O descumprimento de sentença judicial e suas consequências
30 de abril de 2009
Roberto Mello Alves Procurador do Estado do Rio de Janeiro
Tem sido motivo de perplexidade o modo passivo pelo qual o Poder Judiciário tem reagido à desobediência de suas decisões, sejam interlocutórias sejam definitivas, estas em mais realce.
Evidentemente, há grande número de magistrados, senão a maioria, que exerce, em plenitude, sua função judicante, adotando as medidas legais coercitivas contra os que, de algum modo, deixam de dar cumprimento ou execução às ordens judiciais.
O Poder Judiciário, entretanto, como um todo, tem se demitido de sua função constitucional de assegurar e garantir a autoridade de suas decisões, especialmente quando resistidas por autoridades do Poder Executivo Federal e Estadual.
Frequentemente se tem notícia de delongas ou recusas no cumprimento de suas decisões judiciais, sem reação à altura do magistrado desobedecido.
Quando tal ocorre, a ofensa não atinge apenas o magistrado, o Poder Judiciário, mas também, e inexoravelmente, o cidadão, a Ordem Democrática, a confiança nas Instituições.
Daí, decorrem consequências gravíssimas, examinadas a seguir, a suscitarem a formulação de ideias, visando à solução da questão. As consequências sócio-jurídicas da desobediência.
Não se pretende — e não por falsa modéstia — listar e exaurir todas as consequências resultantes do descumprimento de ordem judicial ou de sentença, ou de seu retardamento. Busca-se assinalar aquelas que qualquer cidadão e o profissional do Direito vislumbram no dia-a-dia.
Desde logo, ressalta-se a primeira delas: o desacreditar no Poder Judiciário, com graves desdobramentos.
Com efeito, o cidadão que buscou guarida no Poder Judiciário em defesa de seu eventual direito e vê atendida sua pretensão revela total desapontamento ante a não concretização da sentença que lhe foi favorável, pela recusa de cumpri-la por quem o deve fazer.
Conquanto o descumprimento de decisão judicial prejudique, de imediato, a parte vencedora do pleito, é a sociedade, como um todo, que se ressente realmente da gravidade de que se reveste tal fato.
O Poder Judiciário débil, enfraquecido, não cumpre suas funções constitucionais e leva o cidadão a descrer da justiça, propiciando o retrocesso da prática da justiça pelas próprias mãos, estágio anterior e indesejável do ideal democrático.
Basta que um único magistrado se demita do poder-dever que lhe incumbe de fazer cumprir suas decisões para que o próprio Poder Judiciário seja diminuído em sua missão indeclinável de distribuir justiça e de zelar pela paz social.
Por outro lado, a omissão do magistrado em aplicar as sanções legais à autoridade que ousa desobedecer à ordem legal estimula a reiteração de tal comportamento, com suas danosas consequências tanto para os cidadãos como para a ordem jurídica.
A prática da “justiça pelas próprias mãos’’ se generaliza na medida da negativa de concreta e eficaz aplicação do direito proclamado e leva, induvidosamente, à violência, à desobediência civil, ao descrédito das leis, enfim, ao caos social.
Concomitantemente, se na esfera civil e administrativa as consequências do descumprimento das sentenças, via-de-regra, se traduzem em danos materiais, mas não só — haja vista as que têm caráter alimentar —, com toda repercussão sobre a vida familiar e a sociedade, no âmbito penal, o mesmo sucede com a não concretização da “sentença condenatória”, seja pela prescrição ante a morosidade da máquina judiciária como pela extrema facilitação do cumprimento da pena, ainda para réus de crimes odiosos, a suscitar a quase certeza da impunidade; fermento ideal da desapregação da sociedade como corpo organizado.
De tudo resulta a imperiosa necessidade de o Poder Judiciário revestir-se, de fato, da autoridade que lhe confere a Constituição Federal para a efetiva aplicação do direito quando chamado a solucionar os conflitos.
Se, nos dizeres da Constituição Federal, a independência dos Poderes, consagrada desde a clássica tripartição de Montesquieu, é de ser absolutamente observada, é inadmissível qualquer resistência dos demais Poderes ao cumprimento das decisões judiciais.
Tal assertiva decorre do fato de que a eventual resistência acima referida não se volta, em verdade, contra o Poder Judiciário, mas contra a própria Constituição Federal, à qual se subordinam todos os Poderes.
Constitui, pois, gravíssima ofensa à Lei Maior a desobediência ao mandamento judicial.
Ocorre, todavia, que, por motivos diversos, entre os quais exatamente a inércia, a contemporização, a política, a acomodação e, mesmo, a desídia, nem sempre há reação do magistrado desobedecido proporcional à gravidade do fato.
