Edição

Notas introdutórias sobre a natureza jurídica da arbitragem

30 de setembro de 2007

Ana Tereza Basilio Vice-presidente da OAB-RJ / Advogada

André Fontes Desembargador Federal do TRF-2ª Região e Membro do Conselho Editorial

Compartilhe:

Conhecemos, nestes onze anos de aplicação da Lei de Arbitragem, seu valor e sua funcionalidade prática em nosso país. Os estudos sobre o assunto continuam em franco desenvolvimento e, parale-lamente, a experiência nos mostra que a arbitragem já está inserida na cultura jurídica nacional. Essa dupla perspectiva, teórica e prática, tem se convergido em valiosos estudos e criado um ambiente que não encontra correspondência na forma tradicional de aplicação do direito no Brasil.

À primeira vista, pode parecer uma assertiva dura e radical a de mal comparar o ambiente de aplicação da arbitragem com o do direito, mas, desde já, recordamos que, na arbitragem, não se operou a distância entre a teoria e a prática, que domina o direito brasileiro. Tornou-se lugar-comum nos mais variados ramos do direito a existência de dois mundos distantes.

O primeiro, muitas vezes pejorativamente chamado de acadêmico ou teórico, é o primeiro encontro que o jurista tem com ciência de que vai operar. Esse mundo que preenche o espírito e a mente iniciante, e que também outorga a ele o título de jurista, não o acompanha na extensão de sua vida profissional. O segundo momento é o território da prática, essa respeitada dimensão do conhecimento, que é tão distante da semente teórica plantada no profissional do direito.

Os mais importantes e destacados juristas brasileiros sempre salientaram que o profissional do direito aplica algo diverso e distante do que é encontrado na teoria. Muito mais do que um mero praxismo, essa afirmação está associada, em verdade, a um suposto dinamismo que a prática oferecerias em detrimento da teoria, marcadamente estática. Essa, entretanto, não é uma realidade presente na arbitragem, especialmente em nosso país. Podemos identificar, claramente, os elementos teóricos e práticos da arbitragem, amalgamados ou simplesmente indissociados. Uma leitura breve dos mais conhecidos textos sobre o assunto nos dará a confirmação dessa afirmativa.

O funcionamento e a aplicação da arbitragem levantaram mais controvérsias do que qualquer outro ponto de vista teórico sobre esse assunto. De fato, há tanto comentário crítico a respeito da aplicação da arbitragem que é possível até que alguns de seus defensores tenham, em algum momento, pecado pela contradição. Não obstante todos esses estudos, sérios e importantes para a práxis, em todos eles, o que se vislumbra é uma única questão: a extensão e os limites da arbitragem.

Passados onze anos da Lei da Arbitragem e de sua indiscutível efetividade, gostaríamos de suscitar uma questão que retoma aspecto anterior ao funcionamento e aplicação do instituto. Gostaríamos de voltar ao inconcluso debate em torno da natureza jurídica da arbitragem. É sobre esse tema que desenvolvemos as idéias que se seguem.

O esboço de explicação usado pelos estudiosos da arbitragem pode apresentar-se a partir de três grupos de teorias: Teorias Privatistas,Teorias Jurisdicionalistas e Teorias Intermediárias.

Desde já, ressalvamos que os questionamentos sobre a natureza jurídica da arbitragem traduzem-se na dicotomia público-privado. Os adeptos da caracterização da arbitragem no direito público atentam sempre para seu aspecto jurisdicional. Já os partidários do direito privado a qualificam como instituto negocial ou, mais especificamente, contratual.

A partir dessa polaridade, a dicotomia de direito público-privado sofre abalos pelas críticas mais variadas dos autores atuais, como nunca aconteceu. Para atender ao exame tradicional do direito público e do direito privado, teríamos que agrupar, em cada uma das colunas, a ordem de raciocínio que cada perspectiva conduz. Não nos aventuraríamos aqui a fixar marcos sobre um ou sobre outro. E, por essa razão, damos uma prova clara de nosso desprendimento dicotômico, ao partirmos de uma tríplice análise neste estudo.

