O Direito à saúde e a possibilidade do controle judicial

20 de agosto de 2015

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RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar o papel do Poder Judiciário e a possibilidade de sua interferência junto aos demais Poderes na concretização do direito fundamental à saúde. A partir da leitura dos ensinamentos de DWORKIN (2010) e DUARTE (2011) e utilizando como marco teórico a teoria dos direitos fundamentais de ALEXY (2011), chega-se a ilação de que o direito à saúde está positivado em uma norma-regra, devendo ser concretizado na medida do tudo-ou-nada, já que está diretamente ligado à manutenção da vida humana, surgindo daí a exigência de sua universalidade. Posto isso, incumbe ao Legislativo – na elaboração das leis orçamentárias – e à Administração Pública – quando da execução das políticas públicas traçadas, diante de uma escassez natural severa, proceder a escolhas alocativas que tornem suficientes os recursos destinados à eficácia deste direito a todos. Diante da normatividade constitucional e da fundamentalidade do direito em questão, constata-se que o controle judicial dos atos administrativos que materializam as políticas públicas de saúde, inclusive com a prolação de sentenças mandamentais, é imprescindível quando a Administração deixar de efetivar tal direito em conformidade com o planejamento efetuado.

Palavras-chave: Saúde. Núcleo essencial. Políticas públicas. Recursos Financeiros. Controle judicial.

ABSTRACT

This current paper intends to analysethe judicial review of administrative acts that materialise health public policies. Taking into account the dworkian theory and using Alexy’s theory of constitutional rights as a point of departure, is known that health is a standard cast-principle, intimately connected to protection of human life and also to right to health, what sustains its universality. Therefore, the Legislative, when elaborating budget and financial management laws, and the Public Administration, when executing the established public policies, should, whilst facing a natural resources severe shortage, allocate resources in a way that those resources fulfill the effectiveness of those rights to the whole community, since they are vital to human life preservation. As a result, in a context of constitutional effectiveness and fundamental rights, judicial review of the referred administrative acts is proved to be highly necessary, specially when Public Administration neglect the effectiveness of health rights.

Key Words: Health. Essential core. Public Policies. Financial Resources. Judicial review.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda o papel do Poder Judiciário na materialização do direito constitucional à saúde quando da omissão da Administração Pública em concretizá-lo, uma vez que é dever do Estado garanti-lo como reflexo do direito à vida e à dignidade da pessoa humana, bem como uma exigência da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais.

Nesta perspectiva, algumas questões norteiam o estudo: analisando-se a exigibilidade do direito à saúde, é possível o seu controle judicial, sobretudo diante da sua violação pela carência de políticas públicas efetivas? E em caso afirmativo, como deve ser feito tal controle pelo Poder Judiciário, já que a efetivação dos direitos sociais incumbe à Administração Pública?

Tratando-se de um direito assegurado constitucionalmente, erigido ao status de direito fundamental, a saúde deve ser uma das principais preocupações dos governantes. Contudo, muitas vezes tal direito é marginalizado, sobretudo pela alegação da escassez de recursos (princípio da reserva do possível). Daí surge a importância da teoria dos direitos fundamentais de Alexy (2010), funcionando como diretriz para a solução das questões suscitadas, vez que estabelecendo-se a natureza jurídica da norma veiculadora do direito à saúde – se regra ou princípio, pode-se determinar o grau de sua vinculatividade.

Sendo o direito à saúde um princípio, admitirá ponderações. Por outro lado, sendo uma regra, será uma norma absoluta, exigível na medida do tudo-ou-nada. Em ambos os casos, o controle judicial mostra-se pertinente: no primeiro, representará um juízo de proporcionalidade, onde se verificará a pertinência das escolhas alocativas dos recursos públicos procedida pelo administrador; no segundo, cuidará para a efetiva aplicação do direito, podendo, inclusive, determinar à Administração Pública obrigações de fazer.

Neste contexto, o objetivo primordial deste estudo é, pois, investigar se e como o Judiciário deve agir frente a omissão do Poder Público na consecução de políticas de saúde. Para tanto, pretende-se demarcar a natureza jurídica do direito à saúde frente à teoria de Alexy (2011), fixar o seu conteúdo mínimo, analisar sua a exigibilidade frente as possibilidades fáticas (princípio da reserva do possível) e jurídicas (máxima da proporcionalidade) existentes, apresentar os fundamentos que permitem o controle judicial e, por fim, analisar como o Judiciário realizará tal controle.

Para alcançar os objetivos propostos, se utilizará o método dedutivo de estudo e o tipo de investigação jurídico-teórica, enfatizando posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre o objeto de estudo, além da adoção de alguns conceitos. APor fim, a pesquisa terá feição multidisciplinar quanto aos setores de conhecimento, já que utilizará elementos do Direito Administrativo e do Direito Constitucional.

O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de vários doutrinadores renomados como Alexy (2011), Dworkin (2010), Canotilho (2002), Duarte (2011), Barroso (2008), Lopes Júnior (2005), Barros (2008), entre outros.

2 A Estrutura da Norma do Direito Fundamental À SAÚDE

2.1 O direito fundamental social à saúde e sua relação com o direito à vida

O Estado Liberal trouxe a primeira dimensão dos direitos fundamentais, demarcada por uma esfera de autonomia individual e pela ausência da intervenção estatal. Porém, tais direitos foram insuficientes para a promoção de uma verdadeira igualdade, vez que a garantia de liberdades individuais (direitos civis e políticos) serviu como uma forma de opressão da burguesia sobre os trabalhadores.

Na tentativa de se buscar uma igualdade material entre os indivíduos, o Estado Liberal cedeu espaço ao Estado Social, surgindo com ele a segunda dimensão dos direitos fundamentais: os direitos sociais. No rol destes direitos, encontra-se o direito à saúde, que, por sua vez, está intimamente ligado ao direito à vida.

Conforme salienta Duarte

 

(…) Deve-se ver que o direito à saúde consiste numa segunda dimensão ou num desdobramento do direito fundamental à vida, que o contempla e o amplia. Desta forma, o direito fundamental à saúde possui uma área de coincidência com o direito individual à vida; portanto, o direito à vida encontra-se inserido no direito à saúde, sendo este último, porém, mais amplo que o primeiro. (DUARTE, 2011, p. 36).

 

O direito à saúde é amplo, nele estando inserido o direito à vida. Assim, em determinadas situações, a tutela da saúde coincidirá com a tutela da vida; em outras, a tutela da saúde garantirá uma sadia qualidade de vida, mas sem comprometer a existência humana. Nesta linha, dispõe o preâmbulo da Constituição (1946) da Organização Mundial de Saúde, que a “saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”.

Feita esta constatação, é possível diferenciar as demandas de saúde de primeira necessidade e as demandas de saúde de segunda necessidade. Estas dizem respeito a todas as demandas que não apresentam conexão direta com a preservação da vida humana. Aquelas representam todas as demandas de saúde que estão diretamente ligadas ao direito à vida, como, por exemplo, o fornecimento de medicamentos de uso contínuo, garantia de condições sanitárias adequadas, dentre outras.

