Este artigo analisa o comportamento do brasileiro diante das diferenças sociais causadas por políticas eugênicas que ainda se perpetuam no inconsciente coletivo dos brasileiros.
No período de 1917 a 1936, a eugenia no Brasil produziu mobilização da intelectualidade de forma que novas diretrizes educacionais moldassem comportamentos. O Boletim de Eugenia, periódico dirigido pelo médico Renato Ferraz Kehl, contribuiu muito para a “novidade científica”. Tanto o Boletim quanto as Constituições de 1930 e 1937 fomentaram propostas para a educação relacionada aos ideais eugênicos, tais como o estímulo à educação [eugênica] para higiene social, a obrigatoriedade, na Constituição de 1937, da educação física em todos os níveis de ensino como medida para se alcançar a estética ideal [eugenia].
A concentração populacional e a estrutura econômica e social embutida no sistema capitalista trouxeram inúmeros problemas sociais, tais como insalubridade, doenças epidêmicas, péssimas condições de trabalho e moradia, aumentando ainda mais as discriminações advindas com a formação das distintas classes sociais (Alves, 2001).
Segundo Teixeira (1976), o sistema educacional mantida em razoável funcionamento até 1930, consistia de um ensino primário gratuito, mas de oportunidade reduzida, o ensino secundário pago, para servir de estrangulamento a qualquer desejo de ascensão social, e o ensino superior gratuito de caráter extremamente ineficiente. Assim, a concepção do sistema escolar brasileiro, entre os anos de 1920 a 1930, era selecionador e não formulador. Diante desta arquitetura, que se visava manter privilégios de camadas sociais e econômicas mais elevadas, pode-se dizer que a educação servia para a elite brasileira, tanto que os pais abastados mandavam seus filhos estudarem fora do Brasil (Azevedo, 2005). O sistema de ensino então impedia a mobilidade social, de forma a manter certos indivíduos dentro de seu status social.
A Constituição Federa de 1934, pela primeira vez na história brasileira, garantia à educação para todos os brasileiros. No artigo 150, alínea a, o Plano Nacional de Educação era competência da União, porém a educação correspondia também à fixação do Estado Novo, com traços ditatoriais. Na Era Vargas, o sistema educacional tinha a finalidade de manipular os subalternos, pois a classe trabalhadora passava a um ter acesso à escola, mas o tipo de oferta não deveria possibilitar a mobilidade social (Silva e Silva Viva, 2006).
Para boa parte dos eugenistas, o foco eram os jovens em idade escolar despertando neles o compromisso com os ideais eugênicos, principalmente instruindo os jovens a não realizar matrimônio entre raças e classes sociais diferentes, bem como gerar filho, entre casais considerados sadios, eugenicamente, de forma que contribuísse para a formação de uma elite nacional perfeita. O processo de eugenia no Brasil teve seus pilares construídos graças à Constituição de 1934:
Artigo 138, “a União, os Estados e aos Municípios, nos termos das respectivas leis caberia: a) estimular a educação eugênica”.
Através dessa alínea, os eugenistas visavam conscientizar os jovens e adultos de forma que o matrimônio entre pessoas de uma mesma classe social e étnica deveriam ser à base do aperfeiçoamento da estrutura social brasileira.
É de fácil constatação, que os ideais de eugenia, e seus defensores, não encontraram dificuldades para incutir suas convicções ideológicas; graças ao dispositivo Constitucional, o pensamento de exclusão social para melhoria da saúde física e psíquica do povo brasileiro foi possível.
O Brasil sempre apresentou diferenças abissais entre as camadas sociais, de forma que a mobilidade social estava restrita às classes sociais mais elevadas. Pode-se dizer que a educação voltada para diferenciações sociais e étnicas, por longas gerações, possibilitou a criação no inconsciente coletivo, de que nordestino e negro não tivessem capacidades para acompanhar o desenvolvimento que se esperava das mentalidades eugênicas.
