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O aprimoramento da monitoração eletrônica de pessoas no âmbito jurídico-penal brasileiro por meio da Resolução no 412/2021 do CNJ

21 de março de 2022

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O monitoramento eletrônico de pessoas no âmbito penal foi instituído, no Brasil, pela Lei no 12.258/2010, que alterou dispositivos da Lei de Execução Penal, incluindo a possibilidade do uso de tornozeleira eletrônica em saída temporária e prisão domiciliar. A Lei no 12.403/2011, por sua vez, alterou dispositivos do Código de Processo Penal, incluindo a monitoração eletrônica como medida cautelar diversa da prisão.

Em agosto de 2021, por meio da edição da Resolução no 412, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a estabelecer diretrizes e procedimentos para a aplicação e acompanhamento da medida de monitoração eletrônica de pessoas. Referida Resolução afigura-se de curial importância diante de um contexto legislativo ainda marcado por lacunas no que tange à aplicação do instituto e de um cenário no qual não se observa uniformidade na aplicação/acompanhamento do monitoramento nas diferentes Unidades Federativas, o que produz insegurança jurídica quanto ao seu correto manejo. Nesse sentido, são os dados apresentados pela recente pesquisa, intitulada “Monitoração Eletrônica Criminal: evidências e leituras sobre a política no Brasil”, realizada pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), a qual integra o Programa “Fazendo Justiça” – parceria do CNJ com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). 

A pesquisa incluiu levantamento em diferentes capitais entre outubro de 2019 e março de 2021, apontando a ausência de adequada avaliação do perfil da pessoa monitorada, inexistência de fluxos adequados de informações e problemas técnicos, entre outros fatores que ainda dificultam a correta utilização da monitoração eletrônica. A partir de entrevistas realizadas com indivíduos monitorados eletronicamente, o estudo apontou que 50% dos entrevistados consideram a medida como adequada, 76% dizem conhecer seus direitos e deveres e 80% afirmam que tiveram relações sociais comprometidas por conta do dispositivo. No que diz respeito à operabilidade da monitoração eletrônica, o estudo, por meio de entrevistas com pessoas que atuam junto às centrais de monitoração, apontou que ainda há alguns desafios a serem superados, como instalações inadequadas e déficit de pessoal.

Considerando esse cenário, importantes medidas vêm sendo adotadas pelo CNJ no sentido da uniformização/acompanhamento da monitoração eletrônica de pessoas desde de 2015, por meio da celebração de Termo de Cooperação Técnica com o Ministério da Justiça (MJ), com o objetivo de, a partir das práticas existentes, delinear uma política de monitoração eletrônica que viabilizasse uma aplicação eficaz e uniforme do instituto – o que resultou na edição dos Diagnósticos Nacionais sobre a Política de Monitoração Eletrônica, publicados pelo Depen-MJ. O primeiro desses relatórios subsidiou a redação da Resolução CNJ no 213/2015, cujo Protocolo I estabelece diretrizes para a aplicação da medida enquanto cautelar substitutiva da prisão processual, além de procedimentos de atuação para as Centrais de Monitoração Eletrônica.

A Resolução no 412/2021, como salientado, tem por escopo a elaboração de protocolos, procedimentos e diretrizes uniformes quanto à aplicação da medida de monitoração eletrônica no âmbito do Poder Judiciário, objetivando gerar um cenário de maior segurança jurídica tanto aos magistrados de todo o país quanto às Centrais de Monitoração Eletrônica e aos sujeitos destinatários da medida (monitorandos). A proposta aborda a monitoração eletrônica de forma sistemática, detalhando as hipóteses de aplicação previstas no ordenamento e as atividades a serem executadas para o acompanhamento efetivo da medida – sobretudo na exposição dos procedimentos para a gestão dos incidentes cotidianos, presente no Protocolo anexo ao texto da Resolução, oferecendo elementos para a relação entre os órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo responsáveis por todo o ciclo de determinação, acompanhamento e extinção da medida.

A Resolução também atenta, nos termos dos seus Considerandos, ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mais especificamente à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigos 4o e 5o); às “Regras de Nelson Mandela”, “Bangkok” e “Tóquio”, da Organização das Nações Unidas (ONU); aos dispositivos legais do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal que versam sobre a utilização do monitoramento eletrônico; ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal em reconhecer o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional (ADPF no 347); ao verbete da Súmula vinculante no 56 do STF; aos relatórios nacionais e internacionais produzidos acerca da temática dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.

Atenta ao fato de que a monitoração eletrônica configura, também, restrição a direitos fundamentais, a Resolução marca, em seu art. 3o, §1o, preocupação com a utilização da medida de monitoração eletrônica como ultima ratio, na medida em que preconiza que, “sempre que as circunstâncias do caso permitirem, deverá ser priorizada a aplicação de medida menos gravosa do que a monitoração eletrônica”. Tal dispositivo afigura-se de curial relevância, uma vez que a monitoração não pode ser tratada de modo meramente utilitarista – como uma espécie de “remédio” para a superação do estado de coisas inconstitucional no cárcere, sob pena de ser banalizada e se transformar em uma verdadeira medida de expansão do controle penal para os espaços sociais além cárcere. Referida preocupação também se evidencia pelo teor do §4o do dispositivo em comento, que inviabiliza a utilização da medida em relação às pessoas menores de 18 anos e aquelas com até 21 anos de idade, submetidas à legislação especializada em infância e juventude.