O Estado tem o dever de assegurar o acesso universal e igualitário ao serviço público de saúde, atendendo tanto as demandas de primeira necessidade quanto as de segunda necessidade. Tal dever está positivado no artigo 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), demandando-se uma dupla atuação estatal, qual seja, a exigência de uma atividade normatizadora – de elaboração de leis veiculadoras de políticas públicas – e de uma atividade positiva – de concretização destas políticas mediante a alocação de recursos públicos.

A celeuma surge justamente quando o Estado deixa de cumprir com seu dever constitucional, alegando muitas vezes a insuficiência de recursos financeiros para atender a todas as demandas de saúde. Nestas hipóteses, há ou não para o particular a possibilidade de exigir do Estado, por via judicial, uma prestação ou a elaboração de uma lei que concretizem o direito à saúde? A resposta a este primeiro questionamento depende inicialmente da análise da natura jurídica da norma veiculadora do direito à saúde, que será tratada a seguir.

2.2 A dicotomia entre regras e princípios

Para se definir a estrutura das normas de direitos fundamentais, é necessário realçar a importante dicotomia existente entre regras e princípios trazida por Alexy (2011) em sua teoria dos direitos fundamentais, já que, como salienta o próprio autor, tal diferenciação “corresponde a um ponto de partida e de resposta para as dúvidas acerca da possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais” (ALEXY, 2011, p. 90).

Para Alexy (2011), tanto as regras quanto os princípios são normas jurídicas, já que ambos ditam o dever-ser, trazendo permissões e proibições. Apesar de o autor apresentar vários critérios já existentes para distingui-los, refuta-os, acreditando que entre regras e princípios não existe apenas uma diferença gradual, mas sim uma diferença qualitativa – toda norma é ou uma regra ou um princípio.

Segundo Alexy

 

Os princípios são mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas; estes contêm mandamentos prima facie, apresentando razões que podem ser perfeitamente afastadas. Por conseguinte, regras são normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. (ALEXY, 2011, p. 90).

 

 

Nesta esteira, Dworkin (2010) também traz uma importante distinção entre regras e princípios. Para ele, a diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica – distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. Segundo o autor

 

As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dado os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (DWORKIN, 2010, p. 39).

 

Já os princípios são padrões que devem ser observados por representarem uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. E continua o autor

 

Um princípio não pretende estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. (…) Em um mesmo caso, poderá haver outros princípios que argumentem em direção oposta, e o princípio em tela pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico. (DWORKIN, 2010, p. 39).

Na linha do que foi exposto, a dicotomia entre princípios e regras é realçada na aplicação concreta da norma jurídica. Sendo uma norma-princípio, admite-se o cumprimento gradual da norma, ou seja, a depender do caso concreto, pode ser satisfeita em maior ou menor intensidade. Sendo uma norma-regra, somente admite-se o cumprimento pleno da norma, isto é, se uma regra é válida, ela deve ser aplicada e concretizada integralmente.

A diferenciação entre regras e princípios também pode ser notada quando se analisa os casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Segundo Alexy (2011), o conflito entre regras é solucionado mediante uma dimensão de validade: deve-se introduzir, em uma das regras, uma cláusula de exceção – que excepciona a hipótese normativa diante de algum fato. Se ainda assim a solução do conflito não for possível, pelo menos uma das regras contraditórias entre si deve ser declarada inválida. A outra, válida, será aplicada na sua integralidade.

Já a colisão entre princípios é solucionada segundo uma dimensão de peso – há um sopesamento entre interesses conflitantes, resolvido pela máxima da proporcionalidade. Se dois princípios colidem no caso concreto, apenas um deles irá prevalecer. Porém, isso não significa que um princípio deva ser declarado inválido ou que deva ser introduzida uma cláusula de exceção; na verdade, como os princípios têm pesos diferentes, o princípio de maior peso ganhará precedência em face do outro em determinado caso concreto.

Na mesma linha de Alexy (2011), Dworkin acentua que

 

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior; já os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, (…) aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. (DWORKIN, 2010, p. 42).

Estabelecida a diferenciação entre regras e princípios e os métodos utilizados na solução das colisões entre princípios e dos conflitos entre regras, passar-se-á a analisar o direito fundamental à saúde e o seu enquadramento como norma-regra ou norma-princípio, bem como a importância desta classificação para a exigibilidade de políticas públicas de saúde perante o Poder Judiciário quando da omissão do Estado na sua formulação.

2.3 A natureza jurídica da norma positivadora do direito à saúde

Durante o Positivismo, analisava-se as normas considerando-as ou como um imperativo categórico, com alto grau de vinculatividade, impondo ao Poder público o dever de prestar todo e qualquer serviço concretizador de um direito social (o que seria inviável visto a escassez de recursos e o custo dos direitos); ou como normas programáticas, funcionando apenas como mera diretriz de atuação.

Superando o Positivismo, o Pós-Positivismo passa a reconhecer a força normativa da Constituição, conferindo caráter imperativo tanto aos princípios quanto as regras positivados constitucionalmente, abandonando-se o caráter programático das normas. Assim, surge para o Estado o dever de agir conforme os preceitos constitucionais, de forma que os direitos fundamentais, sejam eles consagrados por normas ou princípios, passaram a demandar uma observância imperativa.

Contudo, apesar da obrigatoriedade criada para o Estado, surgem diferenças práticas na concretização dos direitos fundamentais conforme estes estejam positivados em normas-regras ou normas-princípios. Conforme já salientado, o direito à saúde encontra-se positivado no artigo 196 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sendo importante neste ponto do trabalho definir qual a natureza desta norma e quais as consequências práticas daí advindas, à luz da teoria dos direitos fundamentais.

Enquanto uma norma-princípio, o direito à saúde deve ser concretizado na maior medida do possível, mas, ao encontrar-se em conflito com outros direitos sociais, sobretudo por inexistir recursos para atender a todos os direitos, é admitido o seu sopesamento segundo a máxima da proporcionalidade, não sendo, portanto, um direito absoluto.

Enquanto uma norma-regra, o direito à saúde seria absoluto, devendo ser concretizado à maneira do tudo ou nada. Sendo a norma constitucional uma regra válida, deve o Estado fazer exatamente aquilo que ela exige. Assim, a saúde deve ser tratada com prioridade em relação a outros direitos fundamentais sociais assegurados, garantindo-se preferência na formulação de políticas públicas e destinação de recursos para atendê-las.

Contudo, Alexy (2011) admite que, de início, as normas de direitos fundamentais “são ou regras ou princípios”; mas estas “adquirem um caráter duplo se forem construídas de forma a que ambos os níveis sejam nelas reunidos” (ALEXY, 2011, p. 141). Isto é, uma norma constitucional pode apresentar uma estrutura híbrida, detendo, ao mesmo tempo, um conteúdo de regra e um conteúdo de princípio.

Nesta esteira, a norma positivadora do direito à saúde é em verdade uma norma híbrida: tem natureza de norma-princípio, porém, no tocante ao núcleo essencial do direito, tem natureza de norma-regra. O Pós-Positivismo tornou os princípios vinculantes e obrigatórios, não sendo mais meros vetores do ordenamento jurídico e/ou supressores de lacunas. O direito à saúde, enquanto princípio, não pode ser esvaziado completamente, demandando-se a proteção ao seu núcleo essencial, que tem, por isso, natureza de regra.

