“Nossa crise é institucional” _Entrevista com Márcio Thomaz Bastos, ministro do STJ

31 de julho de 2006

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“O Brasil não tem uma crise legislativa. O Brasil não sente falta de leis. Leis nós temos bastante. A nossa crise é institucional, o que dificulta o cumprimento dessas leis. Precisamos avançar no processo de reconstrução das instituições que cuidam da segurança no País e combater fortemente a impunidade, que é o que deixa a população indignada e descrente de que a justiça pode ser igual para todos”.

Nessa entrevista exclusiva à Justiça & Cidadania, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, fala sobre o aumento da criminalidade no País, o remédio para combatê-la e anuncia a criação do Sistema Penitenciário Federal que contará com cinco unidades em todo o Brasil para abrigar somente presos de altíssima periculosidade e desarticular a ação do crime organizado dentro das unidades.

As constantes rebeliões de criminosos nos presídios, são reivindicações de natureza pessoal ou reflexos da crise institucional, social e moral brasileira?
Há muitos anos vem sendo criada uma espécie de linha de montagem do crime no Brasil.  Ela começa nos centros de recuperação de adolescentes em conflito com a lei, verdadeiras escolas para a formação de bandidos, e chega no sistema prisional. O jovem, quando internado nesses organismos, passa pela experiência das polícias, enfrenta muitas vezes anomalias de um judiciário que necessita de reforma ampla, e vai para prisão, onde fica por alguns anos e acaba se transformando num adulto pós-graduado em criminalidade, seqüestro, crime de extorsão. Nossa idéia é muito clara de que é preciso desmontar esse sistema e remontar um outro, reconstruindo as instituições. É isso que está sendo feito, num processo amplo, que vai desde a Reforma do Judiciário, passando pela reestruturação e fortalecimento da Polícia Federal – um dos pilares do Sistema Único de Segurança Pública – e pela criação do Sistema Penitenciário Federal. O Sistema Penitenciário Federal contará com cinco unidades cobrindo todas as Regiões do País, para abrigar somente presos de altíssima periculosidade e desarticular a ação do crime organizado dentro das unidades. Somente com esse fortalecimento das instituições e a integração dos governos estaduais e federais, questões como esta podem ser enfrentadas adequadamente.

V. Excia. acredita que o sistema penal brasileiro está impondo aos presos condições de sobrevivência que extrapolam aos limites da própria pena?
O artigo 3° da Lei de Execuções Penais afirma que “Ao condenado são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”. De maneira que todas as restrições a direitos dos presos que não sejam a própria privação de liberdade extrapolam os limites da pena. A pena tem basicamente a função dissuasória de inibir o criminoso, além da função de isolar aqueles que sejam fisicamente perigosos. A violação de direitos não está de acordo com nenhuma dessas funções da pena. É preciso que se acabe de uma vez por todas com o mito de que o rigor com os criminosos é incompatível com o estrito respeito aos direitos humanos. O Sistema Penitenciário Federal pode ser tomado como exemplo de como é possível harmonizar um isolamento absoluto dos bandidos mais perigosos sem qualquer violação ilegal de direitos. Nos estabelecimentos federais, mesmo o preso sendo submetido a um tratamento rigorosíssimo ele terá direito ao uso de um moderno centro médico e a condições dignas. Nossa luta é para que todos os sistemas penitenciários possam conciliar este rigor com um tratamento dentro dos parâmetros da lei. Conseguir isto é fundamental para acabar com as rebeliões e desmontar as centrais criminais instaladas nos presídios.

V. Excia não acha que o Ministério da Justiça deveria evoluir para ser também o Ministério da Segurança Pública com ação efetiva nos Estados?
O Ministério da Justiça, em sua concepção atual, atua fortemente na segurança pública. E isso vem sendo acentuado, de acordo com o contexto vivenciado pelo País, num processo de integração com os estados, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).  A Secretaria é responsável pela coordenação de uma nova política para a área indutora de integração, uniformização, promoção dos direitos humanos e desenvolvimento de uma solidariedade federativa.

