por doença, para a qual foram incorporados aos riscos cobertos as cardiopatias graves, as doenças neoplásicas em fase avançada, as doenças crônicas de caráter progressivo, a alienação mental total ou permanente, as doenças encefálicas ou medulares, as doenças degenerativas do aparelho locomotor, a deficiência visual grave e toda e qualquer doença em estágio terminal.

O médico explicou ainda que se eventualmente não for possível enquadrar a condição clínica do segurado em nenhuma dessas categorias, pode ser utilizado o Instrumento de Avaliação de Invalidez Funcional, composto por tabelas que avaliam relações existenciais, condições médicas, dados antropométricos e os fatores de risco, para mensurar o grau de prejuízo ao desempenho das atividades do segurado. Se o total de pontos atingir um mínimo de 60 pontos em 80 pontos possíveis, também fica caracterizada a incapacitação por doença.

Evolução jurisprudencial – Na sequência, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino falou sobre a evolução dos precedentes no Superior Tribunal de Justiça relacionados aos casos de invalidez e aos limites das coberturas dos seguros de vida. O Ministro desdobrou sua exposição em duas partes. Na primeira, falou sobre a cláusula de cobertura de incapacidade nos contratos de seguros de pessoas – denominação do Código de Defesa do Consumidor dada aos seguros de vida, acidentes pessoais e outras coberturas – e, na segunda parte, a interpretação jurisprudencial acerca da validade e eficácia dessa cláusula.

Sanseverino relembrou que o Código Civil regula os seguros de vida nos art. 789 e seguintes, conferindo especial ênfase ao seguro de vida individual, enquanto o seguro de vida em grupo é regulado pelo art. 801 do Código, sendo esse o contrato em que aparecem com mais frequência as cláusulas a respeito das incapacidades que ensejam mais divergência e dúvidas.

“Em função das dificuldades de conceituação, havia muita dúvida, foram muitas demandas judiciais, até que em 2005 a Susep acabou editando a Resolução Normativa 302, vetando o oferecimento genérico de invalidez permanente por doença, por não haver clareza em torno do conceito por invalidez”.

Junto com a norma da Susep, em 2005 foram criadas duas modalidades de cobertura para invalidez por doença nos planos de seguros privados: a invalidez laborativa permanente total por doença e a invalidez funcional permanente total por doença. Na primeira, a garantia do pagamento da indenização fica condicionada à perda da existência do segurado, quando seu quadro clínico impede que consiga trabalhar em sua atividade original. Enquanto que na segunda, o segurado não consegue mais trabalhar em qualquer atividade.

Leading case Segundo o Ministro Sanseverino, que é presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ, inúmeras demandas judiciais discutem a validade da cláusula que estipula uma cobertura adicional por invalidez permanente total sem incluir a invalidez total laboral. O principal precedente é da relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no Resp 1.449.513/SP, no qual o magistrado destacou que “embora a cobertura por invalidez funcional seja mais restritiva em relação à invalidez profissional, não há que se falar em sua abusividade ou ilegalidade, tampouco em ofensa aos princípios da boa fé e da equidade, não se constatando também nenhuma abusividade da seguradora em detrimento do consumidor. De qualquer modo, a seguradora deve esclarecer previamente o consumidor, e o estipulante no caso do seguro em grupo, sobre os produtos que oferece e existem no mercado, com informações claras a respeito do tipo de cobertura contratada e das suas consequências, de modo a não induzi-los em erro”.

De acordo com o Ministro Sanseverino, esse precedente tem sido seguido pela jurisprudência das duas turmas da Segunda Seção do Tribunal, que julga os processos de Direito Privado. Como os processos acerca dessa questão continuam chegando em grande número ao STJ, caracterizando uma demanda repetitiva, o Núcleo de Gestão de Precedentes (Nugep/ STJ) identificou, a partir da utilização da inteligência artificial, a existência de 234 decisões monocráticas envolvendo idêntica controvérsia, e basicamente seguindo o leading case apresentado pelo magistrado – além de 117 recursos especiais e agravos em recursos especiais no STJ. “Por isso, sugeri a afetação desse tema como recurso especial repetitivo para a consolidação da jurisprudência do Tribunal. Escolhemos então um tema representativo da controvérsia e acabamos distribuindo, por prevenção, ao Ministro Cueva, que tinha o principal precedente”.

Segundo Sanseverino, em 6 de outubro desse ano o tema foi afetado como recurso representativo de controvérsia. “É o tema 1.068, que será julgado em breve, e a delimitação da controvérsia é no sentido de definir a legalidade da cláusula que prevê a cobertura adicional de invalidez funcional permanente por doença em contrato de seguro de vida em grupo”, informou o Ministro, que acrescentou: “Como se trata de cláusula limitativa de cobertura securitária, naturalmente ela deve ser destacada com clareza no contrato. Seja no seguro de vida individual ou em grupo, atendendo aos ditames do Código de Defesa do Consumidor, da boa fé, da confiança e da equidade, prestando informações claras a respeito da modalidade de cobertura pactuada e os seus efeitos”.

Cálculo dos riscos – Para prestar esclarecimentos técnicos sobre os cálculos e a estruturação das coberturas de seguros de pessoas, foi chamado a participar o Diretor Jurídico e de Compliance da Zurich Seguros, Washington Luís Bezerra da Silva. Inicialmente, ele ressaltou que apesar do nome seguro de pessoas, a finalidade do produto é financeira, para garantir a manutenção do segurado e seus dependentes, em valor pré-estabelecido pelo próprio ou pelo estipulante.