Enquanto norma-regra, não há margem de discricionariedade para o Administrador, que deve formular políticas públicas e destinar verbas para garantir o núcleo essencial do direito à saúde, não podendo invocar a escassez de recursos para se escusar do cumprimento destas obrigações prioritárias. Somente depois de atendido o núcleo essencial do direito à saúde é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outras políticas públicas se deve investir, vez que, ultrapassado esse conteúdo mínimo, o direito à saúde tem natureza de norma-princípio.

Sendo o direito à saúde um princípio, admitirá ponderações. Por outro lado, sendo uma regra, será uma norma absoluta, exigível na medida do tudo-ou-nada. Em ambos os casos, o controle judicial mostra-se pertinente: no primeiro, representará um juízo de proporcionalidade, onde se verificará a pertinência das escolhas alocativas dos recursos públicos procedida pelo administrador; no segundo, cuidará para a efetiva aplicação do direito, podendo, inclusive, determinar à Administração Pública obrigações de fazer.

Neste ponto torna-se importante delimitar o conteúdo do núcleo essencial do direito à saúde, bem como a analisar os princípios da reserva do possível e do mínimo existencial, delimitando-se a exigibilidade deste direito, uma vez que não se revela razoável permitir seu incremento em toda e qualquer situação às custas do endividamento público.

2.4 O conteúdo mínimo essencial do direito à saúde

Conforme já salientado, o direito social à saúde é apresentado pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) com a natureza normativa de princípio, mas também é indubitável o reconhecimento de uma força normativa típica das regras quanto ao seu núcleo essencial. Neste diapasão, novamente está demarcada a importância da teoria dos direitos fundamentais de Alexy (2011) como referencial teórico deste trabalho.

O conteúdo mínimo essencial de um direito fundamental representa um núcleo permanente e intangível, que não pode ser afetado, sendo por isso considerado um “limite dos limites”. Quando há um conflito entre direitos fundamentais, em primeiro lugar, deve-se verificar se a restrição a determinado direito é aceitável de acordo com o princípio da proporcionalidade. Em seguida, deve-se analisar se a restrição não esvaziou o núcleo essencial do direito, sob pena de não se admitir tal limitação.

Devido a relevância do bem jurídico tutelado, pode-se afirmar que o núcleo essencial do direito à saúde consiste na proteção e na preservação da vida humana. Desta forma, todas as ações e direitos que estiverem diretamente ligados à manutenção da vida humana, as chamadas demandas de saúde de primeira necessidade, estarão contidos neste núcleo.

Assim, na consecução das demandas de saúde primeira necessidade, o direito à saúde é uma norma-regra, devendo ser atendido na medida do tudo-ou-nada, passando a vincular os poderes públicos. Segundo Dworkin (2010), a concepção pós-positivista é de extrema importância, pois “se os tribunais tivessem o poder discricionário para modificar as regras estabelecidas, essas regras certamente não seriam obrigatórias para eles e, dessa forma, não haveria direito”. (DWORKIN, 2010, p. 50).

Deve a Administração Pública cuidar para que estas demandas sejam atendidas com prioridade. Em caso de inércia do Poder Público na formulação de políticas públicas ou má alocação de recursos públicos, as demandas que envolvem os serviços de saúde de primeira necessidade merecerão plena guarida em juízo, não socorrendo a alegação da escassez de verbas, funcionando o controle judicial como garantia da eficácia do direito à saúde.

Por outro lado, ultrapassado o núcleo essencial do direito à saúde, fala-se nas demandas de saúde de segunda necessidade. Mesmo nestas hipóteses, o Estado tem o dever de realizar políticas públicas e destinar recursos para atendê-las. Ocorre que, reconhecida a escassez de verbas, não estando em jogo a vida humana, a Administração gozará de certa liberdade na formulação de ações governamentais e alocação de recursos, podendo atender outros direitos igualmente fundamentais.

Assim, quando o dever estatal é estabelecido por uma norma-princípio, o Judiciário somente interferirá em questões deste naipe sob o viés da proporcionalidade, aferindo a legalidade e/ou razoabilidade da escolha, pois não lhe é dado se imiscuir no mérito administrativo – margem de conveniência e oportunidade de que goza o administrador no desempenho de sua atividade.

Resta agora enfrentar a questão da obrigatoriedade das ações de saúde à luz do princípio da reserva do possível e estabelecer como o Judiciário fará o controle das escolhas administrativas, já que a Administração Pública é livre para formular as políticas públicas de saúde, desde que tenha como foco principal a universalidade, prevenção e igualdade.

3 O Direito ao Saneamento Básico Frente a Escassez de Recursos do Estado

Conforme exposto no capítulo anterior, à luz da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sendo dever do Estado garantir o direito à saúde de todos. No cumprimento de seu mister este deve elaborar políticas públicas e alocar recursos públicos para atendê-las, havendo a possibilidade da prestação jurisdicional quando houver lesão ou ameaça de lesão a esse direito.

Contudo, o principal argumento levantado pela Administração Pública para a não consecução de ações de saúde é a limitação financeira, representando a reserva do possível um entrave para a consagração do direito à saúde e dos demais direitos sociais.

Neste capítulo, analisar-se-á o princípio da reserva do possível, sua repercussão na consagração do direito à saúde e no controle judicial das políticas públicas, sua ponderação à luz do princípio do mínimo existencial, bem como em que momento a reserva do possível figurará como uma escusa legítima e quando é usada de forma arbitrária.

3.1 As espécies de escassez de recursos

 

Elster explica que

 (…) A escassez pode ser em maior ou menor grau, natural, quase-natural ou artificial. Quando nada puder ser feito para eliminá-la ou para aumentar a oferta do bem muito escasso, será considerada uma escassez natural severa (…). Será, entretanto, uma escassez natural suave quando nada puder ser feito para que o bem escasso seja disponível para todos, mas já o for para a maioria dos que precisam deles (…). Já quando a oferta do bem puder ser incrementada, mesmo que ainda sem atingir a satisfação integral de todos, por condutas não coativas dos cidadãos, estar-se-á diante de uma escassez quase natural. Por fim, a escassez será artificial quando medidas puderem ser tomadas pelo Estado para deixar o bem disponível a todos. (ELSTER, 1992, p. 21, apud AMARAL, 2001, p. 134)

A escassez de recursos financeiros representa uma escassez natural suave quando o Estado, diante do aumento da arrecadação de tributos ou da reformulação do orçamento, consegue angariar recursos para satisfazer totalmente as demandas. Por outro lado, há uma escassez natural severa quando, mesmo se adotando as medidas expostas, o Estado permanece incapaz de satisfazer as demandas em sua integralidade. No Brasil, pode-se afirmar que há uma escassez natural severa, uma vez que os recursos orçamentários não são suficientes para satisfazer inteiramente as demandas de saúde.

