Edição 97
O direito constitucional de dirigir embriagado
31 de agosto de 2008
Hugo Leal Deputado Federal PSC/RJ, Advogado
Após a alteração do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sobre os limites de ingestão de álcool, com a aprovação da Lei nº 11.705/08, novas polêmicas surgiram.
O novo crime do CTB tem como condicionante para seu cometimento a concentração de álcool por litro de sangue, igual ou superior a 6 decigramas, daí: como ninguém seria obrigado a produzir prova contra si mesmo, e, uma vez que a Constituição Federal obriga a autoridade a comunicar ao preso o direito de permanecer calado, analogamente, deve comunicá-lo do direito de não fazer o teste; ademais, como a lei especificou o limite de 6 decigramas/litro de sangue e a superação deste valor só se comprovaria por meio de prova técnica, a prova testemunhal não seria válida nestes casos. Consequentemente o réu, mesmo dirigindo completamente embriagado, não seria passível de punição. Finalmente, não poderia também o legislador aplicar a penalidade administrativa de multa e suspensão do direito de dirigir, pois o motorista embriagado estaria exercendo um direito de não produzir prova contra si mesmo.
A prevalecer tal lógica, não haveria o que se fazer. Não se poderia exigir o teste do motorista embriagado, nem suspender sua habilitação, tampouco puni-lo criminalmente. A comprovação da embriaguez por evidências físico-comportamentais restaria prejudicada, visto que esta precisaria ser apurada pericialmente, prova esta que não seria produzida pelo cidadão que, alertado pela autoridade da não obrigatoriedade de submissão ao teste, compreensivelmente, não o faria.
Quanto à impossibilidade de qualquer outra prova para se aferir a embriaguez, comungo da opinião do Procurador da República Bruno Freire de Carvalho Calabrich, que em recente artigo defende que “a prisão em flagrante em caso de recusa do agente ao teste do bafômetro deve ocorrer apenas em casos de embriaguez evidente, que há de ser documentada pelo delegado de polícia no Auto de Prisão em Flagrante, inclusive com testemunhas e com qualquer outra prova apta a demonstrar o fato”. Ora, quando o legislador definiu o índice mínimo aferível por teste sanguíneo ou pelo bafômetro, definiu um mínimo que evidentemente não pressupõe embriaguez. A embriaguez é um estado que pode ser aferido por testemunhas e comportamentos notórios.
Talvez o foco da discussão esteja distorcido. Precisamos considerar que estamos diante de um sistema, que é o Sistema Nacional de Trânsito. Nele existe uma série de normas que devem ser seguidas obrigatoriamente. Ressalto que não existe uma garantia constitucional para condução de veículos automotores.
Assim, todos que pretendem dirigir devem fazê-lo obedecendo não apenas aquelas que lhes pareçam mais justas, mas todas as regras. Regras, cuja verificação de cumprimento, como não poderia deixar de ser, pode resultar em produção de provas contra ou a favor do condutor, como por exemplo: de continuar com saúde, com capacidade mental, com visão, além é claro de estar sóbrio ao dirigir, ou não.
O condutor ao renovar sua habilitação deve provar periodicamente que continua apto (exame de vista, por exemplo), e isso faz com que seja constrangido a produzir prova contra si mesmo. Isto é feito para a proteção da sociedade. E mais: este é um sistema que você adere se quiser, se preencher e se concordar com os requisitos. Logo, ao aderir estará concordando em que, periodicamente, pode produzir prova contra si mesmo. Prova de ter pago o licenciamento, de o veículo ter os equipamentos indispensáveis, e até abrindo mão de sua intimidade para que o agente público possa checar todos os itens.
Isso existe não só no sistema de trânsito. Na aviação, por exemplo, funciona da mesma forma. Já imaginou um piloto que se recuse a fazer os testes, alegando o direito de não produzir prova contra si mesmo? Ou mesmo um passageiro portando armas que se recuse a se submeter ao raio X para não produzir provas contra si?
Quando se buscam formas as mais criativas para descumprir a legislação que exige o teste, na realidade busca-se algo mais contundente, de modo indireto, a defesa do direito constitucional de dirigir embriagado.
Não existe esse direito. O cidadão tem uma série de garantias e elas são relativas ao interesse coletivo. No interesse coletivo, busca-se preservar o meio ambiente e quem desrespeitar vai se submeter à perícia, fazendo prova contra si mesmo.
Este é um sistema que deve funcionar para a preservação da sociedade civilizada. Por isso, somos obrigados a dirigir por determinado lado da via, não circular em outras, andar em determinada velocidade, etc.. Todas as regras devem ser obedecidas.
O que se observa é que a confusão sobre os institutos faz com que surjam posicionamentos que impedem a aplicação da lei. Em síntese, se a lei não pode ser aplicada estar-se-á, em verdade, defendendo de forma indireta o direito constitucional de dirigir embriagado.
Com certeza não podem prosperar estes raciocínios. Eles ocorrem pela confusão na análise de um instituto fora do sistema a que está subordinado. E aí surgem as incoerências e a fragilização dos sistemas de proteção ao bem maior, que é a vida. Mas não podemos retroceder, pois, a despeito das dificuldades de aplicação e das confusões de interpretação, em um mês de aplicação a nova lei já mostrou sucesso efetivo no cumprimento de sua missão: salvar vidas.