O art. 4o, por seu turno, estabelece em seu parágrafo único importante diretriz no sentido de fixação de prazo razoável para reavaliação da medida, evitando, com isso, que a monitoração eletrônica incida na mesma problemática já evidenciada, por inúmeros relatórios produzidos no País, quanto à duração exacerbada das medidas cautelares diversas da prisão.

Do mesmo modo, o art. 6o preconiza que o período durante o qual a pessoa estiver submetida à monitoração eletrônica nos casos de saída antecipada ou em substituição à privação de liberdade em estabelecimento penal, com regular cumprimento das condições impostas, será considerado como tempo de cumprimento de pena, o que se traduz como medida adequada à leitura convencional e constitucional do Processo Penal.

No que tange à utilização da medida da monitoração nos casos envolvendo violência doméstica, a Resolução encontra-se em consonância com as medidas recomendadas pelo CNJ para o aprimoramento na fiscalização do cumprimento das medidas determinadas pela Lei no 11.340/2006 (art. 22, II e III), destacando, no art. 7o, a importância da avaliação das circunstâncias do caso concreto na fixação dos limites da área de exclusão (§1o); facultando a possibilidade de criação de área de exclusão dinâmicas, mediante o uso de unidade portátil de rastreamento (UPR) (§2o); salientando que as medidas protetivas de urgência serão mantidas, enquanto necessárias, mesmo no caso de negativa ou indisponibilidade para uso de UPR, a partir de áreas de exclusão fixas, determinadas judicialmente (§3o); e recomendando o encaminhamento prioritário de autores de violência doméstica e familiar contra a mulher para programas de grupos reflexivos, acompanhamento psicossocial e demais serviços previstos na legislação específica (§4o).

O art. 8o da Resolução, por sua vez, cuida de questões afetas à reinserção social da pessoa monitorada, viabilizando: a) estudo e trabalho, incluindo a busca ativa, o trabalho informal e o que exige deslocamentos; b) atenção à saúde e aquisição regular de itens necessários à subsistência; c) atividades relacionadas ao cuidado com filhos e familiares; d) comparecimento a atividades religiosas. O parágrafo único do dispositivo em apreço prioriza a adoção de medidas distintas da monitoração eletrônica, em conjunto com o encaminhamento voluntário à rede de proteção social, nos casos em que as condições socioeconômicas ou de saúde da pessoa monitorada o exigirem (a exemplo de sujeitos em situação de rua ou residentes em locais sem fornecimento regular de energia elétrica ou com cobertura limitada ou instável quanto à tecnologia utilizada pelo equipamento, de pessoas idosas, portadoras de deficiências ou doenças graves e, ainda, gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até 12 anos ou por pessoa com deficiência); por fim, o dispositivo também recomenda a utilização de medidas diversas da monitoração eletrônica em casos nos quais as circunstâncias da pessoa a ser monitorada prejudiquem o cumprimento da medida, em razão de questões culturais, dificuldade de compreensão sobre o funcionamento do equipamento ou sobre as condições eventualmente impostas (pessoas com sofrimento mental, usuárias de álcool ou drogas; indígenas ou integrantes de comunidades tradicionais). Trata-se, pois, de dispositivo de extrema relevância para que a utilização da monitoração eletrônica, como tábula rasa, não agrave ainda mais as condições de vida de sujeitos nas condições especificadas, tornando a medida extremamente aflitiva ou gravosa.

Com efeito, uma questão fundamental a ser observada em relação à monitoração eletrônica diz respeito à rede de assistência às pessoas submetidas à medida, tendo em vista que uma eventual “ressocialização” não se afigura possível sem o oferecimento de mínimas condições materiais e jurídicas – recorde-se que a imensa maioria da população carcerária brasileira é formada por pessoas com as mais diversas vulnerabilidades sociais. Um bom exemplo dos resultados positivos ou negativos que o monitoramento eletrônico pode atingir é dado por Frieder Dünkel, que analisa a utilização do instituto no contexto europeu. Segundo o autor, em países escandinavos, bem como na Áustria, Holanda e outros, a ênfase principal na utilização do monitoramento se dá ainda no ideal da reabilitação, e, portanto, sua utilização é voltada para o suporte aos regimes de semiliberdade. 