Certo é que, diante desta escassez, cabe à Administração Pública a importante missão de decidir sobre a alocação dos recursos, de forma a distribuí-los de maneira justa e atender o maior número de demandas possíveis. Isto porque, apesar de os direitos sociais serem instrumentos de promoção de equidade social e da dignidade humana, não se revela razoável permitir seu incremento às custas do endividamento público.

Na insuficiência de recursos para atender a todas as demandas de saúde, devem ser priorizados recursos no atendimento das demandas de primeira necessidade, vez que imperativa a proteção do núcleo essencial do direito à saúde, tutelando-se diretamente a vida humana. Em se tratando de demandas de saúde de segunda necessidade, a Administração goza de certa discricionariedade na alocação de recursos para atendê-las. Novamente, caberá ao Poder Judiciário cuidar para que as escolhas da Administração, em ambos os casos, sejam feitas dentro de tais parâmetros, o que será objeto de análise ainda neste capítulo.

3.2. Princípio da reserva do possível e o mínimo existencial

Segundo o princípio da reserva do possível, a Administração Pública somente está obrigada a realizar políticas públicas, assegurando direitos fundamentais, quando existirem recursos públicos para tanto. A escassez de verbas representaria, então, uma escusa legítima para a omissão estatal. Contudo, conforme será exposto neste tópico, a alegação da reserva do possível nem sempre será legítima, principalmente quando analisada à luz do mínimo existencial.

Segundo Sustein e Holmes:

Todos os direitos, desde os que dependem de atuação positiva até aqueles negativos ou de defesa, implicam custos para o Estado. E, diante disso, nenhum direito será absoluto, mas dependerá dos recursos econômicos do Estado para serem realizados. Somente existirão direitos onde o fluxo orçamentário os previr. (SUSTEIN e HOLMES, 1999, p. 94)

Já o mínimo existencial visa garantir condições mínimas de existência humana digna, e se refere aos direitos positivos (direitos sociais), exigindo que o Estado ofereça condições para que haja eficácia plena na aplicabilidade destes direitos. Ocorre que a Constituição Federal prevê inúmeros direitos fundamentais, sendo os recursos públicos insuficientes para supri-los. É neste contexto que o mínimo existencial se liga ao princípio da reserva do possível: apesar de existir limites financeiros para a efetivação dos direitos fundamentais prestacionais, o mínimo existencial deve sempre ser atendido, garantindo o Estado condições básicas para uma vida digna.

A reserva do possível é invocada muitas vezes pelo Estado para eximir-se de sua responsabilidade prestacional. Em algumas hipóteses, a insuficiência de recursos legitimará a omissão estatal; em outras, funcionará como uma escusa arbitrária, não merecendo prosperar. Nesta esteira, Canotilho já adverte:

Quais são no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (VorbehaltdesMoglichen) para traduzir a ideia de que os direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. (CANOTILHO, 1998, p. 477).

No tópico a seguir, será analisado como o problema da escassez de recursos deve ser enfrentado pela Administração Pública e como o Judiciário deve atuar ao realizar o controle judicial garantindo o direito à saúde sem comprometer o orçamento público e o atendimento dos demais direitos fundamentais consagrados na Carta Magna.

3.3. A alegação da reserva do possível como escusa para o atendimento do direito à saúde

A escassez severa de recursos compromete a realização integral do direito à saúde e dos demais direitos fundamentais. Especificamente em relação ao direito à saúde, inúmeras vezes surgirão conflitos entre este direito e o princípio da reserva do possível. Na solução deste confronto, novamente surge a importância de se definir a norma positivadora do direito à saúde como uma norma híbrida.

Na parte em que é uma norma-princípio, haverá um conflito entre princípios: de um lado tem-se o princípio da reserva do possível e, do outro, o princípio do direito à saúde. Neste caso, a Administração poderá realizar um sopesamento frente as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, contrapondo os recursos disponíveis e a necessidade de atendimento às demandas de saúde de segunda necessidade. Apesar de o Estado também ter o dever de atender tais demandas de saúde, goza de uma margem de discricionariedade, podendo empregar os recursos na consecução de outros direitos fundamentais igualmente essenciais, sendo legítima a alegação da reserva do possível para afastar qualquer responsabilidade dos governantes.

Hipótese diversa ocorre quando o direito à saúde é vazado em uma norma-regra. Enquanto regra inserta no ápice do ordenamento jurídico, precederá o princípio da reserva do possível, também positivado constitucionalmente. As demandas de saúde de primeira necessidade, como reflexo do direito à vida, devem ser implementadas integralmente, não havendo margem de discricionariedade para a Administração Pública. O núcleo essencial do direito à saúde é intangível, devendo ser preservado em qualquer hipótese. A insuficiência de recursos sucumbe frente a garantia do mínimo existencial, de forma que alegação da reserva do possível pelo Estado se mostra ilegítima.

Esta distinção é importante para que o respeito ao direito à saúde não se dê às custas do endividamento público. Surge para a Administração Pública o dever de alocar e aplicar os recursos disponíveis no atendimento do núcleo essencial do direito à saúde e consequente garantia do mínimo existencial, sendo ilegítima a alegação da reserva do possível como escusa do cumprimento de tais obrigações; mas, superado este patamar, abre-se margem para alocação de recursos públicos no atendimento de outros direitos fundamentais.

Levado ao Judiciário determinada demanda envolvendo o direito à saúde, a solução da celeuma deverá permear-se pela dicotomia explanada: sendo uma demanda de saúde de primeira necessidade, a prestação jurisdicional é imperativa; a escassez de recursos, ainda que comprovada, não legitimará a inércia do Estado, podendo o Judiciário determinar a realização de uma política pública, a alocação de recursos ou o atendimento a determinado pleito individual. O mínimo existencial prevalecerá sobre o princípio da reserva do possível.

Por outro lado, sendo uma demanda de saúde de segunda necessidade, situada fora do núcleo essencial, se a escolha do Poder Público foi proporcional, atendendo a outros direitos fundamentais relevantes, será legítima a alegação da reserva possível. Ultrapassado o mínimo existencial, o controle judicial na realização de políticas públicas somente será admitido se as opções da Administração Pública se mostrarem desde logo ilegais e/ou desarrazoadas ou quando não comprovada cabalmente a insuficiência de recursos.

3.4 O direito à saúde e o conflito com outros direitos fundamentais

Por outro lado, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) prevê uma série de direitos e garantias fundamentais, sendo o direito à saúde apenas mais um dos direitos tipificados. Ocorre que os recursos financeiros são escassos e as demandas públicas são infinitas. Por isso, é corrente o conflito envolvendo o direito à saúde e os demais direitos sociais.

3.4.1 O direito à saúde versus outros direitos sociais

Na resolução do conflito entre o direito à saúde e outro direito social, é importante distinguir as hipóteses em que estão em jogo demandas de saúde de primeira necessidade das hipóteses em que estão envolvidas demandas de saúde de segunda necessidade.

Quando pela escassez de recursos houver um conflito entre uma demanda de saúde de primeira necessidade e outro direito social (não ligado ao seu núcleo essencial), prevalecerá o direito à saúde, vez que esculpido em uma norma-regra, diretamente ligado ao direito à vida.

