Edição 267
O direito ao futuro de adolescentes acolhidos
3 de novembro de 2022
Karine Tomaz Veiga Auditora do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro / Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Sérgio Luiz Ribeiro de Souza Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Escassez orçamentária, responsabilidade dos conselhos e urgência por direitos prioritários
A concepção sistêmica do ordenamento jurídico infantojuvenil impõe o reconhecimento do papel fundamental de políticas públicas para a efetiva proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes. A constante escassez de recursos na área da infância e juventude também atinge adolescentes acolhidos que precisam adquirir autonomia, porque, ao completarem a maioridade, devem ser desligados dos respectivos serviços de acolhimento.
Dessa preocupação com o porvir desses adolescentes, surgiu o projeto “Doe um Futuro”. O Juízo da 4ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), propôs parceria com a sociedade civil, indicando cursos profissionalizantes para serem ofertados por padrinhos e madrinhas em favor da formação de adolescentes em situação de vulnerabilidade, prestes a saírem de serviços de acolhimento. Esta é uma das formas que pessoas naturais e jurídicas podem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e solidária, e o Prêmio Innovare certificou o esforço de todos premiando a iniciativa como destaque de sua 19ª Edição, nesse ano de 2022.
Contudo, é imprescindível que políticas públicas assegurem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Em respeito às linhas da política de atendimento do art. 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), destacam-se como diretrizes a criação dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA), em cada esfera de governo; a criação e manutenção de programas específicos; e a vinculação dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente (FDCA) aos respectivos conselhos.
Em regra, a criação do FDCA propicia a captação, individualização da gestão e o devido repasse intergovernamental, por meio de transferências fundo a fundo, além da aplicação destinada ao desenvolvimento das ações de atendimento às necessidades de crianças e adolescentes. Compete aos conselhos gestores deliberarem anualmente sobre programas que serão custeados com recursos dos fundos.
Quanto à operacionalização dos recursos, cabe à estrutura administrativa à qual o fundo se vincula o fornecimento das informações e condições para a devida execução das atribuições legais do conselho gestor do fundo. Dentre elas, deve permitir que:
I – elaborem a cada quatro anos o plano de ação estratégico, tempestivamente à preparação do plano plurianual do ente público, a fim de contemplar os programas de governo que serão custeados com recursos dos fundos, contendo a classificação qualitativa e quantitativa que se pretende alcançar com os objetivos de cada política pública e a finalidade das ações governamentais deliberadas para cada exercício financeiro;
II – elaborem o plano de aplicação anual dos recursos que serão destinados para cada ação governamental, tempestivamente à consolidação da Lei Orçamentária Anual (LOA) do ente público, em respeito às normas de Direito Financeiro e para fins de consolidação junto ao orçamento setorial do órgão vinculador;
III – exerçam o controle, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações que forem custeadas com recursos do FDCA;
IV – promovam a gestão dos recursos depositados na conta bancária específica do Fundo (art. 260-G do ECA), com controle segregado das doações e informação anual à Receita Federal;
V – informem o total dos recursos recebidos e a respectiva destinação, por projeto atendido, inclusive cadastrando na base de dados do Sistema de Informações sobre a Infância e a Adolescência (art. 260-I, inciso V, do ECA);
VI – avaliem, aprovem e emitam parecer conclusivo ao respectivo tribunal de contas, acerca das contas de governo referentes à arrecadação das receitas do FDCA e da realização de despesas, anualmente;
VII – promovam campanhas para que pessoas físicas e jurídicas destinem recursos do Imposto de Renda para o FDCA com o objetivo de financiar programas e ações prioritários e, com isso, ao ajudarem crianças e adolescentes, possam deduzir integralmente do valor do imposto a pagar o montante doado, nos limites da lei;
VIII – divulguem todas as informações referentes à gestão dos recursos do Fundo, inclusive em meios eletrônicos de acesso público, em respeito aos princípios de transparência das contas públicas reverenciados no art. 48 e 48-A da Lei Complementar nº 101/2000, com destaque para: a) resoluções; b) plano de ação e suas revisões; c) planos de aplicações anuais; d) todos os atos praticados pelas unidades gestoras no decorrer da execução da despesa, com a disponibilização mínima dos dados referentes ao número do correspondente processo, ao bem fornecido ou ao serviço prestado, à pessoa física ou jurídica beneficiária do pagamento e, quando for o caso, ao procedimento licitatório realizado; e) sobre o lançamento e recebimento de toda receita destinada ao fundo, discriminada de acordo com a sua natureza e com o devido detalhamento da fonte ou destinação de recursos, permitindo verificar se é proveniente de dotação própria do ente federativo (para manutenção do conselho gestor do fundo); de multa ou perda de bens e valores (as multas do art. 214, § 1º, e do art. 244-A, § 1º, todos do ECA); de doação (art. 260, I e II, do ECA); de transferências; e f) prestações de contas anuais.