É importante destacar que está prevista, no ordenamento jurídico brasileiro, uma rede de assistência às pessoas submetidas à monitoração eletrônica. O Decreto no 7.627/2011, que regulamenta a monitoração eletrônica de pessoas, prevê, no seu art. 4o, inciso III, que cabe aos órgãos de gestão penitenciária “adequar e manter programas e equipes multiprofissionais de acompanhamento e apoio à pessoa monitorada condenada” e, no inciso IV, “orientar a pessoa monitorada no cumprimento de suas obrigações e auxiliá-la na reintegração social, se for o caso”. Apesar disso, parece haver uma insuficiência e carência da presença de tais serviços, conforme aponta o Diagnóstico do Depen e a pesquisa realizada pelo Crisp/UFMG, já mencionada.

O art. 10 da Resolução estabelece a importância e a relevância da constante interlocução entre o Poder Judiciário e as Centrais de Monitoração Eletrônica acerca da disponibilidade dos equipamentos de monitoração. Na situação, o sujeito a ser monitorado não poderá ser prejudicado por questões relacionadas à indisponibilidade dos equipamentos para a monitoração.

Afinal, conforme adverte Faustino Gudín Rodríguez-Magariños, é necessário levar em conta, com esmero, a argumentação doutrinária a fim de “buscar las necesarias garantías para evitar que la vigilancia electrónica se convierta en un instrumento deshumanizado de represión”.

A interlocução do Poder Judiciário com as Centrais de Monitoração é ressaltada, também, no art. 11 da Resolução, que destaca, ainda, em seu inciso III, a relevância/importância da atuação das equipes multidisciplinares no âmbito das Centrais, as quais são responsáveis por qualificar o tratamento de incidentes, mobilizar a rede de serviços de proteção social e colaborar no acompanhamento das medidas estabelecidas judicialmente, a partir da interação individualizada com as pessoas monitoradas. Essa atuação se mostra fundamental para que a monitoração cumpra, efetivamente, com sua função. Do mesmo modo, o inciso IV recomenda a “adoção de padrões adequados de segurança, sigilo, proteção e uso dos dados das pessoas em monitoração, respeitado o tratamento dos dados em conformidade com a finalidade das coletas” – o que se mostra extremamente importante na proteção dos direitos fundamentais dos sujeitos monitorados, o que é reforçado diante do teor do caput do art. 13 da proposta, que dispõe que “os dados coletados durante o acompanhamento das medidas de monitoração eletrônica possuem finalidade específica, relacionada ao acompanhamento das condições estabelecidas judicialmente, podendo ser utilizados como meio de prova para apuração penal e estando, de qualquer forma, abrangidos pelo direito previsto no art. 5o, X, da Constituição Federal e legislação de proteção de dados pessoais”.

No que tange ao tratamento de incidentes no curso da monitoração eletrônica, a Resolução acertadamente assegura ao sujeito monitorado, em seu art. 12, §2o, os princípios do devido processo legal, ampla defesa e proporcionalidade, evitando, com isso, posições arbitrárias e discricionárias, o que é também ressaltado pela possibilidade de realização de audiência de justificação, nos termos no §3o

Feitas essas considerações com vistas, fundamentalmente, a contribuir com a discussão posta pela Resolução ora apresentada, salienta-se, finalmente, que ela representa um importante avanço, na medida em que oferece, com supedâneo no art. 103-B, §4o, da Constituição Federal, diretrizes seguras de atuação para a magistratura nacional, de modo a fortalecer o papel do Poder Judiciário na construção e fomento de uma política pública fundada em evidências, com reflexos efetivos no aprimoramento do sistema penal brasileiro. A edição dessa resolução, portanto, evidencia um importante esforço do CNJ no sentido de fazer com que, na encruzilhada entre maximização de liberdade versus reforço do controle, a monitoração eletrônica não enverede, inexoravelmente, pelo segundo caminho, ou seja, da sua transformação em uma verdadeira “prisão a céu aberto”.

Notas___________________________

1Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/diagnostico-politica-monitoracao-eletronica.pdf

2 DÜNKEL, Frieder. Electronic Monitoring in Europe – a Panacea for Reforming Criminal Sanctions Systems? A Critical Review. Kriminologijos studijos, [s.l.], v. 6, p. 58-77, 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332418500_Electronic_Monitoring_in_Europe_-_a_Panacea_for_Reforming_Criminal_Sanctions_Systems_A_Critical_Review. Acesso em: 23/12/2021.

3 BRASIL, Ministério da Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional. “Diagnóstico sobre a política de monitoração eletrônica”. Brasília: Depen, 2018. Disponível em: https://www.undp.org/content/dam/brazil/docs/publicacoes/paz/diagnostico-monitoracao-eletronica-2017.pdf. Acesso em: 23/12/2021.

4 RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, Faustino Gudín. “Cárcel electrónica y sistema penitenciario del Siglo XXI”. Anuario de la Facultad de Derecho (Universidad de Alcalá), v. 2005, p. 51-86, 2004/2005. Disponível em: https://ebuah.uah.es/dspace/bitstream/handle/10017/6128/C%c3%a1rcel_Gud%c3%adn_AFDUA_2004_2005.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 14/06/2021.