A essência das Teorias Privatistas é a de considerar a arbitragem como criação da autonomia da vontade, o que a associa à idéia de negócio jurídico e, de modo mais específico, do contrato. Essa forma de pensar encontra sua origem na Roma antiga. Nos primórdios do direito romano, a solução dos conflitos era feita pelos próprios ofendidos ou, então, pelos grupos a que eles pertenciam, mas, ao longo do tempo, reconheceu-se que, ao invés de usar da vingança individual ou coletiva contra o ofensor, melhor seria a escolha de um terceiro que fixasse uma justa solução ao caso. Esse terceiro escolhido pelas partes era justamente o árbitro, e a justiça que ele oferecia era privada.

Inicialmente, esse arbitramento era facultativo e, tempos depois, tornou-se obrigatório. Só muito mais tarde é que se concebeu a justiça pública em moldes assemelhados aos tempos atuais. Tanto no arbitramento facultativo quanto no obrigatório, a escolha do árbitro era das partes, dependendo, portanto, da vontade delas, sem nenhuma interferência do Estado. A diferença da etapa facultativa para a obrigatória do arbitramento nesse período era que, no último, o Estado não só obrigava os litigantes a escolher um árbitro como também assegurava a execução da decisão arbitral se, porventura, não houvesse seu voluntário cumprimento.

Nas duas formas de arbitramento, entretanto, encontramos a preponderância da vontade e, em conseqüência, o fundo contratual no qual se baseiam os autores modernos para sustentar as posições privatistas. Nem mesmo no arbitramento obrigatório o caráter convencional deixou de existir, pois a obrigatoriedade só se deu porque nem sempre havia acordo, e a intervenção do Estado não era para afastar nenhuma convenção, mas, ao contrário, para afirmá-la. Devemos ressaltar que as mais atuais Teorias Privatistas não se limitam à figura do contrato, pois alguns estudiosos vêem a arbitragem como algo similar à transação. É de boa lembrança que essa concepção não destoa do mencionado fundamento contratual, pois a transação tem nele sua essência.

A base das Teorias Privatistas é a de que os atos volitivos impregnam a arbitragem a ponto de tomar todo o seu conteúdo. A vontade de duas partes na prática de um ato traduz-se em uma declaração única de vontade, de soberania dos litigantes e de poder de disposição, que dão a marca e as feições contratuais à arbitragem.

O cumprimento das disposições negociadas pelas partes na arbitragem é a vontade desses sujeitos e equipara-se ao que se entende no direito contratual por cumprimento das manifestações de vontade dos co-contratantes. Se o cumprimento de um e outro tem o mesmo perfil e caracte-rísticas, pode-se deduzir que a base da vontade sujeita à execução é a mesma. Cumprimento de cunho contratual e vontade de natureza também contratual. Essas são causa e efeito, ou melhor, antecedentes e conseqüentes, presentes de igual modo no contrato e na arbitragem. As evidências de identificação com o contrato estão muito mais caracterizadas pela amplitude da liberdade das partes se comparadas aos mais importantes contratos da atualidade. Em resumo: seria a arbitragem um contrato porque todas as suas características se fazem presentes nesse instituto. Daí o enquadramento privado da arbitragem.

Os defensores das Teorias Jurisdicionalistas da arbitragem partem da premissa não da vontade das partes, e sim da vontade do legislador para fundamentar a arbitragem. Entendem eles que, assim como a jurisdição, a arbitragem revela, acima de tudo, vontade do próprio Estado, traduzida na disposição legal para resolver conflitos de interesses. Sustentam os seguidores dessa tese que o Estado outorga poderes ao juiz e ao árbitro, e ambos exercem a mesma função de resolver conflitos, com a diferença apenas de que incumbe às partes a escolha dos árbitros. A igualdade das funções de árbitro e juiz redundaria na idéia de um sentido único para essa função, que se denomina jurisdição.