A passividade do magistrado em tais casos contribui para fortalecer a ousadia do desobediente, levando à hipertrofia do Poder Executivo, e é, sem dúvida, nele que se encontram os recalcitrantes, no cumprir sentenças judiciais.
Fenômeno intrigante se apresenta na problemática enfocada. Consiste ele no fato de que, via de regra, são nos estados federados que ocorrem com mais frequência os casos de desobediência à ordem judicial.
Embora inexplicável, a circunstância referida parece advir de suposta prevalência da sentença federal, como se as estaduais não detivessem a mesma força e natureza.
Por outro lado, são inúmeros os obstáculos legais que se antepõem à responsabilização das autoridades que não cumprem as decisões judiciais, em prejuízo da ordem jurídico-democrática.
São de extrema pobreza franciscana os exemplos de autoridades punidas pela citada desobediência, que, muitas das vezes, é reiterada em sucessivas administrações, a ponto de prolongar-se por 10, 15 anos ou mais, o cumprimento de sentença transitada em julgado.
Há, além, no Direito Positivo Brasileiro, mecanismos que predispõem e fortalecem a resistência no cumprimento das sentenças definitivas.
É que, a pretexto de defesa do Estado e para evitar alegados — e nem sempre verdadeiros — motivos de interesse público, como o de evitar-se grave lesão à ordem, à saúde, à segurança, à economia pública e ao Erário, tem-se permitido a suspensão da execução de sentença, até daquelas já submetidas ao plenário do Supremo Tribunal Federal, em violação ao próprio Regimento Interno.
Segundo este, ao tratar de mandado se segurança, em seu parágrafo 3º, do art. 297, em havendo decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, mantendo a concessão da ordem, ou trânsito desta em julgado, a suspensão da execução caduca e não mais surtirá efeitos.
A realidade, entretanto, é outra.
São inúmeros os casos que suspendem execução de decisões definitivas de ações não mandamentais, mesmo do Supremo Tribunal Federal, a fomentar a prática rotineira de descumprimento de sentença, especialmente naquelas que dizem respeito à remuneração de servidores, inativos e pensionistas.
Tal estado de coisas, todavia, ao invés de mostrar-se instrumento útil de defesa do Erário, contrapõe-se a bem maior — a credibilidade do Poder Judiciário — bem como ofende o princípio constitucional da segurança jurídica, em face da incerteza da aplicação e eficácia do direito já declarado definitivamente.
Releva acentuar, nesta oportunidade, o conceito de que mais bem faz à sociedade organizada o cumprimento de sentença injusta do que a inexecução daquela justa e transitada em julgado.
Isso, porque todo cidadão tem o direito, constitucionalmente garantido, de ver apreciada e, portanto, julgada e eficazmente executada qualquer lesão ou ameaça a direito, consoante expressa disposição do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, na mesma linha das anteriores constituições liberais do País e conforme a tradição do direito ocidental.
Proposta de solução
Em vista do exposto acima, é chegado o momento de concluir-se esta breve reflexão com o oferecimento de algumas poucas sugestões destinadas a coibir os procedimentos verberados, ofensivos à Constituição e aos direitos dos cidadãos.
Ao se analisar a questão enfocada e buscando-se soluções para resolvê-la, desde logo verifica-se um veio político que a informa e que dificulta, por sua própria natureza, o correto procedimento.
É que, via de regra, as autoridades, para descumprirem decisões judiciais — especialmente aquelas pertinentes à remuneração de servidores, proventos ou pensões —, invocam a insuficiência de verbas orçamentárias e a priorização no atendimento a outras demandas, dando-se o direito, inclusive, de eleger qual e tal sentença, entre outras, a ser integralmente cumprida.
Há, ainda, por outro lado, a postura do magistrado que abdica da exigência de respeito absoluto às decisões judiciais, seja por receio de enfrentamento com outro Poder, como por entender demoradas, dificultosas ou até mesmo inócuas quaisquer providências de responsabilização da autoridade infratora.
Se tortuosos e demorados são os caminhos da responsabilização, a ordem constitucional exige, em nome dos princípios que a informam, reação ao fenômeno em exame.
Não se diga que há carência de instrumentos legais para tanto.
De fato, quer em disposições da Lei Maior quanto em normas infraconstitucionais, encontram-se os necessários comandos para coibir a desobediência à ordem ou decisão judicial e punir os que a praticam.
Assim, a Constituição Federal, em seu art. 15, III e IV, prevê a suspensão ou perda de direitos políticos pela condenação criminal transitada em julgado, enquanto perdurarem seus efeitos ou pela prática de atos de improbidade apurados na forma da lei.
Por sua vez, o art. 37, caput, da Lei Maior, estabelece os princípios gerais que regem a Administração Pública, nela compreendidos os três Poderes, e determina sua observância, a começar pela legalidade em seu sentido mais amplo.
Na esfera infraconstitucional, prevalece a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, vige plenamente com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 10.028/2000.