Sobre as ponderações a respeito da eventual abusividade na diferenciação entre as cláusula de invalidez funcional e invalidez laborativa, o Presidente da Comissão Jurídica da CNseg ponderou que as coberturas são distintas e que, exatamente por isso, têm preço distintos. “A formação técnica de qualquer preço é risco versus valores”, disse.

“Em geral as empresas contratam um seguro de vida e algum seguro por invalidez. Em algumas situações, já ouvi que não seria justo a pessoa não receber nada caso sofra com alguma doença, mas continue mantendo sua autonomia. Lembro que na própria circular 302 é também oferecido o seguro de doenças graves. Ou seja, em alguns tipos de doenças, basta o diagnóstico para que a pessoa tenha um capital contratado. Em alguns casos de doenças graves, independente se haverá ou não sequelas, vai haver indenização”, explicou Washington Silva.

Ele acrescentou: “Existe um rol de produtos que visa mitigar os problemas que possam advir de uma doença, seja ela laboral, seja uma na qual a pessoa perca a autonomia, ou seja uma doença grave. (…) Não há uma abusividade na cláusula. É óbvio que precisamos de clareza nos normativos, precisamos de clareza no contato com o consumidor, mas volto a insistir que existem e são ofertadas todas as formas de contratação. O que acontece é que elas têm preços diferentes”.

Pedra de toque – Para falar sobre a segurança jurídica nos seguros, sobre a função social dos seguros e sobre a importância do cumprimento dos contratos, à luz da jurisprudência do STJ, o Seminário contou com a participação do Ministro João Otávio de Noronha.

Em sua palestra, ele observou que a segurança jurídica nos contratos de seguro passa pela observância do princípio do mutualismo, que é, em suas palavras, a verdadeira “pedra de toque” dos seguros: “No contrato de seguros todos contribuem e as contribuições formam um fundo do qual sairão os valores necessários para o pagamento das indenizações caso se materializem os efeitos econômicos dos riscos segurados. (…) Todos os agentes envolvidos na relação do contrato de seguros têm o dever de proteger o mutualismo, pois sem eles todos vão ficar em uma situação de vulnerabilidade quanto aos riscos”.

O ex-Presidente do STJ salientou duas situações amplamente negativas para a mutualidade: a fraude e utilização indevida. “Querer receber indenização por um contrato que não contratou é buscar a utilização indevida do fundo. Por isso, é fundamental a observância das regras jurídicas. Quando falamos em mutualismo há algo que é dele indissociado, o cálculo atuarial, que se baseia exatamente nos riscos para definir o montante a ser pago. Quem paga por um tipo de contrato, quem segura um determinado risco, não pode receber por outro diferente, ainda maior, porque isso fere o mutualismo, descapitaliza o fundo, gera pagamento indevido e, se isso acontecer em grande quantidade, o que vai acontecer ao fim e ao cabo é a insolvência do fundo que garante o pagamento das indenizações”.

Por fim, o Ministro Noronha sublinhou a importância do cumprimento dos contratos.  “Não se pode indenizar qualquer risco, mas somente os riscos pré-determinados, embora não se saiba de antemão quando eles vão se materializar ao longo do período de vigência do contrato. O importante é que eles sejam definidos, porque esses riscos, levando em consideração a situação individual de cada participante, são fundamentais para a determinação do cálculo atuarial que visa, sobretudo, preservar a solvência do fundo”, disse ele, que finalizou: “É muito importante cumprir o que foi pactuado, o que foi levado em conta para a definição do preço do prêmio, no cálculo atuarial, na formação do fundo”.

Conclusões – Em suas considerações finais, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino sintetizou a importância das discussões travadas no painel: “Tivemos a visão médica, a visão econômica, a visão jurídica e, no meu caso, a visão do estágio atual da jurisprudência do STJ. Como bem destacou o Ministro João Otávio, é importante clareza e previsibilidade na jurisprudência, já que segurança jurídica é fundamentalmente previsibilidade. Além disso, como também disse o Ministro, essa cobertura é feita essencialmente pelas empresas em favor dos seus empregados, já que ela está basicamente nos seguros de vida em grupo. A incerteza acaba por desestimular esse tipo de contratação, mas os momentos de crise são exatamente aqueles em que o mutualismo é fundamental”.

Ao final, o apresentador Tiago Salles convidou todos para a continuidade do 3º Seminário Jurídico de Seguros, que na próxima quarta-feira (11/11, às 11h) vai apresentar o painel Rol de Procedimentos da Saúde Suplementar, com a participação do Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, do Ministro do STJ Paulo Dias de Moura Ribeiro, do Professor Gustavo Binenbojn, do médico Denizar Vianna e do Procurador-Geral da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Daniel Tostes.

Na quarta-feira seguinte (18/11, às 10h30), o 3º Seminário Jurídico de Seguros será encerrado com o painel O Impacto da Repercussão Geral do STF REXT 827.996/PR Tema 1.011 nas ações de Seguro Habitacional do Sistema Financeiro de Habitação, que contará com a participação do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva, do Ministro do STJ Luiz Alberto Gurgel de Faria, do Procurador Geral da Susep, Igor Lourenço, e do advogado Gustavo Fleichman.

A cobertura completa do evento será publicada na próxima edição da Revista Justiça & Cidadania.