Em face dessas atribuições, é competência do Conselho Gestor do FDCA, portanto, escolher quais ações governamentais serão inseridas no orçamento anual, com base em diagnóstico e nos resultados do monitoramento e avaliação das políticas públicas destinadas à criança e ao adolescente, conforme prevê a Lei Maior (art. 165, §16 c/c art. 37, §16), além de considerar, dentre as prioridades, o que estabelecem o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária e o Plano Nacional pela Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016).
Aqui, é adequado trazer alguns dados que ilustram a regularidade dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente no Estado do Rio de Janeiro.
De acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), órgão responsável pelo cadastramento nacional dos fundos e repasse dessas informações à Secretaria da Receita Federal, a verificação quanto à regularidade das composições dos fundos, para que seja possível receber doações dedutíveis do Imposto de Renda, determina que:
Para serem incluídos no Cadastro Nacional, os fundos municipais, estaduais e do Distrito Federal devem ter CNPJ com natureza jurídica de fundo público e situação cadastral ativa. Também é obrigatório ter no “nome empresarial” ou “nome de fantasia” expressão que estabeleça claramente a condição de Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Devem ainda apresentar conta bancária aberta em instituição financeira pública e associada ao CNPJ informado. Os recursos destinados aos fundos são aplicados em projetos sociais voltados à promoção e à defesa dos direitos da população infantojuvenil e são gerenciados pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (nacional, distrital, estaduais e municipais).
Assim, de acordo com o Painel FDCA mantido pelo MMFDH, dos 92 municípios fluminenses, 73 possuem fundos regularizados, 11 estão inconsistentes e
oito sequer possuem fundos, sendo que seis estão em fase de regularização.
Em comparação com o restante do País, a situação ainda é mais preocupante, tendo em vista a quantidade de fundos inexistentes. No Brasil, há 2.958 FDCAs regularizados. Enquanto no Estado do Rio de Janeiro 79,35% dos FDCAs estão consistentes, no Estado do Amapá esse número cai para apenas 18,75%.
No que diz respeito às inconsistências, 1.013 FDCAs no Brasil encontram-se impedidos de receber doações, em razão de inexatidões nas informações fornecidas pelos seus conselhos gestores. Os principais motivos são relativos a: domicílio bancário inválido ou inexistente; favorecido incompatível; CNPJ diverso de FDCA; natureza jurídica incorreta; dados bancários ausentes ou incompletos; CNPJ não informado, inválido, inapto, baixado ou inexistente; banco privado; CNPJ do estado; CNPJ do município; dados do fundo de outro município; e domicílio bancário já cadastrado para outro credor (CPF e CNPJ).
Sobre o potencial de arrecadação dos FDCAs, a Receita Federal informou que o Município do Rio de Janeiro arrecadou, no total, R$ 65,532 bilhões de Imposto de Renda, em 2020, referente a 506.762 contribuintes (entre pessoas físicas e jurídicas). Em 2019, recolheu R$ 67,689 bilhões de 508.383 contribuintes. Assim, de acordo com a Confederação Nacional de Municípios, tem o potencial de arrecadar R$ 537,254 milhões via Declaração de Ajuste Anual do IRPF e R$ 1,074 bilhão, durante o ano-calendário.
O painel FDCA/MMFDH também destacou a possibilidade de recebimento (3% do imposto devido) de R$ 769,538 milhões distribuídos em todo o Estado do Rio de Janeiro.
