O Acesso à Justiça Federal e os 20 anos da Constituição

13 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, completa vinte anos como um marco de estabilidade do Estado Democrático de Direito. Alterada por 06 emendas revisionais e 56 emendas constitucionais, sua força normativa continua inabalável, posto que restou sobrepujado o paradigma de cunho essencialmente político, pelo caráter vinculado e obrigatório de seu texto.
 
Essa força vinculante da Constituição de 1988 decorre do modelo de constitucionalização do Direito por meio de um sistema coeso composto por valores, princípios e regras, cuja manutenção foi atribuída ao Estado, por seus Poderes constituídos, na forma preconizada pelo princípio da separação dos Poderes. Ao Poder Judiciário foi destinada posição de extrema responsabilidade no processo democrático, na medida em que a prática de sua função jurisdicional, por meio do exercício da interpretação e da dicção da norma a ser aplicada ao conflito, configura uma das maiores garantias do Estado Democrático de Direito.
 
Totalmente superada a idéia da Constituição como mero instrumento político do Estado, o texto de 1988, denominado “Constituição Cidadã”, extrai a sua força normativa de sua legitimidade, no intuito de concretizar o Estado de justiça social, traduzido, especialmente, pelos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil enumerados no artigo 3º do texto constitucional.
 
Para tanto, a Carta de 1988 incorporou, desde o seu preâmbulo, os mais diversificados mecanismos para assegurar a sua efetividade, cuja violação deve ser coibida pelo Poder Judiciário, ao exercer o monopólio da jurisdição, a sua função precípua de efetivar e concretizar a ordem jurídica.
 
Dentre esses instrumentos está o acesso à Justiça, “o mais básico dos direitos humanos”, segundo Mauro Cappelletti, e sustentáculo do Estado Democrático de Direito, que precisa ser protegido em sua plenitude. Daí porque o constituinte de 1988 tê-lo consagrado, inclusive, para a proteção aos direitos simplesmente ameaçados, conforme decorre do chamado “princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”, insculpido no inciso XXXV, do artigo 5º, do Texto Magno, bem assim o princípio do devido processo legal, originado da cláusula due process of law do Direito anglo-americano,  expressamente previsto no inciso LIV, e os princípios do contraditório e da ampla defesa, inciso LV, do mesmo artigo.
 
O acesso à Justiça traduz-se, assim, pelo exercício do direito de invocar o Poder Judiciário (art. 5º, XXXV) bem como pelo direito de obter uma decisão justa e célere (art. 5º, LXXVIII). A efetividade dessa garantia constitucional está intrinsecamente relacionada ao tipo de estrutura do serviço oferecido pelo Poder Judiciário.
 
A Assembléia Nacional Constituinte, após muitos debates sobre o assunto, preservou a repartição constitucional das competências moldada pelo feitio do Estado federado, revigorando o modelo iniciado pela Constituição republicana, quando foram fixadas duas estruturas judiciárias básicas: a Justiça Estadual e a Justiça Federal.
 
A Justiça Federal foi instituída pelo Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, tendo sido referendada pelo artigo 55 da Constituição de 1891 que limitou a sua composição pelo Supremo Tribunal Federal a tantos juízes e tribunais federais quantos o Congresso criasse. O artigo 78 da Constituição de 1934 não trouxe alterações a essa estrutura, mantendo a Justiça Federal e os seus tribunais, que até então ainda não haviam sido criados, restando à Corte Suprema funcionar como órgão de segunda instância na esfera federal.
 
Em 1937, a Justiça Federal foi extinta formalmente pelo art. 101, II, 2, da Carta imposta, que transformou a estrutura dual, estabelecida em 1891, em sistema único composto apenas pelas Justiças estaduais, destinando aos juízes dos feitos da Fazenda Nacional o julgamento de todos os processos de interesse da União, assegurado o recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 1946 alterou a competência recursal da Suprema Corte criando o Tribunal Federal de Recursos, que foi instituído pela Lei nº 33, de 13 de maio de 1947.
 
Foi pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, que a Justiça Federal de primeiro grau foi restabelecida junto ao Tribunal Federal de Recursos e, após, disciplinada pela Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966, com o referendo da Constituição de 1967, bem como da Emenda Constitucional nº 1, de 1969.
 