O princípio jurisditio in sola notione consistit, desenvol-vido durante a etapa de aplicação do direito romano que precedeu às codificações européias, ou seja, o chamado direito comum (jus commune), bem traduz a idéia desse afirmado sentido único que se deve ter de jurisdição. A jurisdição, una e indivisível, não permite que se conceba distintas funções de resolver conflitos, a do juiz e a do árbitro, que se diferenciam apenas pela faculdade e virtude de os próprios interessados escolherem aquele que irá oferecer a solução do dissídio. Rejeitam os partidários dessa teoria o argumento de que a jurisdição é indelegável e, por conseguinte, não poderia ser atribuída aos árbitros.

Segundo eles, o que faz o Estado não é outorgar a particulares o exercício da jurisdição, mas convertê-los em juízes do litígio, por força da faculdade de escolha atribuída às partes. Também eles sustentam que a arbitragem não importa em jurisdição análoga à dos tribunais. Em verdade, afirmam que os árbitros são verdadeiros juízes revestidos de autoridade pública. As soluções dadas pelos árbitros seriam, portanto, soluções da mesma natureza, embora de outra classe, a dos juízes permanentes. Aos árbitros, os juízes dos casos, se reconheceria uma jurisdição extraordinária e de caráter público. Agregam a tal idéia a dignidade inter partes dada aos casos. Um e outro, árbitro e juiz, resolveriam os litígios para as partes, igualmente sem prejuízos imediatos a terceiros. A isso lembramos que, em correspondência a essas idéias, tanto árbitro quanto juiz submetem sua jurisdição àqueles que concorreram para sua designação: os litigantes. O árbitro, escolhido diretamente de acordo com as regras estabelecidas pelas partes, e o juiz, indiretamente, pelas leis de competência judiciária.

As Teorias Intermediárias ou Mistas não partem de uma crítica à divisão dicotômica do direito para sua sustentação. Tampouco negam essa dicotomia, mas, ao contrário, a afirmam, pois elas foram construídas com a reunião de elementos de uma e de parte do direito público e do direito privado. Nesse grupo, enquadram-se teorias sincréticas e ecléticas, segundo a maior ou menor mistura e identificação dos elementos que compõem o que é de direito público, entenda-se a jurisdição, e o que é do direito privado, traduzido na figura do contrato.

A palavra de ordem dos adeptos dessa forma de pensar se revela na locução jurisdição convencional. Para sustentar uma noção exata dos capítulos de direito privado e público no mesmo fenômeno da arbitragem, asseveram que ela seria uma criação da vontade dos particulares e, portanto, de feições contratuais, que se desenvolve em bases jurisdicionais, como seriam exemplos as sujeições e as limitações a que a vontade das partes é submetida, como ocorre nos tribunais, no exercício mais tradicional da jurisdição. Além disso, tanto o juiz como o árbitro conhecem o assunto trazido pelas partes e terminam por lhes encaminhar resultados que as vinculam e que igualmente podem ser executados.

Demais disso, em ambos, a vontade das partes destina-se à busca da justiça, de modo que o árbitro e o juiz, na identidade e similitude de seus atos, podem conhecer os mais variados aspectos dos temas trazidos pelas partes e dar uma solução justa ao caso. Para os adeptos dessa teoria, a idéia é de que a arbitragem é uma instituição contratual em suas origens e jurisdicional em seus efeitos.

No estado atual do conhecimento jurídico, tais afirmações não encontram uma opinião comum. No período de onze anos de aplicação da lei, entretanto, não é raro que os defensores da arbitragem busquem, na jurisdição, seu paradigma, suas soluções.

Essa perspectiva traz outra relevante questão: as conseqüências da identificação da arbitragem com a juris-dição. Mas isso é uma outra estória.