Edição

O Cristo mutilado

30 de novembro de 2007

Orpheu Santos Salles Editor

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Foi nas meditações quaresmais de insigne jesuíta espanhol, Ramón Cué, que fomos buscar a idéia básica para a confecção deste artigo.
Dentre as histórias, lendas e narrativas que quase sempre ilustram os milhares de compêndios de pregação cristã, editados pelo mundo afora, nenhuma nos afigura tão pungente – tão pungente e tão farta de sadio simbolismo – quanto a que abre as páginas de uma das mais conhecidas obras evangélicas do renomado sacerdote espanhol – a história do Cristo Mutilado.
Conta-nos o padre Ramón que, certa vez, em Sevilha, ao visitar, casualmente, o estabelecimento comercial de próspero antiquário, ali encontrou uma imagem mutilada de Cristo, que, certamente, fora profanada pelo vandalismo de algum ateu. Após demorada discussão com o comerciante, em torno do preço pelo qual a imagem lhe poderia ser cedida, o sacerdote comprou-a, afinal, com indisfarçável hesitação – e levou-a para casa.
Mais tarde, ao fixar os olhos na imagem desfigurada, à qual faltavam um dos braços, uma das pernas e o próprio rosto, o piedoso jesuíta assim falou para si mesmo:
“Não te importes, meu Cristo. Vou mandar restaurar-te. Não quero e não posso ver-te, assim, mutilado. Restaurando-te, pensarei que te desagravo por mim e pelos outros. Sim, vou mandar restaurar-te, ainda que o restaurador me exija mil e quinhentas pesetas. Não as tenho, mas hei de obtê-las. Mereces tudo e custa-me ver-te assim. Amanhã mesmo, levar-te-ei à oficina do restaurador. Aquele que está na ‘Casa do Artista’, junto ao Jueves, onde te comprei.”
E eis que uma voz, ao mesmo tempo doce e irada, respondeu-lhe na solidão da noite:
“Não me restaures. Proíbo-te. Ouves? Proíbo-te. Espero que, vendo-me, assim, mutilado, afinal, te percebas de que há milhares de irmãos que convivem contigo, ignorados e distantes, e que estão, como Eu, mutilados, doentes, esmagados pelo sofrimento. Sem braços, porque não têm possibilidades e nem meios de trabalho, sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida e sem olhos, porque os perderam tragicamente. Não! Não me restaures. Talvez, vendo-me assim, desfigurado, os teus olhos se volvam para o sofrimento dos teus irmãos. Para o sofrimento dos teus irmãos também mutilados e vencidos pela vida.”
E quantas pessoas existem, entre nós, por este Brasil imenso – pessoas que, graças aos votos do povo, tornaram-se poderosas, ufanas –,  e que hoje, indiferentes e esquecidas dos seus mandantes, mostram-se presunçosas  –  e também se mostram alheias, pasmosamente alheias aos sofrimentos de seus enganados compatrícios que pervagam miseráveis nos caminhos em busca de lenitivo para suas doenças, de leitos nos hospitais públicos e medicamentos para curar suas desgraças. Todos vítimas do descaso, do abandono e da injustiça.
No entanto, todos são nossos irmãos em Cristo. Todos são nossos irmãos em Cristo Mutilado.
A transcrição da obra do Padre Ramón Cué, em seu pungente significado cristão, vem muito a propósito da tramitação do Projeto governamental que prorroga a CPMF, criada por iniciativa do emérito médico-cirurgião Adib Jatene, cuja destinação financeira para a saúde foi desvirtuada para atender fins políticos, em detrimento dos  infelizes e desgraçados doentes, que se quedam desamparados nas filas dos hospitais.
É inconcebível que os membros do Congresso Nacional – em especial os Senadores da República, que, no momento, decidem a sorte de milhões de brasileiros deserdados e refugados da assistência médica e hospitalar, que se encontram aos montes, jogados nas enfermarias imundas e corredores sujos dos horrendos hospitais públicos, em todos os Estados e Municípios deste Brasil, esperando receber de seus representantes no Senado Federal um mínimo de piedade e misericórdia – não se comovam com as desgraças de seus conterrâneos que mínguam, sofrem e morrem nas portas dos nosocômios.
Por que, então, para solucionar esse terrificante problema nacional, nossos Senadores e Deputados não se compadecem dessa multidão de desgraçados brasileiros, doentes e abandonados, e destinam toda a contribuição da CPMF, isto é, os QUARENTA BILHÕES DE REAIS, para sanar as dificuldades da saúde e solucionar o atendimento dos infelizes que aguardam, desesperados, o socorro e a assistência que lhes é devida pelo Poder Público?
Que haja boa vontade nos homens públicos, e que o grito do Cristo Mutilado ecoado no quarto do padre Ramón chegue ao coração dos Senadores da República.