Situação diversa ocorre quando há um embate entre o núcleo essencial do direito à saúde e o núcleo essencial de outro direito social. Neste caso, ambos os direitos são veiculados por normas-regras, de forma que tanto o direito à saúde quanto o outro direito social deveriam ser tutelados. Contudo, frente a uma escassez severa de recursos, haverá a precedência do direito à saúde, permeando-se a solução do conflito pela tutela da vida, vez que constitui pré-requisito para a fruição de outros direitos.

Dessa forma, quando se trata de um pleito onde está em jogo uma demanda de saúde de primeira necessidade, ainda que implique em significativo impacto financeiro, deve o Estado acatá-lo. Uma vez alegada pelo Estado a insuficiência financeira, deve sempre o Judiciário intervir buscando tutelar a vida, seja determinando uma atitude comissiva do Poder Público, seja utilizando os critérios alocativos para a solução dos conflitos.

Uma terceira hipótese surge no conflito entre uma demanda de saúde de segunda necessidade e outro direito social (não ligado ao seu núcleo essencial). Neste caso, sendo ambos os direitos veiculados por normas-princípios, o embate será solucionado pela máxima da proporcionalidade. A privação do direito à saúde em detrimento do outro direito social será tolerada, desde que se dê com base em critérios éticos aceitáveis. Contudo, se alegada pelo Estado a insuficiência financeira, mas não comprovada, o Judiciário poderá garantir ao titular do direito à saúde a medida desejada.

A quarta e última hipótese ocorre quando há um embate entre uma demanda de saúde de segunda necessidade e o núcleo essencial de outro direito social. Constatada e comprovada a insuficiência de recursos, o direito à saúde sucumbirá – enquanto norma-princípio, sendo tutelado o outro direito social, frente a intangibilidade de seu conteúdo mínimo.

3.4.2 O direito à saúde de um versus o direito à saúde de outros

Na materialização do direito à saúde de vários indivíduos, podem surgir conflitos envolvendo tanto demandas de saúde de primeira necessidade quanto demandas de saúde de segunda necessidade.

Havendo o conflito entre duas demandas de saúde de segunda necessidade, vazadas em normas-princípios, este será solucionado pela máxima da proporcionalidade. Deverá ser feita a ponderação dos interesses em jogo, determinando-se qual prevalecerá no caso concreto. Tanto a Administração Pública, na execução das políticas públicas de saúde, quanto o Judiciário, no julgamento de demandas de saúde, devem nortear-se por estes critérios.

Uma segunda hipótese surgirá no conflito entre uma demanda de saúde de primeira necessidade e uma demanda de saúde de segunda necessidade. Conforme exaustivamente já tratado, frente a escassez de recursos, devem ser priorizadas as demandas de saúde de primeira necessidade, posto tratar-se de normas-regras, de aplicação imperativa, reflexo da obrigatoriedade de proteção do direito à vida e do mínimo existencial.

Por fim, o caso será de maior complexidade quando envolver o conflito entre duas demandas de saúde de primeira necessidade, sendo ambas normas veiculadas por regras e guardiãs da vida humana. Primeiramente, deve o Estado tentar angariar recursos para atender a ambas as demandas. Porém, demonstrada a falta de recursos e a impossibilidade de concretizar todos os direitos em jogo, é mister que se determine, com base em critérios ético-jurídicos e no princípio da igualdade, quem será atendido.

Nestas hipóteses, deverá ser adotado pela Administração Pública ou pelo Judiciário o critério do número de beneficiários: não se pode priorizar a vida de um em detrimento da vida de muitos. Se o objetivo é cuidar da sobrevivência humana, nada mais certo do que, frente a insuficiência de recursos (devidamente comprovada), dar preferência a medidas que atenderão o maior número de pessoas possíveis. Tal critério é o mais benéfico porque contempla tratamento isonômico da vida de todos – ninguém seria beneficiado ou preterido por razões pessoais.

Neste diapasão, elucida-se não só a possibilidade, como a necessidade do controle judicial, pois, como está em tela o direito à vida, a decisão deve ser a mais justa possível, já que a escolha implicará na abstenção do direito à vida de outrem.

4 O Controle Judicial dos Atos Administrativos Que Materializam Políticas Públicas

Duarte (2011) salienta que incumbe à Administração Pública a importante missão de elaboração e efetivação de políticas públicas, assim consideradas como um conjunto de ações e omissões que visam à proteção e promoção dos direitos fundamentais, inclusive os sociais, sendo o resultado da ponderação entre interesses conflitantes e recursos públicos limitados.

Porém, nem sempre esta atividade é desempenhada corretamente, seja pela ausência de um planejamento orçamentário que destine verbas suficientes para a materialização destas políticas, seja pela má execução das leis orçamentárias. E é neste contexto que o controle judicial é de extrema importância, aferindo a constitucionalidade e/ou legalidade das escolhas feitas pela Administração, cuidando para que haja um adequado planejamento do gasto das verbas e correta execução das políticas públicas.

Neste capítulo, analisar-se-á mais a fundo a possibilidade do controle do Judiciário sobre os atos administrativos que materializam políticas públicas de saúde e, posteriormente, destinar-se-á a análise das formas utilizadas para o empenho deste controle.

4.1 O controle judicial seria uma violação à separação de poderes?

A discussão sobre a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário nas decisões governamentais vem à tona sobretudo porque o mesmo não detém a competência para elaboração de políticas públicas, que ficam a cargo do Legislativo e do Executivo. Desta forma, a doutrina se divide, surgindo posicionamentos favoráveis e contrários ao controle judicial sobre os atos administrativos que materializam políticas públicas de saúde.

A doutrina tradicional sustenta que ao realizar um controle sobre as opções legislativas e administrativas, estaria o Judiciário interferindo na alçada destes poderes, cuidando da distribuição de recursos (quando a decisão implica o contingenciamento do orçamento) e da execução das políticas (quando a decisão implica a prática de atos materiais). Assim, o controle do Judiciário violaria o processo democrático, pois somente os poderes eleitos pelo povo gozam de legitimidade para operar escolhas políticas.

Analisando as ações judiciais em que são pleiteados direitos sociais aos entes públicos, Barroso (2008) sustenta que o excesso de ingerência judicial prejudica a promoção de políticas públicas, já que obsta a discricionariedade da administração na alocação de recursos escassos. Na contramão do controle judicial, salienta que o princípio da separação de poderes impediria este controle. Para ele, “é o próprio povo – que paga os impostos – que deve decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos” (BARROSO, 2008, p. 30).

De outro lado estão aqueles que defendem uma maior atuação do Poder Judiciário nas questões políticas do Estado. Para eles, esta atuação faz-se imperativa para que se resguarde princípios fundamentais e se proteja o Estado Democrático de Direito, visando sempre sedimentar uma verdadeira igualdade social. Refutando o argumento de que a ingerência judicial violaria o processo democrático, Lopes Júnior, citado por Freire Júnior, salienta

A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático a Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial. (FREIRE JÚNIOR, 2005, p. 58, apud LOPES JÚNIOR, 2004, p. 73).

