O Direto Educacional no ordenamento jurídico brasileiro
12 de janeiro de 2012
Paulo Nathanael Pereira de Souza Doutor em Educação e titular das Academias Brasileiras de Educação
(Artigo originalmente publicado na edição 123, 01/2011)
I – Relações entre Direito e Educação
Do ponto de vista epistemológico, a Educação e o Direito mantêm relações muito próximas e entretecidas entre si. A começar pelo fato de a Educação preceder o Direito na formação dos seres humanos. Para fazer Justiça, o juiz, os advogados e quantos mais atuem na ritualística dos tribunais devem apresentar conhecimentos especializados em sua bagagem intelectual. E, para isso, existem os cursos de Direito, que funcionam no meio dos sistemas educacionais.
Como se isso não bastasse, no Brasil, até a criação do MEC, ocorrida nos anos 30 do século passado, a Educação e a Justiça conviveram em íntimo conúbio administrativo, cabendo ao Ministério da Justiça cuidar dos assuntos relativos aos ensinos Superior e Médio (o primário, desde o Ato Adicional de 1834 já integrava competência dos Estados). O número de escolas era pequeno, o de alunos e professores, idem. Não havia, então, massa crítica capaz de indicar a necessidade de organizar sistemas de ensino e seu respectivo ministério. Por isso, quando a história registra as reformas de ensino havidas na 1ª República (1891-1930), o que aparece sempre é o nome dos ministros da Justiça que presidiam, como: Rivadávia (1911), Carlos Maximiliano (1915), Rocha Vaz (1925), Francisco Campos (1931).
A expansão havida na rede escolar brasileira, que inclui a criação de sua primeira universidade, no Rio de Janeiro, em 1920, passou a exigir organização que viesse a imprimir racionalidade estrutural e funcional ao setor. Nascia o Ministério da Educação e Saúde em 1931. Da Constituição de 1934, surdiriam as propostas de criação dos sistemas e dos conselhos de educação na forma como hoje os conhecemos, bem como de elaboração de uma Lei de Diretrizes da Educação Nacional (ainda não se falava em Bases).
II – O Direito educacional
O Direito, como se sabe pela palavra dos grandes mestres, “por vincular pretensões de uns com deveres de outros ou por atribuir competência, ou poder, para praticar certos atos e a outros, dever de respeitá-los, caracteriza-se pela bilateralidade das normas e pela sanção do poder público” (GUSMÃO, P.D. Filosofia do Direito. Biblioteca Freitas Bastos, SP, 1966).
Ademais, as normas jurídicas em vigor no país acompanham-se de sanções eficazes, estabelecidas de antemão, aplicáveis pelo Poder Público, mesmo contra a vontade dos que devem sofrê-las. Essa aplicabilidade nasce da coercibilidade, que é poder inerente ao Estado.
Para que um novo ramo do Direito amadureça e se enderece a determinado campo de conflitos de interesse no convívio social, mister se faz que esses conflitos assumam um tal grau de complexidade, que, para julgá-los, não mais bastem os Princípios Gerais nem os Direitos básicos já codificados, a saber: Constitucional, Civil, Penal, Administrativo, Comercial ou Trabalhista. Impõe-se o aparecimento de subespecializações, que, como vergônteas de árvores frondosas, se vão alongando, na forma de galhos, à medida que a realidade imponha soluções consentâneas com a natureza dos pleitos. Isso fica bem claro quando se estuda a trajetória seguida pelo Direito brasileiro, do início para o fim do século XX: de um Direito com ênfase no individual, à moda clássica das proposições dos jurisconsultos romanos, transitou, a partir de 1934, mas, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988, para o sentido hegemonicamente social da norma jurídica, com a maturação de direitos nunca antes imaginados, como: o ecológico, o do consumidor, o da criança e do adolescente, o imobiliário, o agrário e outros – que seria fastidioso arrolar. O Direito, assim como a matéria viva de que se alimenta, no envolver do circunstancialismo histórico, é por sua vez algo vivo e que evolui premido pelas mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais da humanidade. Nessa evolução, trocou-se a viga mestra do Direito privado, que era o domínio do individualismo jurídico, por uma crescente participação do Direito público, dada a natureza social dos novos ramos, nascidos da afluência das massas a benesses da civilização e à participação dos cidadãos na política e na economia. Afinal, hoje não se fala mais no trabalhador como único autor de ações judiciais, e sim nos sindicatos de trabalhadores. As coletividades, como associações e corporações, são as mais qualificadas, atualmente, para a defesa de certos direitos em litígio.