A Constituição de 1988 prestigiou a Justiça Federal como órgão essencial à prestação do serviço judicial. Extinguiu o Tribunal Federal de Recursos, criou o Superior Tribunal de Justiça e dotou a Justiça Federal de duas instâncias: a primeira, constituída pelas varas distribuídas nas Seções Judiciárias de cada estado e do Distrito Federal e, a segunda, descentralizada, formada pelos tribunais regionais federais, previstos nos termos  dos artigos 106 a 108 do texto constitucional que dispõem verbis:
 
“Art. 106 – São órgãos da Justiça Federal:
I – os Tribunais Regionais Federais;
II – os Juízes Federais.
 
Art. 107 – Os Tribunais Regionais Federais compõem-se de, no mínimo, sete juízes, recrutados, quando possível, na respectiva região e nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de trinta e menos de sessenta e cinco anos, sendo:
I – um quinto dentre advogados com mais de dez anos de efetiva atividade profissional e membros do Ministério Público Federal com mais de dez anos de carreira;
II – os demais, mediante promoção de juízes federais com mais de cinco anos de exercício, por antiguidade e merecimento, alternadamente.
 
Parágrafo único – A lei disciplinará a remoção ou a permuta de juízes dos Tribunais Regionais Federais e determinará sua jurisdição e sede.
 
Art. 108 – Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I – processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;
b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região;
c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal;
d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal;
e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal;
II – julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição.”
 
O artigo 27, parágrafo 6º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabeleceu incontinente a criação de cinco Tribunais Regionais Federais.
 
A Lei nº 7.727, de 09.01.1989, criou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região definindo a sua primeira composição, que foi integrada por 18 desembargadores federais, sendo um Presidente, um acumulando as funções de vice-presidente e corregedor-geral e duas Seções integradas por quatro Turmas compostas por quatro membros cada uma no total de 16 desembargadores federais.
 
A Lei nº 8.418, de 27.04.1992, autorizou a primeira ampliação dos Tribunais Regionais Federais, de tal forma que a Corte Regional da 3ª Região passou a ser integrada por 27 desembargadores federais: um Presidente, um Vice-Presidente, um Corregedor-Geral, duas Seções compostas cada qual por três Turmas, computando seis Turmas formadas por 24 membros. Foi criado também o Órgão Especial.
 
Por fim, a Lei nº 9.968, de 10.05.2000, tratou de disciplinar a segunda ampliação dos Tribunais Regionais Federais, contemplando a Corte da 3ª Região com 16 novos cargos de desembargadores federais passando, assim, a ser integrada por 43 desembargadores federais: um Presidente, um Vice-Presidente, um Corregedor-Geral e outros 40 membros compondo 10 Turmas e três Seções, o que permitiu a criação da 3a Seção, composta de quatro Turmas e especializada nas matérias de Direito Previdenciário e Assistência Social.
 
Todo esse escorço histórico-constitucional culmina por justificar o extenso delineamento do rol de competência da Justiça Federal de primeiro grau, previsto no artigo 109 da Constituição de 1988, restando à Justiça Estadual a competência residual.
 
A concepção da excelência da prestação jurisdicional na Justiça Federal tem sofrido transformações e todas convergem essencialmente a um mesmo anseio: a busca da celeridade no oferecimento do serviço judicial. Não é suficiente que o ordenamento jurídico nacional proclame os direitos, mais do que isso, o cidadão necessita e espera ver reparada qualquer lesão aos direitos proclamados. Nas palavras de Norberto Bobbio:
 
“Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.”
 
Não se cuida, portanto, de assegurar simplesmente o ingresso com a ação. Não bastam tampouco as decisões, sentenças, acórdãos e remédios heróicos. Trata-se, isto sim, de garantir a utilidade da resposta judicial capaz de produzir resultado prático na vida das pessoas.
 
Essa é a promessa do constituinte: a pacificação das pessoas em conflito por meio do direito à tutela jurisdicional efetiva. Para tanto, o grau de excelência no cumprimento da função judicial estava a depender da inadiável renovação dos instrumentos e formas de atuação da máquina judiciária diante da singularidade crescente das relações sociais, especialmente no que se refere à ordem econômico-financeira.
 
