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O estatuto da ética

11 de julho de 2012

Maria Berenice Dias Vice-Presidente Nacional do IBDFAM/ Desembargadora aposentada do TJRS

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A casa das leis deve ter a cara do povo.

Por isso a Câmara Federal precisa estar atenta na defesa dos cidadãos. De todos eles. Já é por demais sabido que não há afronta maior ao princípio da igualdade do que tratar igualmente os desiguais. Assim, muitas vezes é necessário discriminar para proteger. Afinal, é para isso que servem as leis. Criar mecanismos que deem efetividade aos comandos constitucionais. Dentre eles, o mais significativo é assegurar o respeito à dignidade da pessoa.

Não foi outra a preocupação de um punhado de juristas que durante mais de um ano se dedicou à elaboração de uma legislação que atendesse à realidade da sociedade dos dias de hoje. Além de atentar à diversidade dos vínculos afetivos, era indispensável disponibilizar mecanismos processuais para dar agilidade ao mais urgente ramo do Direito, pois é o que tem maior significado e diz com a vida de todas as pessoas. Daí o Estatuto das Famílias: um microssistema que reescreve todo o Livro do Direito de Família do Código Civil e traz os procedimentos para dar-lhe mais efetividade. Aliás, não há forma mais moderna de legislar. Uma única lei assegura o direito e sua realização.

O Projeto de Lei nº 674 tramitou na Câmara Federal desde 2007. Sofreu inúmeras emendas na Comissão de Seguridade Social e Família e foi aprovado por unanimidade. Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, os debates foram exaustivos e, inclusive, foi realizada uma audiência pública. Com novas alterações e a incorporação de vários projetos, no dia 15 de dezembro, aconteceu sua aprovação, em caráter conclusivo, com somente dois votos contrários.

Apesar dos cortes e recortes, a essência do Estatuto se manteve. O tema mais polêmico – a regulamentação das uniões homoafetivas como entidade familiar – infelizmente foi alijado do Projeto. Mas as novidades são inúmeras. Em atendimento à Emenda Constitucional 66, foi eliminada a separação. Restaram excluídos o regime de participação final nos aquestos (que não mereceu aceitação) e o injustificável regime da separação obrigatória de bens. Foi além. Tornou possível a alteração do regime de bens por escritura pública, mas sem efeito retroativo. A união estável passa a constituir um novo estado civil. São reconhecidas as entidades parentais, ou seja, grupo de irmãos que não têm pais. A socioafetividade gera relação de parentesco e a presunção de paternidade ocorre quando os genitores conviviam à época da concepção. Quem dispõe da posse de estado de filho pode investigar sua ascendência genética, o que não gera relação de parentesco. O abuso sexual, a violência física, bem como os abandonos material, moral ou afetivo podem ensejar a perda do que passou a se chamar, de modo mais adequado, de autoridade parental. Tal não desonera o genitor do encargo alimentar, mas impede que seja reconhecido como herdeiro do filho. É admitido o casamento do relativamente capaz, contanto que haja o consentimento dos pais e tenha ele condições de consentir e manifestar sua vontade.

Mas, certamente, as grandes novidades estão nas normas processuais. Pela vez primeira, as demandas de família têm princípios próprios e ferramentas processuais que garantem sua efetividade. Assim, todos os processos têm tramitação prioritária, sendo possível a cumulação de medidas cautelares e a concessão de antecipação de tutela. Haverá sempre conciliação prévia que pode ser conduzida por juiz de paz ou conciliador judicial. O Ministério Público intervém somente nos processos em que há interesses dos menores de idade ou incapazes. O divórcio pode ser extrajudicial quando as questões relativas aos filhos menores ou incapazes já estiverem acertadas judicialmente. Na ação de investigação de paternidade, quando o autor requer o benefício da assistência judiciária, cabe ao réu proceder ao pagamento do exame genético, se não gozar do mesmo benefício.

No entanto, foi no âmbito do direito alimentar que as mudanças foram mais significativas. Os alimentos são devidos a partir de sua fixação e, ao ser citado, o réu é cientificado da automática incidência de multa de 10% sempre que incorrer em mora superior a 15 dias. O encargo alimentar ficou limitado à idade de 24 anos. O genitor não guardião pode exigir a comprovação da adequada aplicação dos alimentos pagos. A falta de pagamento dos alimentos enseja a aplicação da pena de prisão a ser cumprida no regime semiaberto. Em caso de novo aprisionamento, o regime será o fechado. Além de a dívida ser encaminhada a protesto e às instituições públicas e privadas de proteção ao crédito, foi criado o Cadastro de Proteção ao Credor de Alimentos, onde será inserido o nome do devedor de alimentos.

Essas são algumas das mudanças que o novo Estatuto traz. Mas nenhum desses avanços vem sendo alvo da atenção da mídia. Em desesperada tentativa para que não ocorra sua aprovação pelo Senado, as bancadas conservadoras, fundamentalistas e religiosas passaram a afirmar que o Estatuto chancela a bigamia e assegura à amante direito a alimentos e partilha de bens. O movimento bem mostra a postura revanchista de quem deseja mesmo é voltar ao modelo da família matrimonializada e acabar até mesmo com o divórcio. É tão severa a influência desse segmento, que detém inclusive a propriedade de boa parte dos meios de comunicação, que há que se tomar cuidado. Não é de duvidar que seja aprovada lei que determine o uso de burcas e institua a morte por apedrejamento. Tudo por conta de um moralismo retrógrado.

O que o Projeto já aprovado reconhece é que as pessoas que não estão separadas de fato não possam manter união estável. Mas caso tal ocorra – o que infelizmente ainda acontece – ou seja, quando um homem, além da família constituída pelo casamento, mantém outra mulher por muitos anos, impedindo que ela estude ou trabalhe, é de todo injustificável que, quando da separação, ele não lhe preste alimentos. Resguardada a meação da esposa, mister que os bens que a ele pertencem sejam partilhados com quem se dedicou uma vida ao companheiro e ajudou a amealhá-los. Os exemplos são muitos. De todo descabido que quem manteve uma união por mais de 30 anos, tendo com a parceira um punhado de filhos, reste sem nada no final da vida. Aliás, essa é a solução que vem sendo reconhecida pela justiça, tanto estadual como federal, que determina, inclusive, a divisão da pensão por morte.

Não prever tal responsabilidade é ser conivente com quem descumpre os deveres do casamento e mantém outra entidade familiar. A lei não pode chancelar posturas que afrontem os mais elementares deveres éticos. Aliás, este foi o compromisso do Instituto Brasileiro de Direito de Família ao elaborar o Estatuto.

É chegada a hora de o Brasil adotar uma legislação que imponha obrigações a quem assume compromissos afetivos. É o que diz a antiga frase de Saint-Exupéry: “Você é responsável por quem cativa!”