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O desafio de uniformizar a jurisprudência e o papel do Novo CPC

8 de junho de 2015

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Abi-RamiaI. O Direito Processual Constitucional e sua matriz principiológica
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a assistir a um fenômeno progressivo de constitucionalização do Direito Processual, como uma das características do Direito contemporâneo. A segunda metade do século XX presenciou verdadeira reestruturação da atividade jurisdicional do Estado, vista não só como função jurídica, mas também social e política. Surgiu e fortaleceu-se, de mais em mais, uma concepção publicística e instrumental do processo, “como meio de conferir efetividade à tutela dos direitos materiais”.

De um lado, os textos constitucionais passaram a incorporar normas de cunho processual, inclusive sob o status de direitos fundamentais e, portanto, cláusulas pétreas. Em contrapartida, passaram as normas processuais infraconstitucionais a ser analisadas como concretizadoras das disposições constitucionais.

bserva-se, nesse cenário, que a Carta de 1988, símbolo da história democrática brasileira e marco decisivo para a consolidação do maior período de estabilidade política do país, trata de aspectos, mais ou menos relevantes, de todos os principais ramos do Direito infraconstitucional, entre os quais o Processo Civil. Com isso, adquire a norma constitucional caráter subordinante sobre tais subsistemas.

Tudo isso aponta para a gradual construção de uma concepção justa, adequada e efetiva do processo e da tutela jurisdicional, funcionando o Código de Processo Civil como concretização daqueles direitos fundamentais de natureza processual estabelecidos na Constituição. Teria, assim, o Diploma de Processo suas linhas básicas traçadas na ideia em si de Estado Constitucional.

O Direito, portanto, e cada vez mais, busca trabalhar com base em valores que informem todos os seus ramos e áreas de interesse. Trata-se de conteúdo normativo amplo, que visa traçar fins a serem atingidos. São os princípios.

Interessa, aqui, destacar uma diminuta, porém significativa, parcela de tão vasta gama principiológica, de sorte a melhor desenvolver o tema da uniformização de jurisprudência, seus desafios e as conquistas almejadas pelo Processo Civil brasileiro.

2. Os princípios sob a ótica da uniformização de jurisprudência: desafios
Embora seja impossível afirmar-se a importância de apenas um ou poucos princípios, não se mostra leviano destacar que, dentre os mais variados que se apresentam na tarefa, é o princípio da isonomia ou da igualdade processual material ou substancial um dos que mais atenção clama.

Sob sua égide, o processo, ainda mais sob o enfoque constitucional, deve ser aparelhado de modo a poder promover uma igualdade real e efetiva entre as partes. Não se coaduna com tal perspectiva e com a própria noção de Estado social de direito um processo de raízes individualistas, a consagrar como valor absoluto a autonomia dos litigantes e, com isso, relegar a segundo plano o fim em si da atividade jurisdicional: a solução das controvérsias.

A decisão deve ser justa, assim entendida aquela que corresponde à realidade fática submetida a julgamento e deve levar à pacificação dos conflitos. O caminho que a ela leva, por sua vez, nada mais é do que o processo, construído sobre bases dialéticas (Estado Democrático de Direito), e não sobre eventual superioridade econômica ou técnica de uma das partes, em prejuízo da outra. Isso violaria a igualdade de tratamento exigida pelo legislador, tanto em aspecto formal quanto em aspecto material, uma vez quebrado o adequado equilíbrio entre os litigantes.

É importante destacar que esse mesmo processo, cuja dialeticidade aqui se defende, não pode prescindir de efetividade, princípio estampado no novo Código e que preza pela realização do direito afirmado pela parte e reconhecido judicialmente, ao fim do que se entende por um processo devido. Indo mais além, é possível mesmo defender-se a necessidade de um processo não só efetivo, mas também eficiente, ou seja, que atinge tal resultado de modo satisfatório, em termos quantitativos, qualitativos e probabilísticos.

Todavia, não seria possível pugnar por uma relação processual efetiva, eficiente e dialética, se, no fundo da questão, não se trabalhasse com uma igualdade real, substancial entre as partes. Um modelo cooperativo de processo e, mais além, o próprio Estado Constitucional não se sustentariam sem a isonomia.

