Vargas aparece no cenário do Brasil em um momento de rebelião geral no mundo. Vinham os laboristas de terminar a sua primeira experiência, na Inglaterra, fazia pouco mais de um qüinqüênio.
Nada será menos Getúlio Vargas do que ser exclusivamente um só Getúlio. Falando de Getúlio Vargas é indispensável tanto sair do Brasil como mergulhar no Brasil.
Não era Vargas somente a América Latina e a Rússia, Minas e o Rio Grande. Seu tacto, a sua finura, as suas manhas, a sua solércia de gato, a sua sedução de demiurgo, o identificaram muito com o Rei de Itaca.
Fixe-se bem este traço da índole de Vargas: ele era um emotivo, um sentimental, sujeito a cóleras súbitas, como nós outros. Somente sabia dominar-se. Não explodia, porque se refreava, calando.
Um provinciano da fronteira gaúcho-argentina, surge disposto a quebrar o tipo clássico dos presidentes mineiros e paulistas. Recusava-se a ser liberal e tampouco democrático. Vinha decidido a estrangular os reacionários da liberdade. Tinha o espírito malicioso de um Voltarie e agia em política com o sadismo aristocrático de César Borgia. O golpe político de 37 é um fragmento do “Belíssimo Engano”, de Sinagaglia. Afetava maneira de viver, de sentir, de reagir, inéditas no panorama político do país. Misto das duas paisagens, a quixotesca e a do escudeiro, soberbo e humilde, anjo e demônio, Vargas mostra desde logo que tínhamos de emigrar do ameno clima paulista e mineiro que até então se respirava no Catete. Solitário, introvertido, impenetrável, vivendo dentro de si mesmo, suas duas instâncias, a primeira e a última, era Deus.
Vargas deverá ter sido o ser mais estranho e sobre-humano, que teve até hoje a galeria dos homens de governo latino-americana. Com ele nos poderemos permitir a muitas combinações. Armando Sales já preso, no Rio, em casa, em 37, sustentava na noite do 18 de Brumário Getuliano, perante mim, uma opinião que ele nunca mais negaria: “Vargas é um homem inteligente”. O vencido reconhecia no verdugo da sua casa a pujança intelectual, que dele dimanava. Vargas tinha de Pedro II e de Floriano; de Sarmiento e de Facundo; de Mauá e das forças telúricas do índio ciumento, que olha de través o branco civilizado, como o usurpador da sua roça. É tolerante e intolerante; gosta dos ricos e dos pobres, e, fazendo política socialista, não tem constrangimento de freqüentar os ricos e de sentar-se à mesa deles, a fim de melhor experimentar a técnica de demoli-los. Enxundioso e plácido, enganava o que lhe tomava a gordura como indicativo do bonacheirão. Remy de Gourmont enxergava, no gordo, o bondoso, o fácil, o “coulant”. Só na aparência, Vargas podia ser isto. Espicaçado, o gigante cavalheiresco do pampa arremetia com fúria de javali.
Desastre fora tentar definir naturezas da opulência espiritual de Vargas, num conceito qualquer, por mais largo que fosse. A nossa geração e quiçá a futura se haverão apenas ao mister de assistir à decantação dos atos e dos gestos do herói trágico, com as suas ações santas, de apóstolo social, e as faculdades de demônio político do seu tempo.
O que há de sedutor em Vargas é precisamente o bárbaro, traduzindo numa linha de civilizado conservador. Aí é que está um dos segredos da durabilidade de Vargas. Que aparência de ordem interior e exterior não dava ele, mesmo quando cometia as maiores enormidades! Impõem-nos trata-lo como um bárbaro, o culto da inteligência, o respeito da razão e a fuga ao paradoxo. Ele não é anjo, nem fera, racional ou irracional, mau nem bom, tolerante nem intolerante.
A peculiaridade de Vargas é que não havia um só Vargas. Há variados, específicos e numerosos Vargas e cada qual com sua psicologia, a sua consciência, a sua face, as suas indiosincrasias, o seu estilo, vivendo numa vida à parte e com a intuição perfeita das suas relações próprias com os homens e as coisas.
Quando se trata de Vargas o que será preciso identificar nele, antes de tudo, será o político. O político cujo conteúdo é o caudilho – caudilho no sentido espanhol da palavra, na acepção em que a em que a empregam os espanhóis com o General Franco.