Dita lei, que define os crimes de responsabilidade do Presidente da República, dos Ministros de Estado, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, e, assemelhados pelo parágrafo único de seu art. 39-A, do Procurador Geral da República e assemelhados, também alcança os governadores e secretários de Estado, consoante o disposto no seu art. 74.
A lei em foco, entre os crimes capitulados, define o cometido contra as decisões judiciais em seu art. 12, especificando quatro tipos de condutas criminais.
Para o escopo deste estudo, destaca-se entre eles aquele previsto sob o número 4 (quatro) na norma legal mencionada, que assim dispõe:
“Art 12 – São crimes de Responsabilidade contra decisões judiciais:
1) omissis;
2) omissis;
3) omissis;
4) impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.”
Nada mais claro, a prescindir de quaisquer interpretações.
O ilícito ali previsto se desdobra em duas condutas: impedir ou frustrar o pagamento consequente à ordem judicial.
As condutas criminais operam de forma direta ou indireta. A primeira delas ocorre quando a autoridade, convicta de sua impunidade, ordena a suspensão do pagamento devido, ou o frustra, desviando-o para atender a compromisso financeiro distinto. É a forma mais rara, porque é, mais facilmente, comprovável.
A segunda — a indireta — tem natureza mais sutil e, geralmente, ocorre por ato omissivo tal como a não alocação de verbas no orçamento destinadas ao pagamento dos precatórios, cujas origens são sempre condenações da Fazenda Pública em pecúnia ou, a mais corrente, a insuficiência dos fundos orçamentários a tanto destinados.
Releva acentuar, en passant, que, via-de-regra, as ações ajuizadas contra as Fazendas Públicas nascem de reiterados atos de descumprimento da lei, que vêm caracterizando a Administração Pública nos últimos tempos.
Cabe assinalar que as autoridades executivas se permitem, muitas vezes, eleger quais, como e quando cumprir decisão judicial, como se lhes fosse lícito, em prejuízo do cidadão, postergar-lhes a prestação jurisdicional.
A impunidade
Paralelamente ao vezo ilegal do comportamento antes descrito — o fenômeno do descumprimento de sentença judicial —, encontra-se a impunidade ante tal atentado à Constituição Federal.
É que, pelas razões anteriormente apontadas — de comodismo, de descrença e até de desídia —, predomina a sensação de impunidade das autoridades criminosas, a qual se alastra como uma epidemia pela sociedade, ante a verificação de que os crimes dos poderosos, ricos e influentes são menos graves — e não merecem punição — do que os cometidos por integrantes das camadas menos favorecidas da população.
Para tal sensação, alia-se a certeza de que a morosidade crônica em que sobrenada a justiça, com os graves reflexos que daí decorrem na conduta social.
Não que a mencionada morosidade seja atribuível tão-só ao comportamento do complexo judiciário como um todo. Com efeito, a pletora de expedientes processuais, o excesso de recursos, a não-aplicação de penas pecuniárias severas aos litigantes de má-fé e de penas disciplinares aos advogados que os patrocinam são fatores decisivos que compõem, com a morosidade, o deplorável quadro de impunidade.
Conclusão
É chegado o momento, todavia, para não alongar este trabalho, de se tentar contribuir com propostas de soluções para grave questão que se analisa.
A primeira medida que salta aos olhos é a tomada de consciência da Magistratura como Poder e, não, individualmente, por iniciativa particular de seus juízes. É intolerável o desrespeito, de qualquer autoridade, à decisão transitada em julgado, constituindo gravíssima ofensa à ordem constitucional a dificultação ou negativa de seu cumprimento eficaz.
Como consequência, cada magistrado a cuja decisão tenha sido negada eficácia plena deverá adotar todas as medidas previstas em lei para responsabilizar, criminal e politicamente, a autoridade autora do delito.
Outra sugestão é a de os magistrados não se esquivarem de aplicar as penalidades processuais à litigância de má-fé, com o que obter-se-á sensível redução na quantidade de processos judiciais, diminuindo-se a morosidade da Justiça e reduzindo-se a impunidade.
Ademais, há necessidade de depuração do número e do alcance dos recursos judiciais, de sorte a que a sensação de impunidade decorrente da demora da prestação jurisdicional seja substancialmente reduzida.
Sobreleva o escopo deste trabalho, sobretudo, a restauração do império da Constituição Federal na asseguração do exercício pleno das atribuições dos três Poderes da República, guardando um em relação aos outros independência e harmonia.
Finalmente, providência que igualmente se impõe é a atuação do Poder Judiciário na formulação e encaminhamento aos legisladores de anteprojetos de leis que simplifiquem os processos civil e criminal, dando-lhes celeridade e restringindo a pletora de recursos hoje existentes que eternizam a efetiva prestação jurisdicional.