Para se chegar a uma decisão justa, tal como já vista, e por intermédio de um processo também justo, são elementos imprescindíveis o direito à igualdade (art. 5º, I da Constituição) e o direito ao contraditório (art. 5º, LV). O desenrolar dos atos perante o Poder Judiciário, para tanto, deve se dar de maneira democrática, com paridade de armas entre os litigantes.

Nesse ponto, cumpre trazer à tona a sempre pertinente diferenciação entre a igualdade em seu sentido formal e a igualdade em sua acepção material ou substancial. Ao passo que a primeira assegura tratamento igual entre todos perante a lei, a segunda admite discriminações necessárias para, de fato, igualarem-se os desiguais.

A visão que aqui se emprega é, naturalmente, a segunda. Afinal, em um mundo tão plural, seria da mais pura ingenuidade a crença na igualdade absoluta entre as pessoas. É preciso, do contrário, reconhecer-se que as realidades de cada um são distintas, pois influenciadas pelos mais variados fatores econômicos, sociais e culturais. E, diante de tal quadro, aceitar que tratamentos diferenciados serão, por vezes, essenciais para que se neutralizem as diferenças. Cabe lembrar a célebre frase, atribuída a Aristóteles: “tratar igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”.

O tema da igualdade mostra-se tão relevante porque, muito comumente, é feita sua conexão com a justiça, embora a esse conceito não se limite. Esbarra-se no desafio de equalizar possibilidades e oportunidades para indivíduos singulares, todos vetorizados em direção a uma vida imbuída por valores de justiça e moralidade. Não haver justiça significaria não haver norte, sentido, direção.

Tal demanda por justiça, inclusive, apresenta interessante evolução histórica, que aqui merece destaque, por ter despontado com a promulgação da Constituição de 1988. Seja pela redescoberta da cidadania no pós-ditadura militar, seja pela conscientização da sociedade em relação aos seus próprios direitos, a ordem constitucional inaugurada naquele ano trouxe o crescimento vertiginoso e progressivo do anseio social por justiça.

Aliados a isso, fatores como a criação de novos direitos, de novas ações e de novas possibilidades de tutela de interesses tornaram o Judiciário importante símbolo no ideário da coletividade, a desempenhar papel fundamental no fenômeno conhecido como judicialização das questões políticas e sociais, isto é, verificada a ascensão institucional desse Poder, dele passou-se a esperar a pacificação de cada vez mais conflitos, a resolução de um número cada vez maior de controvérsias.

As lutas a serem travadas são as mais variadas. Não são poucos os fatores de ineficiência que impregnam a atividade desse Poder, tais como demora excessiva, custos elevados e notória burocracia. A esse respeito, inclusive, é possível tecer muitas considerações, na esteira do novo Código, que traz o fortalecimento da instrumentalidade do processo e a flexibilização procedimental. Eis a importância de um trabalho sério e comprometido com a uniformização da jurisprudência pátria.

Mas não é só abordando o princípio da isonomia que será possível galgar passos maiores. Entrelaçado a ele e na mesma linha do que acima se explanou, tem-se o também basilar princípio da segurança jurídica.

A segurança jurídica é valor fundamental à própria noção de Estado Constitucional, tal qual a isonomia. A ordem jurídica deve ser certa e dotada de estabilidade, de modo a permitir que a sociedade saiba como orientar suas condutas e que pode contar, eventualmente, com a sua realização coercitiva.

É esperado, pois, do Poder Público que se porte de maneira coerente com comportamentos e diretrizes anteriormente fixadas e seguidas, para que permita à população construir relações jurídicas e desenvolver sua própria personalidade, sem temer uma surpresa (aqui entendida como negativa) de nova e contraditória conduta a afetar o sistema.

Como dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica, o princípio da confiança com ele deve ser trabalhado, à medida que constituem, ambos, faces complementares da mesma questão, sendo fundamentados no Estado de Direito: o primeiro, enquanto aspecto geral, visão macro; e o segundo, enquanto aspecto individual, visão micro.

Como destacado por Fredie Didier Jr., “O princípio da proteção da confiança impõe que se tutele a confiança de um determinado sujeito, concretizando-se, com isso, o princípio da segurança jurídica”.

Fica fácil, então, visualizar-se que a descontinuidade da vigência ou dos efeitos de certo ato frustra as expectativas daquele que, exercendo sua liberdade, optara por confiar na validade do ato. E frustrar a confiança acaba sendo nada mais, nada menos do que violar outro princípio, o princípio da boa-fé.