A política, em Vargas, era uma plenitude, a sublimação da sua natureza. Poucos sabiam que aquele temperamento tímido, reservado, sensitivo, não gostava de agir ostensivamente. Era um infernizado da ação, um dinâmico inesgotável, mas tudo isso por debaixo do lençol submarino. Agia pessoalmente o mínimo. Gostava de se exprimir e de se interessar, através dos outros. Adorava o próprio silêncio, que era suntuoso como um fundo da água de coral marinho.
Desde que enceta a luta contra os políticos (mas com eles convivendo sempre e adorando esta convivência, porque o toque profundo da sua alma era a política) Vargas entra a falar como se subisse ao “último rochedo druídico”. E o que acontecia era que druida era um misto de sacerdote e de feiticeiro. O sacerdote exorcizava os demônios, responsáveis pelas assombrações populares, pelas tempestades coletivas, pelas calamidades sociais, dando o sinal de combate aos gênios do mal, devorado ele mesmo pelo voto da castidade cívica, que fizera no serviço ao povo. Até porque Vargas (era visível nas suas ações) amava o pecado, adorava o maravilhoso do pecado, e punha no Olimpo, que criara, com os seus deuses da salvação do povo, os numes tutelares das massas, igualmente o pecador, isto é, o reacionário.
Embora servindo-se muito e a todo tempo dos políticos, Vargas não acredita neles, não faz fé nessa gente. Sua massa de manobra para as construções políticas que arquiteta, são povo e classes Armadas. Nelas se refugiará, desde 1930, para preparar e desencadear a revolução. Governa até antes da revolução de 9 de julho, com as forças militares, sobretudo as da linha. Depois de 1935, se lança novamente nos braços, ou melhor, nos sabres e nas espadas delas, para tirar o seu período de governo; e, quando o quadriênio está por terminar, aparece com o figurino do Estado Novo, que será o Estado Forte. Desse, permanecerá prisioneiro até morrer, cativo da sua glória até o dia em que se abateu com as próprias mãos.
Morre vestido de uma “fantasia” de democrata liberal. A “intelligentia” de Vargas não compreendia aquela “degrisé”, a qual não passava de uma ponta de lança psicológica, orientada no sentido da “sua” verdade histórica.
A alma contraditória e atormentada de Vargas se comprazia na quantidade das tendências que o dilaceravam intimamente, dando-lhes modos de pensar e de sentir complexos. Ele é, por exemplo, um gaúcho, um gaúcho tradicional, enquadrado perfeitamente nas suas fronteiras políticas e morais, e distante, como em muita gente do nosso interior, da maioria dos países atlânticos.
Agora, a outra face da medalha: este rude capitão da indústria das revoluções, este fabricante ou condensador de crises políticas, este perito em situações subversivas, era um dos engenhos mais sutis e ágeis que conhecemos. Dentro dele havia o limite das suas naturezas que se chocavam: a do criador de etapas revolucionárias, em grande estilo, do chefe das duas jornadas de 30 e 37; e a finura e o espírito fugidio do florentino, que jogava com a lâmina abotoada, escondendo o jogo ao adversário, até a hora de desfechar o golpe definitivo. Nenhum outro homem exerceu no Brasil a arte da política com a destreza, os filtros, o estilo sulfuroso, os sortilégios e o êxito de Getúlio Vargas. Com que simplicidade Ática não sabia ele agir e redigir.
Era o escritor em Vargas mais outro contraste com a agressividade da sua razão de Estado, da sua estrutura política, dos seus dogmas radicais, que agitava, para não vive-los, muitas vezes, mas que não deixavam de ser dogmas, nas suas arengas de “meneur” de massas. Como eram medidos, claros, harmoniosos os seus dons de expressão! Tinha uma prosa castigada. Corrigia o que ditava ou o que redigia, mais de uma vez. De sangue ibérico, fugia, entretanto a toda forma de gongorismo, de linguagem derramada. Era preciso, elegante, e, sobretudo, proporcionado. Seu estilo de escritor se apresentava o oposto daquele dos homens públicos gaúchos da sua geração. Era usuário de adjetivos. Sabia podar a crespa vegetação da nossa oratória. A despeito de ser caudilho de revoluções, seus manifestos eram vazados no metal de uma linha de compostura, que fazia como que o contrapeso do radicalismo, das idéias subversivas e do sanhudo revolucionário.
Foi o último senhor de escravos deste país. Tinha uma Casa-Grande e um pátio, onde juntava os seus “pretos”, os pretos de estimação, da sua Irmandade do Rosário e os quais também não o dispensavam. Poderiam os pretos zangar-se com ele, mas ele nunca despediu, para sempre, um só deles.