É nesse caldo de cultura que se anunciam as primícias de um direito educacional, que busca reunir as normas e os julgados referentes aos conflitos que ocorrem, a cada dia, com intensidade crescente, entre escola e alunos, professores e donos de escolas, escolas e pais de alunos, governo e escola. Com a repentina expansão havida nos últimos cinquenta anos das redes escolares dos ensinos de todos os tipos de graus e a enorme diversidade, que se instalou nos sistemas federal, estadual, e municipal de educação, cresceu a necessidade de codificar-se esse novo ramo da ciência jurídica.
Em países como os Estados Unidos da América do Norte, em que a base jurídica não está nos códigos, e sim na Common Law, que se consubstancia no julgamento de casos segundo as fontes do Direito anglo-saxônico, e utiliza a precedência como elemento ativo da ministração da justiça, o Direito educacional já se apresenta com visível e definida fisionomia. No caso brasileiro, dada a tradição vigente, é mister codificá-lo para que passe a existir, e essa codificação é sempre consequência de uma expressiva massa crítica, que se alimenta dos conflitos específicos entre os atores do cenário educacional: escola, governo, alunos, funcionários e professores. Ademais, há que existir normas escritas que disciplinem o funcionamento dessas relações setoriais. Tais normas vão do texto constitucional a leis e decretos federais, estaduais e municipais, portarias ministeriais e decisões dos Conselhos de Educação. Embora situado, ainda, num processo in fieri, o Direito educacional, aos poucos, vai ganhando corpo e se impondo no amplo espectro do ordenamento jurídico brasileiro.
Na falta até agora de sistema ordenado, que revista esse novo ramo do Direito em que o público e o privado se entretecem continuamente, o que se vê é o avolumar-se de uma práxis toda feita de casos, que correm nas várias esferas do Judiciário. Dois são os principais vetores desse Direito, já perceptível sem embargo de sua aparente inconsistência: no primeiro deles, correm ações de alunos e professores contra a escola, e vice-versa; no segundo, vão do Poder Público para a escola e as comunidades intraescolares, e vice-versa. Em ambos os casos, predominam regras ora do Direito privado, ora do Direito público. Embora a tramitação dessas ações pelos tribunais se revista de natureza pontual, a soma dos julgados de um lado, como fonte jurisprudencial, e os textos legais, de outro, como matéria-prima de codificação, a Constituição, as leis, os decretos e as portarias constituem-se nos grandes insumos que, um dia, consolidarão como ramo específico, no campo do Direito administrativo, o Direito educacional. Muitos são os especialistas que se vêm dedicando à árdua tarefa de dar maioridade ao Direito educacional no Brasil.
III – Direito educacional e LDB
A nova LDB, uma lei que tomou o nº 9.394/96, contém várias matérias inovadoras que visam, em última análise, abrir as portas da modernidade às escolas brasileiras. E se há sistema que clama por modernidade é o da educação, que a vida toda ensinou os conhecimentos de ontem, como se não existissem os desafios de hoje e do amanhã! Em sintonia com as forças e os princípios que, hoje, regem o mundo e que podem ser sumariados em dois: a) globalização da economia e desregulamentação do trabalho; b) fortalecimento da democracia e necessidade de formar cidadãos participantes do processo político, a escola terá que responder por esses novos apelos e atender crianças e jovens num projeto qualificado de ensino em que a eficácia passe a ser a lei maior.