A transposição deste conhecimento para o campo do presente estudo se mostra deveras simples. O processo deve ser visto como criador de ato normativo, o qual, como qualquer outro, serve de base à confiança que se quer proteger. Acrescenta-se a isso o fato de a decisão judicial ser dotada da particular estabilidade da coisa julgada, tendo sido proferida a partir do pleno exercício do contraditório. Chega-se, enfim, à conclusão de que o provimento jurisdicional se revela como um ato normativo digno de considerável credibilidade.

Fica cristalina, assim, a estreita correlação entre os princípios da segurança jurídica, da confiança e da boa-fé e uma necessidade premente que tem a sociedade de saber o que esperar da jurisdição. Isso, de seu turno, só é possível quando as decisões passarem a prezar pela uniformização, na esteira de posicionamentos já consolidados.

Interessante, no ponto, a reflexão posta por Hermes Zaneti Jr.: “Existindo um Poder Judiciário, devem haver meios de controle sobre a racionalidade de suas decisões de forma a garantir a uniformidade e a continuidade do direito para todos os casos análogos futuros”.

Sustenta-se, nesse ponto, a importância de que um esforço intenso seja empenhado, tanto em termos de jurisprudência nacional, pelas Cortes Superiores, quanto em sede local, com os Tribunais locais e magistrados de primeira instância. A falta de uniformidade é patologia, ironicamente, democrática: atinge a todos os órgãos julgadores do País.

Uniformizar mostra-se tarefa imprescindível e cada vez mais urgente. O descrédito da função jurisdicional, a que se tem assistido, deve ser sanado, para que se possam ter como calculáveis e previsíveis os atos do Poder Público e, via de consequência, tenha-se um Estado Constitucional mais forte.

Nesse momento, evidente se mostra ainda outro princípio, igualmente entrelaçado à temática, a saber, o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou do acesso à justiça ou, ainda, da efetividade da jurisdição (art. 5º, XXXV da Carta).

Por seu intermédio, tem-se que é garantido a todo aquele que se sentir ameaçado ou lesado em direito seu o acesso aos órgãos jurisdicionais, garantia fundamental inafastável pela lei. A norma, portanto, dirige-se, pelo menos em análise primeira, ao legislador, que fica proibido de impedir ou restringir demasiadamente esse acesso, sob pena de ter envidado esforços para a elaboração de uma lei inconstitucional.

Todavia, o melhor estudo a respeito deste princípio não pode desconsiderar outro destinatário de seus comandos: o juiz. Fica estabelecido o dever constitucional do Estado, pelo Poder Judiciário, de tutelar os direitos de fato ameaçados ou lesados, tutela não apenas formal, mas efetivamente apta à proteção. Faz-se mister, aqui, a remissão à supracitada importância da efetividade do processo, como instrumento capaz de garantir o resultado prático visado pela parte a quem assiste razão.

Destarte, fica clara a conexão da norma com o cenário desenhado: se o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional tem como corolário a prestação, por parte do Estado, de uma atividade jurisdicional adequada à tutela de direitos, não se pode conceber que o mesmo esteja sendo respeitado em meio ao caos jurisprudencial em que se encontram soterrados os Tribunais brasileiros.

Afinal, seria impensável definir como “adequada” a tutela que, para casos de similitude impressionante, confere respostas díspares, quando não opostas. Isso contrariaria o próprio significado do adjetivo “adequado”, tal como apontado pelo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: “Que é bom ou próprio para determinado efeito, lugar ou objectivo”.

Quando o Poder Judiciário, em sua atividade-fim, não abriga os jurisdicionados sob o manto da certeza de soluções condizentes e harmônicas, ou seja, quando não mostra à sociedade a uniformidade de entendimentos que dele se espera, pelo bem de todos os princípios e valores basilares apontados antes, não atua de modo adequado. Ao contrário, age em desfavor de sua própria função constitucional, em prejuízo dos efeitos que deveria produzir, tais como a pacificação dos conflitos e a decisão permanente das controvérsias.

Deve-se ter em mente que uma das enunciações do princípio constante do art. 5º, XXV da Constituição é, justamente, efetividade da jurisdição. Logo, a tutela que se espera do Estado Constitucional é aquela apta a produzir resultados efetivos, concretos, aplicáveis no plano exterior ao processo e que, além disso, prezem pelo equilíbrio e pela confiabilidade do sistema jurisdicional.