Góis Monteiro, Osvaldo aranha, João Neves, Juraci Magalhães, Alexandre Marcondes, Benedito Valadares, Luzardo, Gustavo Capanema, e, por que me excluir? Eu também, todos fazíamos parte da sua família. Quando um se ia embora, amuado, batendo a porta, ele não desesperava da volta.
Não era possível a um “negro” dele, viver longe do seu aconchego, por muito tempo. Ralava-se de saudades dos seus pretos e os pretos dele. O General Góis, o Sr. Osvaldo Aranha choravam, com os olhos enxutos, à Valadares, a saudade da sua companhia. Depois da revolução comunista, em 36, uma tarde chamou-me. Falou do nosso confrade João Neves e de Batista Luzardo, com uma tal ternura que eu senti que o que ele queria comigo era fazer a ponte que os deveria trazer à casa, onde os dois faziam falta. E ambos os filhos pródigos volveram.
Getúlio Vargas não era a natureza da calma, da pa\, da tranqüilidade, como aparentava sua doce fisionomia. Por dentro, esta é que é a verdade, o caldeiro lhe fervia.
O historiador do futuro terá de reconhecer que os dois esportes favoritos de Getúlio Vargas eram as conspirações e as revoluções. Nasceu e viveu para elabora-las, e, quando elas não vinham espontâneas, faziam-se de regadas, provocava-as, por ação ou omissão.
Pode-se dizer que, desde 1930, Vargas adere à democracia autoritária, e foi por isso que não quis mais saber da democracia liberal; e se a ela irá volver em 50, só Deus sabe com que constrangimento. Não deu uma arranhadura no regime. Mas, como guardava distância! Dois inimigos íntimos, não se podem mais respeitar.
Foi o primeiro chefe de Estado, aqui a não cruzar os braços diante da injustiça social, a lhe oferecer combate com franqueza e valor. De 1930 a 1945, seu corpo traz a marca do que sente o indelével daquela injustiça. Dar-lhe combate será a sua obsessão; extirpa-la da face do Brasil social, a sua luta.
O sucesso prodigioso de Vargas é que ele veio para o poder possuído dos filtros do populismo, ou fosse, de paroxismo da exaltação das massas. Ele era povo e foi povo, desde que em 1927 foi para o governo de sua terra até o dia 24 de agosto de 1954.
Falando à J. Nabuco, de Vargas se poderá dizer que foi o espongiário magnífico deste oceano humano que é o Brasil. Ele era o guasca, o campeiro, o caipira, o tabaréu, o matuto, o jeca, o sertanejo, o farroupilha o favelado, o charrua, o tamoio o guarani, o capixaba, o caeté, o tupinambá, o tabajara, o tupiniquim o timbira, o marroeiro, o homem branco, o negro, o amarelo, nas infinitas nuanças de todas essas cores; a música dos nossos rios; o barulho das nossas cachoeiras, a alegria das nossas madrugadas, a graça de um mês de maio nas Campinas verdes do Rio Grande, o sorriso das nossas crianças, o uivar do minuano na cochila, o coruscar das estrelas neste céu tropical. Que deslumbrante aquarela do Brasil! Que força elementar da vida! Não era um fragmento da nossa natureza, porque era toda ela!
Duas vezes ao que me disse, Vargas deu o consentimento íntimo à idéia da morte. E ambas no campo da luta civil.
A idéia de morte traduz invariavelmente um estado emocional de lata responsabilidade e de beatitude da espiritualização. Isto mostra quanto o pólo do sofrimento tinha uma elevada representação na natureza desta criatura. Ele era a encarnação do “homem paciente”, como chamavam os gregos, do homem do qual era Ulisses o arquétipo, ou seja, a natureza saturada do heroísmo trágico. Vargas alinhava a bravura à serenidade, para encarar, face a face, o enigma da morte.
O fino animal sensitivo, que era Vargas, tem uma medida de não-fixação nos estilos das velhas rotinas nacionais, dos carros de boi do direito público indígena, que só um processo de renovação da nossa cultura poderia abarcá-lo.
Velho jardineiro, podador de galhos da árvore da liberdade, Getúlio Vargas tomba varado por esta suprema contradição: mandando aos seus compatriotas a mensagem do homem livre. Em seu calvário luta pela liberdade da iniciativa do presente, e, como um herói helênico, morre para renascer.