Desde 2003 todos os estados fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Ações concretas e objetivas de combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro foram desenvolvidas  a partir da criação desse Sistema, merecendo destaque as operações das Polícias Federal e Rodoviária Federal.  A  atuação conjunta da PF com as polícias dos estados também tem contribuído para a elucidação de crimes, como o caso de Unaí/MJ e o esclarecimento da morte da religiosa Dorothy Stang, em Anapu/PA.

A criminalidade ao invés de ser tratada como crime de natureza comum deveria ser vista como criminalidade social?
Para tratar a questão da criminalidade no Brasil é necessário avançar com a reforma das instituições – a polícia, o Poder Judiciário e o sistema prisional. Outro componente essencial nesse processo é o sistema de segurança unificado, onde os padrões sejam obedecidos, onde a racionalização dos serviços seja feita, onde se use inteligência, se use informação e se combata a lavagem de dinheiro. Quando você impede a lavagem de dinheiro você dissuade o sujeito de correr um risco, de entrar numa organização criminosa para depois ficar sem saber o que fazer com aquele dinheiro.

Como Ministro da Justiça e reconhecido criminalista o que lhe parece o exemplo que a Colômbia dá ao Mundo, sobretudo no restabelecimento da ordem pública em Medelim?
Como já disse, o caminho mais lógico para se combater o crime organizado é, além das ações diretas de repressão, acabar com a lavagem de dinheiro. Porque ninguém comete um crime para guardar dinheiro embaixo do colchão. A pessoa só corre os riscos porque sabe que pode lavar o dinheiro. Este é o objetivo final do crime organizado. É por isso que elaboramos a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro, reunindo órgãos como o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e a Controladoria-Geral da União. O crime tem que ser combatido em todas as pontas.

Como V. Excia vê o papel da OAB, ante ao crescimento de advogados ligados ao crime organizado?
O crime é chamado organizado justamente quando coopta colaboradores em todas as estruturas da sociedade, por isso é necessário investir no fortalecimento das instituições, em processo de depuração dos órgãos de polícia e na qualidade do ensino, incluindo na área jurídica. O Ministério da Educação tem feito muita coisa para fiscalizar a qualidade do ensino em novas faculdades. A própria OAB vem fazendo manifestações nesse sentido, assim como as associações de magistrados e do Ministério Público. As entidades devem atuar a favor da ética, a fim de se evitar a ligação com o crime organizado, com o dinheiro fácil.

A OAB não estaria agindo corporativamente ao aplicar penas brandas e não ter agilidade no julgamento de advogados faltosos pela Comissão de Ética?
É preciso enfrentar com determinação a impunidade. Acredito que a Ordem dos Advogados, assim como qualquer entidade que descubra seus membros contribuindo com o crime, está empenhada em combater, expurgar esse tipo de conduta. É preciso, no entanto, ser firme e não hesitar em cortar a própria carne, se for necessário. Creio que podemos ressaltar como um exemplo dessa coragem a conduta da Polícia Federal, que vem passando por um processo de depuração e não relutou em conduzir investigações que resultaram também na prisão de maus policiais. Atualmente o êxito das dezenas de operações contra o crime organizado que vem sendo realizadas pela corporação mostra que o caminho percorrido, apesar de doloroso, foi acertado e não devemos recuar.

V. Excia concorda que as leis penais brasileiras hoje servem mais aos criminosos do que protegem a sociedade?
O Brasil não tem uma crise legislativa. O Brasil não sente falta de leis. Leis nós temos bastante. A nossa crise é institucional, o que dificulta o cumprimento dessas leis. Precisamos avançar no processo de reconstrução das instituições que cuidam da segurança no País e combater fortemente a impunidade, que é o que deixa a população indignada e descrente de que a justiça pode ser igual para todos.

Os jornalistas e a ABI temem que no bojo da propalada revisão da Lei do Grampo (Lei nº 9.296/96), venha também  agressões à liberdade de imprensa. O que V. Excia tem a dizer sobre o tema?
Hoje é cometida uma série de abusos no que diz respeito á interceptação telefônica.  Não só em relação ao grampo ilegal, mas também quando é feita com autorização judicial. Isso precisa ser normatizado e é essa normatização que está sendo discutida dentro do governo.