Os argumentos contrários ao controle judicial não podem prevalecer. Muito se elucidou a relevância e a necessidade deste controle, evitando casuísmos e arbítrios na escolha administrativa. A atuação judicial é de extrema importância para a solução dos conflitos envolvendo o direito à saúde, pois, realizando um juízo de proporcionalidade e adotando critérios ético-jurídicos, sem se imiscuir no mérito administrativo, legitimará ou não uma possível restrição ao direito.

Não merece prosperar a alegação de que a interferência judicial macularia a separação de poderes, o que pode ser facilmente refutado partindo-se da ideia da inafastabilidade da jurisdição: diante de uma lesão ou ameaça de lesão à um direito não pode ser negada uma prestação jurisdicional apta a coibir a ofensa. Ademais, a própria doutrina separatista reconhece que os Poderes exercem funções atípicas, não existindo uma separação estanque entre eles. Desta forma, é o próprio postulado da separação dos poderes que legitima o Judiciário na incumbência de fiscalizar as ações estatais.

Ainda, a força deôntica das normas consagradoras de direitos sociais, trazida pelo pós-positivismo, conferindo vinculação jurídica ao seu conteúdo, reforça a necessidade de um controle mútuo entre os poderes, atuando em benefício do povo. A necessidade de efetivação dos direitos sociais suplantaria qualquer óbice normativo trazido pelo princípio da separação dos poderes, ainda mais quando se está em jogo um direito social cuja efetivação garante a sobrevivência humana: fornecer condições de saúde adequadas é cuidar para que o direito à vida também seja tutelado.

É certo que o Judiciário não detém a função de elaboração de políticas públicas, mas, apesar de não formulá-las, tem o poder-dever de impor sua execução mediante a ordenação de obrigações de fazer à Administração Pública. O próprio Supremo Tribunal Federal reconhece a legitimidades deste controle; no julgamento da ADPF nº 45 MC/DF, o Ministro Relator Celso de Mello atestou que tal incumbência seria atribuída ao Poder Judiciário se e quando os órgãos estatais competentes descumprissem seus encargos políticos violando direitos – ainda que derivados de normas de conteúdo programático.

Além de operar perante uma omissão estatal, casos há em que o Judiciário será chamado a intervir para aferir a constitucionalidade das escolhas administrativas. Nestas situações, apesar de haver uma atuação positiva dos órgãos estatais, elaborando-se o plano orçamentário, são destinadas verbas insuficientes para as políticas de saúde ou há uma má alocação de recursos na execução destas políticas. Mesmo nestes casos, a ingerência judicial será legítima (e imperativa) quando houver a restrição do direito de maneira antijurídica.

Da mesma forma, a mera alegação da reserva do possível não é argumento suficiente para impedir o controle judicial. Diante de uma limitação financeira devidamente comprovada, quando estão em conflito demandas de saúde de primeira necessidade, poderá o Judiciário pronunciar-se acerca da escolha feita, com base no critério do número de beneficiários já apresentado neste trabalho.

Por tudo o que foi exposto, reconhecida a força normativa da Constituição, é mister que haja um controle das políticas públicas pelo Judiciário, anulando atos inválidos, aplicando condenações ou impondo à Administração obrigações de fazer, mesmo na falta de regulamentação infraconstitucional. Este papel é de extrema relevância para a máxima consagração do direito à saúde, sobretudo pelo fato desta intervenção significar verdadeira tutela à vida humana.

4.2 As formas de controle do Judiciário sobre as políticas públicas de saúde

Por força do princípio da inércia da jurisdição, para que o Judiciário realize o controle sobre os atos administrativos que materializam o direito à saúde, demanda-se a sua provocação mediante o ajuizamento de ações ordinárias ou de ações próprias – remédios constitucionais, erigidas constitucionalmente como garantias do indivíduo. Uma vez provocado, poderá realizar um controle preventivo ou repressivo, visando coibir eventuais violações ao direito à saúde.

4.2.1 O controle judicial na elaboração das políticas públicas de saúde – o controle preventivo

O legislador constitucional, ciente da escassez de recursos e visando um maior controle e aproveitamento das finanças, positivou uma série de princípios orçamentários na Constituição Federal (BRASIL, 1988). Dentre eles, o princípio da legalidade da despesa aponta no sentido de que uma despesa pública só pode ser efetuada se houver prévia autorização na lei orçamentária. Tamanha é a preocupação com a saúde orçamentária que este princípio – além de outros – devem ser considerados quando da elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da Lei Orçamentária Anual e do Plano Plurianual.

O Plano Plurianual estabelece as diretrizes, objetivos e metas a serem seguidos pelo Poder Público ao longo de um período de quatro anos. Por sua vez, a Lei Orçamentária Anual estima as receitas e autoriza as despesas com base na previsão de arrecadação. Por fim, com o intuito de sintonizar a Lei Orçamentária Anual com as diretrizes do Plano Plurianual, orientando a elaboração dos orçamentos fiscais e investimentos do Poder Público, é elaborada a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

A alocação de recursos incumbe ao Executivo e ao Legislativo, cabendo a eles, diante da estimativa de arrecadação tributária, distribuir as verbas de modo a concretizar as políticas públicas de saúde, atendendo sempre o maior número possível de beneficiados, realizando verdadeiros juízos de ponderação nas escolhas alocativas. A lei orçamentária deve consignar recursos suficientes para promover a universalização do direito à saúde, atendendo, prioritariamente, as políticas públicas de saúde de primeira necessidade.

É justamente este juízo de ponderação que permite ao Judiciário realizar o controle sobre o processo legislativo das leis orçamentárias, uma das formas de controle preventivo. Na elaboração da lei orçamentária, onde atuam o Executivo e o Legislativo, caberá a ele verificar se foram atendidos os parâmetros jurídicos que observam o juízo de ponderação entre os princípios e se foi preservado o núcleo essencial do direito à saúde.

Sendo a realização do núcleo essencial do direito à saúde uma norma-regra, caso o Executivo, na formulação do projeto de lei orçamentária, deixe de consignar políticas públicas de saúde, ou o Legislativo distribua pouco ou nenhum recurso para a efetivação das mesmas, o Judiciário poderá determinar que na edição da Lei Orçamentária sejam incluídas as referidas políticas de saúde ou sejam autorizadas despesas para atendê-las.

A atuação do Poder Judiciário também poderá ser invocada ainda quando o conteúdo do direito à saúde for vazado em uma norma-princípio. Neste caso, o controle sobre a previsão de políticas de saúde ou a autorização de despesas para atendê-las recairá sobre as escolhas alocativas do Executivo ou Legislativo. Ultrapassado o núcleo essencial do direito, a ingerência judicial ocorrerá somente nas hipóteses em que as escolhas se revelarem desde logo ilegais ou desarrazoadas, vez que não é dado ao Judiciário se imiscuir no mérito administrativo.

O controle preventivo também permite a interferência do Judiciário na averiguação da adequação da lei orçamentária com os objetivos fixados na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Plano Plurianual. Esta forma de controle mostra-se de extrema relevância na medida que, ao se analisar tal compatibilidade e se exigir sua adequação, garante-se a plena eficácia das metas consignadas nas leis orçamentárias, não sendo apenas meras previsões constitucionais, evitando o esvaziamento da Constituição e garantindo sua força normativa.