Essa mentalidade influenciou pais, que por sua vez, passou a influenciar os filhos, de maneira que as crianças conceituadas como geneticamente propensas (superiores geneticamente) a harmonia social passassem a discriminar crianças, e até adultos, que tivessem traços caracterizadores de arruaceiros, pessoas propensas à criminalidade. De certa forma tais pessoas que se caracterizavam como propensas à criminalidade eram principalmente da raça negra, o que se explica a segregação, velada, aos negros, para os morros, de maneira que estes não tivessem contato contínuo com as pessoas consideradas “sangue bom” – o termo foi usado por Francis Galton para conceituar pessoas geneticamente propensas à civilidade, enquanto “sangue ruim” seria indivíduo propenso, geneticamente, a criminalidade.
Não podemos esquecer que a eugenia foi criada no período em que a Europa apresentava gravíssimos problemas de higiene, desemprego e problemas sanitários, esse período foi durante o século XIX, na Inglaterra, o berço do darwinismo social e da eugenia. Na era vitoriana da Inglaterra, meados do século XIX, o surgimento e desenvolvimento das indústrias favoreceu a migração de grande número de pessoas, que saíam do campo deslumbradas com a potencialidade de trabalho que as cidades poderiam ofertar. Esse fluxo intenso fez com que grande parte dos trabalhadores trabalhasse e vivesse sob condições deploráveis na cidade que cresceu desordenadamente.
Através desses acontecimentos é que despertou interesse dos higienistas, para curar os doentes e evitar degeneração da população. A burguesia por sua vez, queria se diferenciar do proletariado, de forma a alienar a multidão e diferenciar-se dela. Não é à toa que teorias formuladas por Thomas Malthus, JeanBaptite de Lamarck e Charles Darwin serviram de base para ideologias de melhoria da qualidade de vida das pessoas, principalmente através do darwinismo social e, posteriormente, a eugenia. Segundo postulados eugenistas, a degeneração das virtudes humanas se devia ao cruzamento genético (miscigenação), ou seja, a falta de cuidado reprodutivo de pessoas entre várias etnias acabava gerando indivíduos degenerados, de forma que somente através da reprodução controlada garantiria o caráter genético saudável, o que proporcionaria a limpeza das mazelas humanas.
Através desse conceito, muitos cientistas, que defendiam a ideia da reprodução controlada, encorajavam, com habilidosas persuasões, casamentos entre pessoas com características desejáveis – eugenia positiva – e desestimulando a reprodução entre os doentes e incapacitados – eugenia negativa. Não podemos esquecer que esse movimento europeu desencadeou várias políticas segregacionistas mundialmente, de forma que as políticas, como nos EUA, por exemplo, e também na África, não permitissem que os negros não se misturarem-se com os brancos. Chegava-se ao absurdo de criar duas entradas, distintas, para os negros e para os brancos.
Pode não parecer, mas tais conceitos ainda são muito visíveis na nossa sociedade brasileira, em pleno século XXI. As políticas sociais do Governo Federal, que começaram na década de 1990, não vêm agradando principalmente a elite brasileira, e a antiga classe social C – atualmente existe a nova classe social média.
O Governo Federal vem colocando em prática a segunda dimensão dos direitos humanos, que é o dever de fazer, este dever se encontra expresso no artigo 6º da Constituição Federal de 1988. Não se trata como muitos pensam de favoritismo as classes sociais esquecidas e subjugadas por séculos. O tratamento que se dá é o tratamento de tratar desiguais nas medidas de suas desigualdades, de forma material, pois se fosse de forma formal, não haveria possibilidade de mobilidade social, perpetuando, assim, as desigualdades sociais no Brasil, que ainda é muito presente.
As favelas cariocas, por exemplo, representavam construções simbólicas que definem cidadãos, os detentores de qualidades negativas, que passam a ser um entrave, obstáculo ao desenvolvimento social do Brasil.