Como se pode ver, enfim, não faltam princípios a orientar a atuação do Judiciário. Por outro lado, como em irônica resposta a esse arcabouço, sobram desafios a serem enfrentados. As lutas são muitas, são intensas e tratam de uma infinidade de questões, dos simples detalhes aos problemas mais complexos. Entretanto, como o enfoque deste estudo recai apenas sobre uma delas – a uniformização da jurisprudência –, os tópicos vindouros buscarão definir-lhe melhor os contornos para, assim, edificarem-se conclusões a seu respeito.

3. A uniformização de jurisprudência no Direito Positivo brasileiro
O cenário traçado no tópico anterior clama por todas as medidas possíveis que objetivem solucionar a problemática da caótica jurisprudência brasileira, situação esta que se desenvolveu apesar de todas as evoluções normativas transcorridas no Brasil nas últimas décadas.

O Código de Processo Civil de 1973, nesse ponto, desde a década de 1970, já trazia o incidente processual de uniformização de jurisprudência, como mecanismo de tratamento da questão dentro dos Tribunais. O Código de Processo Civil (CPC) de 2015, por sua vez, não obstante tenha extinguido tal incidente, reforça a ideia da uniformização, por meio de institutos como os incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas, o julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial repetitivos e a própria Teoria dos Precedentes, a qual os embasa e se vai adiante esmiuçar.

A Lei nº 13.105/2015, mais conhecida como o novo CPC, é sabidamente inovadora em muitos aspectos, até mesmo por coisas simples, como trazer à legislação processual princípios já aplicados na vida prática. A duração razoável do processo, a cooperação, a boa-fé e a própria paridade de tratamento entre as partes, cuja importância foi defendida em momento prévio deste estudo, são apenas alguns dos muitos exemplos disso.

No particular da uniformização da jurisprudência pátria, não poderia ser diferente. Em primeiro lugar, e seguindo o que se apontava como inevitável pela doutrina processualista, extinguiu o incidente de uniformização, cujas deficiências já foram apontadas em momento pertinente.

As mudanças, todavia, não se restringiram à mera supressão de um instituto (o que, se há de convir, tornaria difícil sustentar que o novo CPC é mais aprofundado no tema). Abrem o Livro III, referente aos processos nos Tribunais e aos meios de impugnação das decisões judiciais, disposições gerais concernentes à uniformização.

Já no primeiro artigo do Capítulo I, de nº 926, o Código mostra onde fincou suas bases, ao impor às Cortes o dever de uniformizar sua jurisprudência e de mantê-la coerente, estável e íntegra. E, sendo ela dominante, fica mantida a sistemática das súmulas. Trata-se de um comando.

Determinou, também, a observância, por juízes e Tribunais, de vasto rol de decisões, enunciados e orientações, que incluem: decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade; enunciados de súmula vinculante e de súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ); orientação do Plenário ou órgão especial aos quais se vinculem; e, finalmente, acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de Recursos Extraordinário e Especial repetitivos.

Tal incidente de assunção de competência (art. 947) nada mais é do que a nova roupagem trazida ao antigo art. 555, § 1º, abordado no tópico III.I anterior. A norma ganhou destaque e um incidente processual propriamente dito, além de tratamento mais pormenorizado, sempre em busca de consecução mais fiel da tão almejada uniformização.

Por outro lado, o incidente do art. 976, destinado à resolução de demandas repetitivas, não encontra correspondente no Diploma de 1973, representando, desse modo, interessante e relevante guinada no tratamento da matéria.

O Código ressalva a ampla e específica divulgação e publicidade da instauração e do julgamento do incidente, além da celeridade em sua tramitação, que não poderá exceder um ano e terá preferência sobre outros feitos, desde que não envolvam réu preso ou que não sejam pedidos de habeas corpus.

O que se pode constatar, a partir desse modesto destaque de alguns dos principais aspectos do novo instituto, é o que já se vinha sustentando: o novo Código vem concretizar, cada vez mais, os princípios da isonomia e da segurança jurídica no campo dos entendimentos jurisprudenciais.

A complexidade do contexto é, curiosamente, simples: a sociedade contemporânea se apresenta cada vez mais globalizada, ou seja, no meio de um turbilhão de ideias, conceitos, mercadorias e culturas provenientes dos cantos mais remotos do planeta. Aliás, pode-se mesmo dizer que já não existe canto remoto; ao alcance dos dedos, por uma tecnologia que não cessa de evoluir, é possível, hoje, acessar uma quantidade de peças informativas que sequer se cogitaria há poucos anos.