Barros (2008) traz ainda uma outra possibilidade de controle judicial preventivo. Não sendo possível a destinação de recursos em determinado exercício financeiro para o atendimento de políticas de saúde, tem-se a “alternativa de buscar, no Judiciário, (…) a obrigação de que seja destinada verba no orçamento do ano seguinte para a referida política” (BARROS, 2008, p. 14). A solução ganha relevância frente as demandas de saúde de alto custo não contempladas no orçamento: além de se garantir a legalidade orçamentária, protegendo os princípios financeiros, não se deixa de concretizar o direito à saúde, sobretudo quando se está em jogo a vida humana.

Desta forma, o controle preventivo feito pelo Judiciário, ainda na fase de elaboração das políticas públicas, evita de antemão a violação ao direito à saúde. Reconhecida a insuficiência orçamentária do Estado para concretizar todos os direitos previstos na Constituição, o Judiciário ganha o importante papel de determinar a elaboração de políticas públicas e alocação dos recursos, cuidando para que as verbas existentes nos cofres públicos sejam utilizadas em políticas de interesse público, evitando o mau uso do dinheiro estatal.

O controle preventivo é, sem dúvidas, uma alternativa mais conveniente, pois, ao cuidar que se implementem políticas públicas eficientes e se destine verbas suficientes para atendê-las, evita-se o congestionamento e morosidade do Judiciário com ações judiciais que poderão acarretar sacrifícios desnecessários aos cofres públicos. E não só, ao lançar mão deste controle preventivo, de caráter geral e abstrato, atinge-se a universalidade da prestação dos serviços de saúde, vez que as prestações estatais concedidas mediante ordem judicial somente atendem aqueles que socorreram à justiça.

Conforme já explicitado, para que haja a atuação do Poder Judiciário, é necessário a sua provocação. O controle preventivo poderá ser realizado mediante o ajuizamento de ações ordinárias, ações civis públicas e ações populares ou ainda nas ações típicas do controle de constitucionalidade – como, por exemplo, a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por omissão ou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. No presente estudo dar-se-á maior enfoque às ações pertinentes ao controle repressivo, que serão posteriormente estudadas.

4.2.2 O controle judicial na execução das políticas públicas de saúde – o controle repressivo

A elaboração das políticas públicas é de competência do Legislativo e do Executivo. Uma vez elaboradas, se a Administração Pública deixa de cumprir fielmente o previsto na Lei Orçamentária, não efetivando as políticas públicas previstas ou aplicando os recursos que seriam investidos na saúde em outras ações estatais, o controle repressivo do Judiciário será imperioso para cuidar que a execução orçamentária seja fielmente cumprida conforme à lei.

A discricionariedade na alocação de recursos públicos somente pode existir na fase de elaboração do projeto de lei orçamentária – discricionariedade esta que não se opera quando se trata de demandas de saúde de primeira necessidade, já que se tutela, num primeiro plano, a vida. Também na fase de execução das políticas de saúde a discricionariedade da Administração é nula quando se trata de efetivar o núcleo essencial do direito à saúde, veiculado por uma norma-regra que deve ser implementada na medida do tudo. Não pode a Administração realocar recursos financeiros livremente, sob pena de haver o controle judicial, estando equivocada a concepção de Krell (2002), de que “no Brasil, não há vinculação legal dos governos de executar o orçamento” (KRELL, 2002, p. 100).

Mesmo na execução de políticas públicas de saúde ditas de segunda necessidade, onde há uma maior liberdade de atuação estatal, o controle judicial preventivo também poderá ser invocado sempre que a omissão ou falha da Administração na concretização do direito à saúde se mostrar ilegítima, não sendo comprovada a escassez de recursos, podendo o Judiciário determinar ao Poder Público obrigações de fazer com vistas à realização de uma política pública de saúde ou ao atendimento de um pleito individual.

De uma forma ou de outra, a atuação do Judiciário mediante o controle repressivo se faz imperiosa, seja através do ajuizamento de uma ação ordinária que materialize um pleito individual ou de uma ação constitucional que geram decisões erga omnes. Cumpre agora proceder ao exame de cada uma delas e de outras medidas.

4.2.2.1 A ação ordinária

A ação ordinária é medida desenvolvida no leito do procedimento comum ordinário, previsto no Código de Processo Civil, e tem como legitimado qualquer indivíduo, que pode figurar como autor ou como réu. Assim, como a ação ordinária pode ser proposta por qualquer pessoa, é um importante mecanismo de tutela do direito à saúde do indivíduo que procura o Judiciário.

Diante da omissão indevida do Estado na execução de políticas públicas, é imperioso o controle judicial, sobretudo frente as demandas de saúde de primeira necessidade, permitindo que um cidadão pleiteie, pela via judicial, um tratamento de saúde, a concessão de internação, o fornecimento de remédios, dentre outros.

Contudo, como os recursos públicos são escassos e as demandas de saúde são inúmeras, deve ser feita a ressalva de que o Judiciário não poderá deferir todas as pretensões que aprecia. Frequente serão os conflitos envolvendo os mesmos interesses de saúde e apenas uma demanda poderá ser acatada. Desta forma, é necessário que toda e qualquer pretensão em juízo seja acompanhada da devida prova dos fatos deduzidos, demonstrando a necessidade da medida para aquele que a pleiteia. Por outro lado, a Administração Pública, como ré, deve apresentar provas cabais de sua impossibilidade financeira, não bastando a mera alegação da mesma para afastar a pretensão do requerente.

4.2.2.2 A tutela antecipada

A tutela antecipada é instituto previsto no art. 273 do Código de Processo Civil, consistente na concessão total ou parcial dos efeitos pretendidos no pedido inicial, em face de prova inequívoca e verossimilhança das alegações dos postulante, além da existência de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu.

A antecipação dos efeitos da tutela é de extrema importância quando o pleito envolve o direito à saúde, principalmente quando se trata de demandas de saúde de primeira necessidade, já que mediante a sua concessão o Judiciário garante de antemão a manutenção da vida humana, até que seja prolatada a decisão final. Aqui, registra-se a mesma necessidade probatória já explicitada supra, sendo que neste caso a prova dos fatos deve ser inequívoca.

Por fim, muitos defendem que a concessão da tutela antecipada só poderá se operar diante da reversibilidade da decisão. Tal constatação até se aplica às demandas de saúde de segunda necessidade, porém, quando se trata da tutela do núcleo essencial do direito à saúde, mesmo tutelas irreversíveis devem ser deferidas, uma vez que sempre deverá haver a prevalência da vida.

4.2.2.3 O mandado de segurança individual e coletivo

O mandado de segurança individual é remédio constitucional consagrado no artigo 5º, LXIX da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e na Lei nº 12.016/09 (BRASIL, 2009), cabível diante de uma lesão ou ameaça de lesão a um direito individual líquido e certo, quando o direito não puder ser amparado por “habeas corpus ou habeas data”. É legitimado para a sua propositura qualquer pessoa física ou jurídica que tenha sofrido violação ilegal ou abusiva de seu direito por parte de uma autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, exigindo-se, para o seu ajuizamento, prova pré-constituída do direito.