Por décadas, as favelas cariocas, por exemplo, passaram a ser o simbolismo de indivíduos não capacitados para desenvolver o país servindo apenas como força braçal. É muito fácil verificar essa premissa, força braçal, pois os moradores das favelas, antes da Constituição Federal 1988, não conseguiam ascender na mobilidade social e econômica. Somente com a aplicação da segunda dimensão dos direitos humanos foi possível que os moradores das favelas pudessem sair de suas condições restritivas a qualidade vida, para possibilidades de ascensão social e econômica. Por exemplo, as cotas nas universidades representam a aplicação da segunda dimensão dos direitos humanos, e os preceitos contidos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.
Apesar de muitos considerarem que o assistencialismo governamental representa uma maneira de conseguir eleitores, mesmo que seja somente com essa característica, é que as camadas sociais reprimidas secularmente puderam ter certa qualidade de vida e possibilidade de ascensão na mobilidade social e econômica. Também não podemos esquecer que as políticas de intervenção do Estado nos morros cariocas, para combater os narcotraficantes, somam-se e concretiza a segunda dimensão dos direitos humanos, pois não basta dar oportunidades se essas camadas sociais consideradas, até então, “degeneradas”não possuíssem mecanismos favoráveis possibilitando o alcançar das oportunidades, dos direitos constitucionais, se o Estado fosse um mero facilitador sem dar condições reais de progressão socioeconômica.
O que vemos no Brasil atual é a luta entre classes, o que também se vê é o conceito ideológico de décadas construído no inconsciente coletivo, de geração a geração, de forma que a luta pela sobrevivência, somada ao narcisismo, não permite, até certo limite, a mobilidade social das classes sociais “degeneradas”. É fácil observar em redes sociais a frase” Eu estudei na universidade federal, e não em particular “. Essa frase conceitua a prevalência da ideologia eugênica e darwiniana social, de que somente os capacitados (geneticamente) conseguem ingressar nas universidades federais. Já aos indivíduos que ingressam nas universidades particulares há uma simbologia de que tais pessoas são incapacitadas intelectualmente (geneticamente), pois se fossem capacitadas ingressariam numa universidade federal.
Essa forma de pensar mostra que o darwinismo social e a eugenia ainda são muito arraigados na inconsciente coletivo brasileiro. O que é mais espantoso é ver que esses conceitos estão presentes na mentalidade dos jovens em pleno século XXI. As cotas nas universidades para os negros são ferrenhamente combatidas pelas pessoas que possuem o darwinismo social em suas concepções de vida, ou seja, as cotas raciais representam facilitador às pessoas incapacitadas, geneticamente, o que torna o desenvolvimento social brasileiro [futuro] duvidoso.
Nas concepções dos darwinistas sociais, as cotas para os negros nas universidades prejudicariam tanto o desenvolvimento econômico como social, além disto, a miscigenação resultaria [perpetuaria] na má qualidade de vida dos brasileiros, como criminalidades diversas. Se o conceito de darwinismo social for uma mentira, não se veria justiceiros a quererem manter a “ordem social” através de linchamentos. A justiça pelas próprias mãos se justifica, na visão dos justiceiros, se torna legítima pela má atuação do Estado na (in) segurança pública – o que foi muito usado na década de 1980, no Rio de Janeiro, na Baixada, com atuações de justiceiros contratados por comerciantes para dar cabo aos assaltantes. Assim, o Estado é insuficientemente capaz de dar proteção aos cidadãos contra ações de marginais, àqueles resta o se defender pelo direito natural à vida. O problema fica grave, pois da ineficiência do Estado, darwinistas sociais encontram brechas para descarregarem suas investidas preconceituosas contra os “degenerados”. Das ações constantes se fomenta conceitos darwinistas otimizando no inconsciente coletivo, de cada cidadão, que certos indivíduos não podem viver em sociedade. Deste modo, não importa as causas que geraram os comportamentos violentos e criminosos, mas apenas o chancelamento de que as características étnicas já demonstram a tendência ao crime.
