O baixo nível da crise

5 de março de 2005

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O intervalo de silêncio, entrecortado de ruídos abafados de queixas e acusações cruzadas no edificante espetáculo da firmeza do caráter e da pureza ética dos contendores, encerrou-se com o velório das lamúrias abafado pela cantoria das reivindicações na barraca oficial montada para a recomposição da base parlamentar em pandarecos com a redistribuição das vagas abertas ou a serem liberadas pela desocupação dos inquilinos caídos em desgraça.

No clima transparente do ar puro de Brasília, é perfeitamente natural que a rebelião do baixo clero, carimbada pela eleição do deputado Severino Cavalcanti para presidente da Câmara, preserve o baixo nível em que se movimenta à vontade e com lucros que arregalam os olhos de cobiça.

De logo, o ilustre e ilustrado presidente garantiu o troféu de autor da melhor frase do ano, com todas as sutilezas do rodeio do apuro da linguagem e a áspera marca da espontaneidade que nada esconde. Cenário perfeito da clássica entrevista-relâmpago com os colegas da imprensa brasiliense, depois do almoço com o comandante da Aeronáutica, Luiz Carlos da Silva Bueno e o ministro da Coordenação Política, deputado Aldo Rabelo (é um hábito da capital a agradável fusão da atividade política com a comilança, em geral com a conta paga pela Viúva). Sentença curta, com seu imediato desenvolvimento. Lapidar na síntese e no impacto da surpresa: “A sociedade não é contra o aumento dos deputados’’ – cunhou em bronze o guru das mordomias, com o rosto de nordestino, talhado à faca, sem a mais leve contração: estava falando sério.

O que comprovou ao descascar a intrigante revelação: ‘’É evidente que a sociedade quer. Ela está aceitando. Não tem sido é bem esclarecido’’. Didático, ensinou: ‘’O que a sociedade não aceita é a desonestidade, é roubalheira’’.

Ignora-se com que faixas representativas da sociedade, o presidente Severino recolheu a carícia do apoio ao mais importante, ao decisivo compromisso da sua plataforma de campanha.

Desafortunadamente, o terceiro na hierarquia do poder atropela a evidência, o bom senso e todas as pesquisas que desqualificam o Congresso com índices vexatórios de rejeição popular.

Não é preciso catar argumentos para demonstrar o óbvio. Nem remexer no monturo da crônica de um dos piores congressos do período republicano. Basta a sumária leitura da cobertura dos desdobramentos da crise nos jornais e nas revistas, a atenção ao noticiário das TVs ou ao murmúrio das ruas, no repugnado e preocupante desinteresse pela disputa pela carniça e o filé dos cargos, no corpo-a-corpo entre aliados e aderentes.

Às escâncaras, sem traço de rubor. O presidente do Senado, senador Renan Calheiros, cobra do presidente Lula o compromisso da convocação para ‘’discutir os detalhes dessa reforma’’. Reitera, impaciente: ‘’Já faz tempo e estamos esperando’’. No que foi saudado, com aplauso entusiástico, pelo presidente Severino: ‘’O Renan é sábio. Está falando como amigo’’.

No abagunçado baú do PT carambola no pano verde a ambição que sonha com um cômodo no cortiço ministerial com a angustiosa expectativa dos ameaçados de despejo. A corrida por uma fatia do bolo ganhou o apelido reforma ministerial para a montagem de um governo de coalizão.

Como o governo Lula está sempre começando amanhã e cultiva a tática do adiamento, de empurrar as decisões com a pança, a crise rola e apodrece como restos de comida esquecidos pelo desleixo. Contorna-se o problema para não enfrentá-lo na sua exata dimensão.

A crise ética que mancha a respeitabilidade do Legislativo amesquinha-se no bate-boca sobre o desatino da equiparação dos subsídios de senadores e deputados ao salário de ministro do Supremo Tribunal Federal, sem uma única palavra sobre as suas repercussões financeiras com o imediato reajuste dos deputados estaduais e vereadores.

Mordomias em penca, benefícios, vantagens, verba para os gabinetes privativos, a verba indenizatória para os gastos do fim de semana nos estados de suas excelências – pérola da criatividade da gula insaciável que inventou o salário oblíquo – demais repasses diretos e indiretos que superam os R$ 100 mil mensais, passam despercebidos debaixo da cerca. Junto com a reforma política, encolhida para a aprovação da fidelidade partidária que impeça a vergonha do troca-troca e a sua última patifaria: o deputado que aluga o mandato, com tabela de preço pelo tempo de serviço.

O que vem por aí? Será que ainda não vimos tudo?

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