Já o mandado de segurança coletivo traz como diferença os legitimados para a sua propositura e o alcance da tutela. Poderá ser impetrado por qualquer partido político com representação no Congresso Nacional ou por uma organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída há pelo menos um ano. Visa a proteção de direitos coletivos e individuais homogêneos do grupo ou categoria representado pelo impetrante, tendo um alcance maior do que o mandado de segurança individual, que restringe os efeitos apenas ao titular da ação.

Não obstante a letra da lei, nos casos em que estão envolvidas demandas de saúde de primeira necessidade, ambos os tipos de Mandado de Segurança podem preterir até mesmo o habeas corpus e o habeas data, já que deve-se priorizar sempre o direito à vida.

O Mandado de Segurança devem ser proposto pelo interessado no prazo decadencial de até 120 (cento e vinte) dias, contados da ciência do ato impugnado. Tendo prioridade de tramitação sobre todos os atos judiciais (inclusive o Habeas Corpus), representa um meio eficiente de tutela do direito à saúde, já que garante a concessão de medidas eficientes e ligeiras, aptas a coibirem omissões estatais violadoras de direitos sociais.

4.2.2.4 A ação civil pública

A ação civil pública é instrumento previsto na Lei nº 7347/85 (BRASIL, 1985) e tem como finalidade a responsabilização de danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. São legitimados ativos o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Administração Direta e Indireta e as associações que estejam constituídas há pelo menos um ano e que inclua entre as suas atribuições um dos objetivos que visa tutelar a lei.

Diante de uma omissão estatal na execução das políticas públicas, permite-se que através da Ação Civil Pública o Judiciário imponha o cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer à Administração Pública. Como a sentença prolatada produzirá efeitos erga omnes, funciona a Ação Civil Pública como um importante instrumento para o alcance da universalidade do direito à saúde, vez que as medidas impostas ao Poder Público atingirão indistintamente uma coletividade indeterminada. Note-se, contudo, que para o deferimento da demanda, haverá a necessidade cabal de se provar a ocorrência do dano.

4.2.2.5 A ação popular

A ação popular é regida pela Lei nº 4717/65 (BRASIL, 1965) e pelo artigo 5º, LXXIII da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e tem guarida quando se pretende anular um ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Pode ser ajuizada por qualquer cidadão, nacional e eleitor em face das pessoas públicas ou privadas, das autoridades que houverem autorizado ou praticado o ato ou que por omissão tenham dado cabo à lesão e contra os beneficiários diretos do ato.

Conforme foi mostrado, quando se está em jogo o direito à saúde de um versus o direito à saúde de muitos, deve o Judiciário pautar-se pelo critério do número de beneficiários na solução do conflito: entre salvaguardar a vida de um ou a vida de muitos, deve-se optar pela segunda solução. Nesta esteira, a ação popular pode ser um eficiente instrumento na tutela do direito à saúde, desde que a concessão de uma medida para determinado cidadão não implique na violação do direito à saúde de várias pessoas.

Exemplo do que se expôs pode ser elucidado na hipótese em que o autor de uma Ação Popular pleiteie a interdição de uma empresa de coleta de lixo, a qual causava extrema poluição na área onde residia. Não se refuta que existe, a exposição ao risco à saúde deste requerente e dos demais moradores das adjacências, porém, a paralisação das atividades da empresa que efetua a coleta de lixo comprometeria a saúde de toda a população beneficiada.

5 CONCLUSÃO

Diante da evolução da interpretação constitucional, trazida pelo pós-positivismo, os direitos fundamentais passaram a ser tidos como direitos de alto valor deôntico, que devem ser observados pelo Estado, independente da condição sócio-político-econômica do cidadão. Dentre esses direitos fundamentais, foi destacado no presente trabalho a saúde como direito essencial e a sua implicância direta com o direito à vida digna.

À luz da teoria dos direitos fundamentais de Alexy (2011), viu-se que o direito à saúde está positivado em uma norma híbrida. Ainda que vazado em uma norma-princípio, seu núcleo essencial, ligado ao mínimo existencial, está esculpido em uma norma-regra. Assim, as chamadas demandas de saúde de segunda necessidade devem ser concretizadas na medida do possível, de acordo com a disponibilidade financeira. Por outro lado, frente as demandas de saúde de primeira necessidade, surge para o Estado o dever de concretizá-las na medida do tudo, já que representam verdadeira expressão de garantia da vida humana.

Porém, o Estado muitas vezes se exime de seu dever constitucional de concretizar o direito à saúde, seja por escolhas alocativas de recursos equivocadas ou edição de políticas públicas insuficientes, seja pela omissão na prestação dos serviços de saúde. Como justificativa para essa omissão, muitas vezes o Poder Público vale-se da alegação da reserva do possível. Diante da omissão estatal e da realidade orçamentária (escassez severa de recursos), a vontade constitucional é sucumbida. Há um dissenso entre previsão e efetivação das normas – o Estado deixa de cumprir um mandamento constitucional.

Contudo, não se pode tolerar que um direito ligado à vida humana deixe de ser assegurado. Além de positivados constitucionalmente, é a garantia feita pelo Estado que dará a esses direitos uma aplicação material, atribuindo eficácia e existência concreta a essas garantias. Desta forma, entra-se na principal questão discutida no presente trabalho: a partir do momento em que há uma violação ao direito fundamental à saúde por parte da Administração, poderá o Judiciário realizar um controle sobre as escolhas administrativas desarrazoadas, impondo, inclusive, obrigações de fazer.

E novamente surge a implicância prática da fixação da natureza jurídica da norma positivadora do direito à saúde na realização do controle judicial. Em se tratando da tutela do núcleo essencial do direito, ligado à proteção da vida humana, o Judiciário tem o poder-dever de determinar as providências necessárias para sua concretização. Nestas hipótese, não socorrerá a alegação da reserva do possível, já que não há margem de discricionariedade para a Administração, que deve atender as demandas de saúde de primeira necessidade.

De outro lado, ultrapassado o núcleo essencial do direito, a Administração guardará maior discricionariedade na alocação de recursos para as demandas de saúde de segunda necessidade. Assim, comprovada a escassez de recursos, o Judiciário não poderá determinar a realização de políticas públicas, pois lhe é vedado imiscuir no mérito administrativo. Sua ingerência ficará limitada às hipóteses em que a escolha do administrador revela-se desde logo ilegal e/ou desarrazoada.

Por fim, fixada a possibilidade do controle judicial sobre os atos administrativos que materializam o direito à saúde, demonstrou-se como o Judiciário exerce o controle sobre o Legislativo e o Executivo na elaboração e execução de políticas públicas de saúde. Demonstrado que a interveniência do Judiciário não fere a separação de poderes, esta se dará mediante um controle preventivo – fiscalizando a elaboração das leis orçamentárias, a criação de políticas públicas e a destinação de recursos para atendê-las – ou um controle repressivo – fiscalizando a execução da lei orçamentária e o atendimento das políticas públicas de saúde, por meio de ações ordinárias, mandados de segurança, ações populares, ações civis públicas, dentre outras.

 

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NOTAS________________________

1 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-Graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Email ana_fazza@hotmail.com