Capítulo inevitável dessa história consiste na massificação das relações sociais, as quais, por sua vez, levam à massificação dos conflitos e ao crescimento exponencial de ações judiciais dotadas de objeto idêntico e que atravancam o funcionamento do Judiciário brasileiro.

Voltado a essa crise de demandas repetidas, o Código de 2015, ao tratar dos Recursos Extraordinário ao STF e Especial ao STJ, matéria constitucional, elenca a modalidade repetitivos nos arts. 1.036 a 1.041, fundada na multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito.

A norma surgiu, em verdade, sob a égide do Código anterior, cujos arts. 543-B e 543-C foram incluídos, em 2006, pela Lei nº 11.418. Porém, sob a ótica de 2015, foi unificada para ambos os recursos e reunida em Subseção própria, o que indicaria, por si só, a maior preocupação que tem a nova Lei com o tema.

O procedimento é esmiuçado nos seis artigos, cumprindo aqui sublinhar-se que, para serem considerados representativos da controvérsia de direito, os recursos devem conter abrangente argumentação e discussão acerca da questão a ser decidida. Com isso, garante-se que chegarão aos Tribunais ad quem as peças argumentativas que melhor representem os interesses envolvidos na solução da controvérsia, sem prejudicar aqueles que não conseguiram subir às Cortes para falarem por si mesmos.

O Código de 1973 trabalha com o conceito de jurisprudência, como conjunto de posicionamentos de uma Corte a respeito de dada matéria, e a indicar determinada interpretação. É de tal conceito, aliás, que se vem tratando ao longo destas páginas. O novo Código, entretanto, traz, como fonte do Direito, também, o chamado precedente, que consiste em uma única decisão, e que já vinha ganhando força, embora não estivesse regulado no Direito Positivo.

Entre jurisprudência e precedente, a diferença quantitativa se faz óbvia: de um lado, a jurisprudência, linha de entendimento de um Tribunal, extraída a partir de conjunto de decisões por ele tomada sobre certa matéria, em um mesmo sentido; de outro lado, o precedente, decisão dada a apenas um determinado caso. Também em termos qualitativos é possível separá-los, tendo aquela o objetivo de identificar o sentido de certa norma jurídica, por meio de várias decisões, ao passo que este se preocupa em dar solução para um certo caso concreto.

Surge, diante da inovação do paradigma, interessante questionamento doutrinário: estaria o Brasil passando a adotar o sistema da common law e, consequentemente, abandonando o da civil law ou sistema romano-germânico?

Os debates em torno da indagação foram, são e – acredita-se – serão muito intensos. Parece, contudo, mais acertada a visão que sustenta resposta negativa, para cuja compreensão se demanda uma pequena divagação história.

O sistema da civil law tem origens mais antigas, remontando ao Corpus Iuris Civiles do ano 533 d.C. Já o da common law surge apenas no ano de 1066 d.C., com a invasão normanda à Inglaterra. Para o primeiro, constituem fontes formais do Direito atos normativos positivados, como a lei; e, para o segundo, alguns estatutos formais e práticas consuetudinárias ou costume.

Foi apenas no século XVII, portanto, seis séculos depois de seu início, que a common law começou a trabalhar com a força dos precedentes, pois não se via sentido em dar solução diferente a novo caso análogo a um já julgado. E, a partir daí, criou-se o costume de segui-los, tanto se intensificando o processo que, hoje, constituem fonte do Direito. A fonte não é a lei, e sim a maneira de aplicá-la, isto é, o precedente.

Esse sistema, logo se vê, independe do precedente, tendo sem ele existido por mais de 600 anos. Quebrada a linha de raciocínio que impunha conexão obrigatória entre precedentes e common law, passou-se a cogitar trazer, para o Brasil, a Teoria dos Precedentes.

O feito não constitui uma novidade para o sistema da civil law. Vanguardistas, alguns de seus países já estão adotando precedentes, por questões de isonomia e segurança jurídica, valores imperativos à adequada prestação da tutela jurisdicional, como já exposto.

No Brasil, esse importante passo encontra resistência. A mentalidade brasileira é calcada na segurança jurídica supostamente só proporcionada pela lei, que é a mesma para todos. Todavia, um ordenamento seguro se baseia, na verdade, na uniformização das decisões prolatadas pelo Poder Judiciário, como também já apontado. Não basta ter uma só lei para todos, pois, se cada um a interpretar de um modo, que segurança e que isonomia isso proporcionará?

