Edição 292
O exame criminológico e as súmulas 26 do STF e 439 do STJ
29 de novembro de 2024
José Vidal de Freitas Filho Desembargador no Tribunal de Justiça do Piauí
A Lei no 7.210/84 – Lei de Execução Penal, estabelece em seu artigo 8o que “o condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução. Parágrafo único. Ao exame de que trata este artigo poderá ser submetido o condenado ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semi-aberto”.
Ressalte-se que o dispositivo transcrito acima não sofreu alterações com a publicação das Leis no 13.964/2019 e 14.843/2024.
Ora, na vigência do disposto no caput do artigo 8o, acima referido, o Superior Tribunal de Justiça, em 2010, editou a Súmula 439, do seguinte teor: “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada.”
Percebe-se, pela leitura da súmula transcrita, que o magistrado deve motivar a necessidade do exame criminológico.
Tal entendimento também se encontra presente no Supremo Tribunal Federal, que editou a Súmula Vinculante no 26: “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.
Ou seja, a realização do exame criminológico, em caso de progressão para o regime semiaberto, e, opcionalmente, para o regime aberto, é perfeitamente possível, desde que o magistrado fundamente sua necessidade em dados concretos.
Nesse sentido podemos transcrever os seguintes julgados:
“Execução penal. Habeas Corpus substitutivo de recurso próprio. Não cabimento. Progressão de regime concedida na origem. Bom comportamento. Último fato desabonador em 2007. Progressão cassada mediante argumentação abstrata e genérica. Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício. I – A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, sedimentou orientação no sentido de não admitir habeas corpus em substituição ao recurso adequado, situação que implica o não conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício, em homenagem ao princípio da ampla defesa. II – Com as inovações da Lei n. 10.792/03, que alterou o art. 112 da Lei no 7.210/84 (LEP), afastou-se a exigência do exame criminológico para fins de progressão de regime. Este Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de que o Magistrado de 1o Grau, ou o eg. Tribunal a quo, diante das circunstâncias do caso concreto, podem determinar a realização da referida prova técnica para a formação de seu convencimento, desde que essa decisão seja adequadamente motivada. III – Entendimento consolidado na Súmula n. 439/STJ – “Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada” – e na Súmula Vinculante n. 26 – “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2o da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”. IV – No caso concreto, relatado pelo d. Juízo da Execução o bom comportamento carcerário, não se pode cassar a progressão de regime antes concedida sob argumentação abstrata, em especial, pautada em fato desabonador do ano de 2007, sem registro de faltas graves. V – No mais, o eg. Tribunal de origem, ao cassar a progressão de regime, fundamentou sua decisão unicamente na gravidade abstrata dos crimes que originaram a execução penal e na longa pena a cumprir, sem apontar elementos concretos dos autos que pudessem justificar, de forma idônea, o afastamento da benesse. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício. (HC n. 599.674/SP, Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 22/9/2020) (grifou-se)” e;
“Agravo Regimental no Habeas Corpus. Execução penal. Progressão de regime prisional. Realização de exame criminológico para aferição do requisito Subjetivo. Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça. Decisão devidamente fundamentada. Elementos concretos. Histórico penal. 1. A nova redação dada ao art. 112 da Lei n. 7.210/1984 pela Lei n. 10.792/2003 suprimiu a realização de exame criminológico como expediente obrigatório para aferição do requisito subjetivo para fins de progressão de regime, mantendo-se apenas como requisitos legais o cumprimento de determinada fração da pena aplicada e o bom comportamento carcerário, a ser comprovado pelo diretor do estabelecimento. 2. O magistrado de primeiro grau, ou mesmo o Tribunal, diante das circunstâncias do caso concreto, pode determinar a realização de exame criminológico para a comprovação do mérito do apenado para fins de progressão de regime prisional. 3. De acordo com a Súmula n. 439/STJ, ‘admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada’. 4. No caso, o Tribunal de origem logrou fundamentar a necessidade do exame criminológico, invocando elementos concretos dos autos para afastar a decisão do Magistrado, levando em conta, sobretudo, a conduta carcerária conturbada do paciente, que ostenta três fugas, tendo permanecido foragido por mais de sete meses, não havendo, portanto, constrangimento ilegal na exigência de realização do mencionado exame. 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no HC 451.152/MS, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 18/09/2018, DJe25/09/2018.”
Ora, com a edição da Lei no 14.843, de 11.04.2024, foi alterado o artigo 112, §1o, da Lei no 7.210, que passou a estabelecer o seguinte: ”§1o Em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão”.
Com a entrada em vigor do referido dispositivo legal, iniciou-se grande controvérsia jurídica sobre sua aplicação em todos os casos de progressão de regime, basicamente fundada em duas questões: a efetividade de um exame para aferir a possibilidade do apenado voltar a praticar crimes e, as dificuldades de implementação da exigência de exame em todos os estabelecimentos prisionais que confinam os cerca de 650 mil presos do Brasil, o que, certamente, implicará o aumento da demora nas decisões judiciais sobre esse benefício prisional.
Sem entrar no mérito dessas questões, embora deva registrar minhas dúvidas sobre a validade do exame e seus eventuais poderes premonitórios e a preocupação com a demora na efetivação das progressões de regime, o Judiciário não tem se omitido na análise do problema, havendo a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidido, recentemente, em 20.08.2024, na apreciação do Recurso em Habeas Corpus no 200670 – GO, que a exigência de exame criminológico para a progressão de regime penal caracteriza novatio legis in pejus (lei nova mais severa que a anterior) e, portanto, não se aplica aos presos condenados antes da publicação da Lei no 14.843/2024.
Ocorre, porém, que, repito, não houve alteração no artigo 8o da LEP. Portanto, entendo mantidos o disposto na Súmula Vinculante 26, do STF e na Súmula 439 do STJ, ambas a exigir que a decisão sobre a necessidade de realização do exame criminológico seja devidamente fundamentada.
Com esse entendimento e com a devida vênia a quem pense o contrário, tenho, na 2a Câmara Especializada Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, de que sou membro, decidido e apreciado pedidos de habeas corpus para considerar que o fumus boni iuris encontra-se presente, haja vista o juízo apontado como coator não ter apontado as peculiaridades concretas que o levaram a exigir o exame criminológico para a mencionada progressão, existindo Relatório Carcerário nos autos apontando que o paciente possui “boa conduta carcerária”.
Venho entendendo, outrossim, que o periculum in mora também é notório, demonstrada a probabilidade do direito à progressão para o regime semiaberto, especialmente em razão do próprio juízo coator informar que o paciente já atingiu o requisito objetivo para progressão de regime e ainda se acha em regime mais gravoso, em razão da ausência de exame criminológico.
Destarte, tendo em vista que a progressão de regime faz parte das etapas de individualização da pena e não pode ser negada ao preso que a ela faz jus, sob pena de coação ilegal, pode e deve ser corrigida através do recurso de habeas corpus.
Nesse sentido, podemos colacionar o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: “Agravo regimental no habeas corpus. 2. Penal e Processo Penal. 3. Realização de exame criminológico. Violação à Súmula Vinculante 26. Decisão que concedeu a ordem para afastar a necessidade da realização do exame e, consequentemente, determinar a colocação do paciente em regime condizente com o quantum da pena já cumprida. 4. Argumentos incapazes de modificar a decisão agravada. 5. Agravo improvido. (HC 189645 AgR, Relator(a): Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 15-12-2020, Processo Eletrônico Dje-295 Divulg 17-12-2020 Public 18-12-2020).”