Toda criminalidade tem um início, que poderá se desenvolver ao longo da vida do indivíduo. Grande parte dos criminosos tiveram passados traumáticos, sejam por estupro, conflitos familiares chegando ao abandono e expulsão do lar, facilidade em adquirir drogas (lícita ou ilícita), principalmente no seio familiar, ou no habitat. Os psicólogos dizem que no meio familiar se desenvolvem complexos diversos nos filhos, que se não corrigidos podem desencadear sérios problemas de comportamento na prole. Alfred Adler, o pai do termo “complexo de inferioridade” dizia que toda criança nasce com o complexo, e que a educação familiar e social poderão abrandar ou aumentar este complexo. Muito totalitarismo torna as crianças apáticas e revoltadas descarregando suas frustrações e descontentamentos contra a própria sociedade (imago). Quando a criança é mimada pelos pais, a criança passa a subjugar as demais pessoas. Crianças menosprezadas pelos pais podem desenvolver comportamentos perniciosos a elas mesmas como masoquismo. Enfim, cada qual desenvolve um comportamento. Eis a importância da educação equilibrada onde não se menospreza a prole, mas também não a trata com mimos em excessos sendo o equilíbrio entre os dois, o norte.
Se nos primórdios do darwinismo social e da eugenia procurava-se uma melhoria humana quanto aos problemas de higiene e criminalidade, com o passar dos séculos se acentuou o complexo de narcisismo. As diferenciações sociais no Brasil alimenta o complexo narcisista, onde roupas de grife, moradias em bairros nobres e os tipos de empregos e profissões que atuam, proporcionam diferenciações capazes de simbolizar pessoas capacitadas das não capacitadas. Dessa forma, as pessoas se acham muito melhores do que de fato são, ou seja, a autovalorização é o mecanismo de defesa diante do complexo de inferioridade. As desigualdades de renda na sociedade cria um mecanismo psíquico e emocional de superioridade e inferioridade diante da sobrevivência. Os indivíduos que possuem bom padrão socioeconômico acham que os desiguais são absolutamente invejosos, ao passo que a os indivíduos que não conseguem ascender socioeconomicamente, pelas condições sociais e políticas que não favorecendo a ascensão social, acham que a elite é soberba, em ambos os casos há um hiato entre ambos gerando egoísmo, indiferença, ódio e até perseguições nas redes sociais.
Como mudar?
Somente com educação universalista onde não há mais conceitos de “superioridade” e “inferioridade”, de “melhor” ou “pior”. Não bastam somente ações governamentais, mas atuações dentro das próprias famílias. Com o tempo, conceitos eugenistas e de darwiniano social vão se diluindo e sumindo na sociedade brasileira. Certo é que as políticas de Estado devem criar mecanismos de ascensão socioeconômica, mas equânime a todos. As cotas nas universidades são necessárias, no momento, mas o primordial, que deve ser o pilar da uma sociedade justa, é a estruturação da educação, de forma que todos tenham as mesmas condições para, então, agirem igualmente. Também é certo que o Estado deverá tratar os desiguais de forma material, como portadores de necessidades especiais, o que não há qualquer privilégio nisso.
O que se vê atualmente no Brasil, desde a violência aos negros, aos gays, às mulheres, e toda forma de barbaridade justificada, vem a materializar conceitos seculares de eugenia e darwinismo social. Educação universalista, sem preconceitos de qualquer ordem, seja social, política e religiosa, para que as futuras gerações possam viver num Brasil humanizado (artigo 3º da Constituição Federal de 1988).
Outro gravíssimo problema que perpetua o conceito darwiniano social existente diz respeito aos programas e comerciais televisivos. Mulheres são submetidas a vários momentos constrangedores, de forma que a imagem da mulher continue sendo de mero desejo sexual dos homens, em outros momentos reforça conceitos preconceituosos e machistas de que a mulher não tem cérebro (inteligência). Em outros momentos, publicidades chancelam a mulher como libertina. Piadas quanto à morfologia também são exploradas e acentuadas sem se importar com o emocional de quem sofre tais piadas.