O CPC de 2015, diante de toda essa discussão, mostrou-se, pois, valente, ao elencar a vinculação ao precedente, abraçando a Teoria, para a qual, uma vez estabelecido o princípio de Direito aplicável a determinada situação, o Tribunal, em casos análogos futuros, deverá aplicá-lo, não rompendo a linha do que já foi decidido.

A base para tanto se encontra na isonomia, primando pela resposta igual do Judiciário em face da mesma situação fática, tratando do mesmo modo quem está na mesma posição jurídica. Ademais, também se encontra na própria legalidade, ao garantir que, com a fixação da interpretação correta, não haja uma lei para cada caso, o que quebraria, por sua vez, a noção de segurança jurídica.

A interligação entre tais valores e princípios, além de clara, é fundamental ao bom desenvolvimento do pensamento que aqui se defende. Um sistema que se pretenda justo, dialético, efetivo e eficiente não pode, jamais, prescindir de valores como a igualdade substancial e a segurança que se alcança quando, para casos similares, a solução entregue é a mesma: “To treat like cases alike”.

Não se pode – nem se pretende – negar que o intérprete brasileiro, desacostumado a esse trabalho, vai encontrar dificuldades em estabelecer o que é determinante e o que é obiter dictum (dito para morrer, fundamento não determinante). Trata-se de separação extremamente relevante, à medida que regula a produção do Direito pelos Tribunais; se ignorada, não só ofenderia gravemente o devido processo legal, dando soluções desiguais a processos similares, como também ocasionaria uma quantidade ilimitada de normas jurídicas produzidas pelo Judiciário, não obrigatoriamente ligadas aos fatos específicos de cada demanda. Tornaria, portanto, impraticável a aplicação dos precedentes.

O novo Código vem ajudar, ao dispor que essa é a característica do fundamento expressamente acolhido em votos que componham a maioria. Se isso não acontece, tem-se uma decisão, mas não um precedente.

O reconhecimento de força vinculante a tais fundamentos se mostra essencial, em última análise, às próprias bases do Estado Constitucional, levando-se em conta isonomia, segurança jurídica e confiança legítima, assim como a premente necessidade de coerência experimentada por todo e qualquer ordenamento jurídico.

Extremismos, note-se, devem ser rechaçados. Se, por um lado, o que se poderia chamar de decisionismo ou jurisprudência lotérica é maléfico, por todas as razões acima expostas, por outro, também o engessamento da norma ao redor dos precedentes é deveras prejudicial.

A norma, para ter seu sentido construído, passa por uma longa evolução, por um caminho em que se impõem coerência e integridade às decisões a seu respeito. É crucial reconhecer-se que um único precedente não pode pretender se aplicar a tudo, e que, ao mesmo tempo em que se respeita o que já se construiu, novas situações podem surgir e clamar por um novo olhar para suas particularidades.

As decisões, nesse cenário, devem ser analisadas sob um ponto de vista que considere o global, a história completa do entendimento do Tribunal, a fim de se conhecer a evolução empreendida pela matéria.

O Direito não pode ser visto “desvencilhado de sua facticidade, como um produto técnico e científico”, não pode ser construído tão somente com base em argumentações previamente tecidas por outrem e não pode pretender extrair, de um só caso concreto, uma solução que a todos sirva.

Ou seja, no fim das contas, a reflexão que fica é a de que o precedente não pode ser encarado como um ponto de partida, mas como um ponto de chegada, sob pena de indesejado engessamento. Tão somente olhar para certa decisão em sede de Recurso Especial repetitivo, por exemplo, e concluir que o sentido da norma é o apontado pelo STJ, sem maiores divagações, é engessar, ad eternum, a norma jurídica.

Mais do que isso, e acima de tudo, a tarefa do intérprete é levar a justiça ao caso concreto, e não se acomodar nos posicionamentos advindos do raciocínio de outras pessoas. A partir do precedente, deve olhar para o caso em exame e atentar para eventuais peculiaridades que o retirem do campo da similitude da primeira decisão, distinguindo-o (distinguishing). Se não o fizer, estará cometendo verdadeira injustiça e contrariando, com isso, a função constitucional do Poder Judiciário.