A LDB se assenta na teorização de seus temas em três apoios fundamentais. São eles: a flexibilidade corresponde ao “desengessamento” do sistema, que funcionou desde muitos anos, para não dizer, sempre, debaixo da regulamentação e do controle de órgãos externos, como ministério, conselhos e secretarias de educação. Para quebrar essa servidão sem fim, a nova lei abriga permissibilidades até há pouco eram inimagináveis, como:
a) Aproveitamento do saber extraescolar no ensino formal, tanto nos conhecimentos gerais, como nos técnicos, por meio da certificação;
b) Correspondência estreita entre o ensino teórico e sua aplicação prática;
c) Visão interdisciplinar do conhecimento, o que fará desaparecerem os currículos composto de matérias muito cissiparizadas (inspiração positivista) para dar lugar à globalidade, ou seja, à ótica gestáltica do saber integrado;
d) Matrículas de candidatos ao Ensino Superior sem concurso vestibular obrigatório, como é o caso dos cursos sequenciais e dos alunos não regulares nos demais cursos;
e) Todo poder, na universidade, ao colegiado, Conselho Universitário, Conselho de Ensino e Pesquisa para a prática dessa riqueza de flexibilizações;
f) Possibilidade da eliminação do departamento como peça essencial da estrutura do Ensino Superior e sua substituição por mecanismos mais ágeis e menos burocratizados.
Quanto à autonomia de escolas e de educadores, no que concerne a suas competências, também se esmerou a lei, que acentuou a abertura para a maior liberdade, nos seguintes aspectos:
a) O reconhecimento da competência dos sistemas de ensino (federal, estadual, do DF e municipal) em organizar-se, segundo seus recursos e meios, podendo manter ou não a figura dos conselhos de educação;
b) A atribuição às universidades, sejam públicas ou privadas, do poder de formularem elas próprias os processos de recrutamento de alunos para seus cursos, bem como de criarem e desativarem cursos, de aumentarem e diminuírem vagas, de reformular os currículos dos cursos e de registrarem os diplomas que expedem tudo isso e muito mais, sem necessitar de pedir aos sábios do Olimpo o seu prévio consentimento; (1)
c) O preceito segundo o qual cabe ao professor elaborar seu projeto de ação pedagógica no contexto do projeto maior da instituição e por ele responsabilizar-se ao longo do curso;
d) Admissão da possibilidade de certas linhas de autonomia serem praticadas por instituições não universitárias, desde que apresentem padrões de qualidade de indiscutível consistência.
NOTAS
1 Os recentes acontecimentos ligados ao Enem, com essa absurda concentração de milhões de alunos, contrariam esse artigo da LDB.
Quanto à avaliação, há que ressaltar sua introdução em todos os cursos superiores do país, bem como aos ensinos Fundamental e Médio. A partir dessa LDB, não será apenas o aluno o objeto da avaliação, mas também os prédios e seus equipamentos, os professores, os funcionários e a instituição como um todo.
É claro que uma lei enquanto texto não consegue mudar muita coisa na realidade a que se refere. Para que as mudanças efetivamente se concretizem, mister se faz a adesão dos agentes ligados à organização do setor. No caso da Educação, professores e especialistas de ensino. A experiência mostra que, quando essas coletividades não aderem às reformas, estas perecem.
Essas mudanças em profundidade trazidas pela Lei nº 9.394/96 e nascidas da mente libertária de Darcy Ribeiro encontrarão resistências e obstáculos em sua aplicação. Sempre haverá quem continue a achar que deva segurar e amarrar o procedimento administrativo e acadêmico dos sistemas de ensino. As intenções podem ser boas, mas os resultados serão, possivelmente, desastrosos. Haja vista a polêmica nacional, que ora se alastra no seio dos sistemas sobre o sentido exato de leis, decretos e portarias ministeriais destinados a regulamentar a aplicação da LDB. Em muitos casos, se ignora até mesmo a Federação.
Tudo isso é matéria que certamente vai acabar nos tribunais e constituir um novo universo de preocupações na seara do Direito educacional. Quiçá fosse oportuno, nesta altura de nossas considerações, sugerir às faculdades de Direito que abram, em nível de pós-graduação, de preferência lato sensu, cursos de Direito educacional, destinados a magistrados e advogados, eis que tende a crescer a onda das causas relativas e essa nova fonte de conflitos de interesses.
Porque tudo indica que o Direito educacional se alonga, se amplia e se consolida, podendo, em prazo não estimável, mas por certo mais cedo do que possa parecer, vir a integrar o ordenamento jurídico brasileiro como o mais recente ramo da frondejante árvore dos múltiplos direitos entre nós já codificados.