Nesse sentido, durante os vinte anos de promulgação da Constituição de 1988, merecem registro as emendas constitucionais nos 22 e 45, cujo teor permitiu a melhoria do serviço judicial na esfera da jurisdição federal.
 
A Emenda Constitucional nº 22, de 18.03.1999, verdadeiro marco histórico, alterou o artigo 98 da Carta para, atendendo aos apelos da magistratura federal, permitir à Justiça Federal a possibilidade de oferecer a prestação jurisdicional por meio dos Juizados Especiais Federais, nos seguintes termos:
 
“Art. 98 – (…)
Parágrafo único – Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.”
 
A Lei nº 10.259, de 12.07.2001, disciplinou os Juizados Especiais Federais estabelecendo no caput de seu artigo 19 que a sua instalação nas capitais dos estados dar-se-ia, necessariamente, depois de decorridos seis meses de sua publicação. O Tribunal da 3º Região cumpriu o seu mister e em 14 de janeiro de 2002 instalou os Juizados Especiais Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul.
 
A criação dos Juizados Especiais Federais não tem, em princípio, a função de desafogar a Justiça comum federal, mas, isto sim, de garantir o acesso dos cidadãos ao Poder Judiciário Federal.
 
A Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 08 de dezembro de 2004, inclui o inciso LXXVIII ao artigo 5º e os parágrafos 2º e 3º ao artigo 107, bem como altera a redação do artigo 93, inciso XIII, verbis:
 
“Art. 5º – (…)
……………………………………………………………………….
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação;
……………………………………………………………………….
Art. 93 – (…)
……………………………………………………………………….
XIII – o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população;
………………………………………………………………………
Art. 107 – (…)
………………………………………………………………………
§ 2º – Os Tribunais Regionais Federais instalarão a Justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários;
§ 3º – Os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à Justiça em todas as fases do processo.”
 
A denominada emenda da “Reforma do Judiciário” veio atender aos anseios do próprio Poder Judiciário no sentido de proporcionar aos cidadãos um serviço judicial de excelência.
 
A criação de novos tribunais dependeria de alta cifra de recursos para facilitar o acesso do jurisdicionado à 2ª Instância do Poder Judiciário. Contudo, a criação da Justiça Federal itinerante e das Câmaras Regionais descentralizadas, previstas pelos parágrafos 2º e 3° do artigo 107, facilitará o efetivo acesso à Justiça Federal sem maiores custos.
 
É inegável a valorosa contribuição das experiências obtidas por dezenas de trabalhos itinerantes dos Juizados Especiais Federais da 3ª Região que, fundados nas singelas normas da Lei nº 10.259, de 12.07.2001, atenderam a milhares de pessoas, muitas delas à margem da cidadania, abandonadas à sua própria sorte, que verdadeiramente não acreditavam mais nas instituições do Estado. Pois, conforme afirma Boaventura de Sousa Santos “quanto mais caracterizadamente uma lei protege os interesses populares e emergentes maior é a probabilidade de que ela não seja aplicada”, daí porque o mestre português recomenda esforços ao Poder Judiciário no sentido de transformar o direito formalmente vigente em direito socialmente eficaz.
 
A Corte da Terceira Região não tem medido esforços na busca da efetividade do princípio constitucional da celeridade processual. A racionalização do trabalho tem sido a meta diária da Presidência do Tribunal da Terceira Região visando o aperfeiçoamento e a excelência da prestação jurisdicional por meio de ações nas áreas de: tecnologia da informação, treinamento e capacitação de servidores e magistrados, convênios com os mais diversos órgãos públicos para acesso rápido aos cadastros e informações, modernização dos prédios, desenvolvimento de novos procedimentos eletrônicos para facilitar a transição do processo em mídia papel para a mídia eletrônica, utilização da videoconferência na esfera jurisdicional e administrativa como forma de diminuir as distâncias e cortar os custos, incentivo perene à conciliação em demandas de primeiro e segundo graus, utilização do processo virtual nos Juizados com a absoluta eliminação do papel, enfim, tudo o que for necessário e bom à administração judicial.
 
É esse o mister a ser renovado dia-a-dia pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região: garantir a efetividade da  Constituição da República de 1988 pelo oferecimento de um serviço judicial federal eficaz.

 
Marli Marques Ferreira
Presidente do TRF-3ª Região

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