De outro modo, sobre as doações efetivamente repassadas pelo Programa Gerador de Declarações do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (PGD/DIRPF), o Repasse Multiexercício 2021 evidenciou diversos FDCAs com inconsistências que ficaram impedidos de receber repasses. O art. 260-K do ECA traz os requisitos para os repasses.
Na ocasião do repasse, foram entregues R$ 10.838.787,01 a 473 fundos, correspondendo a 10.196 doações. Conforme dados da Receita Federal, no portal do MMFDH, o Estado do Rio de Janeiro arrecadou R$ 1.181.949,32, demonstrado nas Notas Técnicas CODAR RFB n° 09/2021 e 029/2021. Todavia, apesar do montante arrecadado em 2021 pelo FDCA estadual, na LOA/2022 constam apenas R$ 5 mil autorizados para o Programa de Governo 0449 – Garantia dos Direitos das Crianças e Adolescentes.
Diante de todo o exposto, resta claro quão é importante o controle exercido pelos conselhos gestores dos fundos, em especial porque só haverá repasse de recursos provenientes de doações mediante a existência de fundo regular (art. 52-A, parágrafo único, do ECA). Ademais, é dever legal do Conselho: prevenir a ocorrência de qualquer ameaça ou violação de direitos a crianças e adolescentes (art. 70 do ECA); integrar com as demais instâncias nas ações de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente (art. 70-A, inciso II, do ECA); registrar entidades não-governamentais e reavaliar programas em execução a cada dois anos (art. 90, § 3º, do ECA); fixar critérios de utilização dos recursos do FDCA (art. 260, § 2º, do ECA); validar os recibos de doações ao FDCA (art. 260-D, do ECA); e dar transparência sobre todos os seus atos (art. 260-I, do ECA).
Infelizmente, a maioria dos CDCAs não cumpre com o dever de realizar o diagnóstico de demandas e com base nele deliberar sobre políticas públicas infantojuvenis, elaborando as respectivas resoluções. Também não sabem como proceder à regularização orçamentária, e parecem desconhecer por completo como elaborar planos de ação e de execução, deixando muitas vezes de utilizar valores que estão (parados, às vezes, por anos) nas contas dos FDCAs. Uma das políticas públicas que poderia ser financiada com recursos dos FDCAs diz respeito à profissionalização de adolescentes, no sentido do projeto “Doe um futuro”. E a obtenção de vagas de cursos profissionalizantes poderia ocorrer também sem custo, mediante termos de parceria pactuados com entidades do terceiro setor, como Senai e Senac, por exemplo.
Para tudo isso faz-se mister que os conselheiros sejam devidamente capacitados, assim como outros agentes públicos, para aplicação dos recursos dos FDCAs seguindo o devido processo legal. E esse conhecimento deve ser ofertado à toda a sociedade, para que saiba como cobrar essa atuação tão urgente dos CDCAs.
Notas___________________________________
1 Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/cadastramento-de-fundos#:~:text=Os%20 Fundos%20da%20Crian%C3%A7a%20e,90%20%2D%20no%20seu%20artigo%20260. Acesso em: out./2022.
2 Com dados extraídos em 24/10/2022.
3 A correção do cadastro deve ser feita diretamente na Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) no endereço eletrônico <https://cadastrofdca.mdh.gov.br>.
4 Pessoas Físicas possuem duas oportunidades para fazer a destinação do imposto devido aos FDCAs. Uma delas é durante o próprio ano-calendário (até 31/12), doando até 6% do imposto devido, por meio de depósito bancário na conta corrente do fundo. A outra oportunidade é destinar, no momento da Declaração de Ajuste Anual, via pagamento do Documento de Arrecadação de Receitas Federais (DARF), até o limite global de 3% do imposto devido, por meio do Programa Gerador de Declarações do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (PGD/DIRPF).
Pessoas Jurídicas tributadas pelo Lucro Real podem deduzir do imposto devido, a cada período de apuração, o total das doações efetuadas diretamente aos FDCAs devidamente comprovadas, obedecendo ao limite de 1% do Imposto de Renda devido e apurado pelo Lucro Real. As doações podem ser apuradas mensalmente, trimestralmente, anualmente ou por evento.