O Habeas Corpus e o STJ: Comentários – Parte 1
21 de julho de 2011
Arnaldo Esteves Lima Vice-presidente do TRF-2ª Região
(Artigo orginalmente publicado na edição 107, 06/2009)
Atendendo a honroso convite da revista “Justiça & Cidadania”, farei breves observações sobre o tema, preponderantemente práticas.
A importância da ação de pedir habeas corpus recomenda, no entanto, se rememore o seu histórico em nosso Direito. Para isso, pedimos licença ao reproduzir fidedigna síntese traçada pelo Prof. João Gualberto Garcez Ramos, da Faculdade de Direito da UFPR, em artigo publicado nas págs. 51/59 do vol. 31 da Revista daquela Faculdade, sob o título: “Habeas corpus: Histórico e Perfil no Ordenamento Jurídico Brasileiro”, a saber:
A Constituição brasileira de 25 de março de 1824 não se referia ao habeas corpus. Apenas determinava que ninguém haveria de ser preso sem culpa formada, exceto no caso de flagrante; que após prisão em flagrante haveria de dar-se ao preso nota de culpa no prazo de 24 horas desde a entrada no cárcere; que, mesmo no caso de prisão com culpa formada, a prisão poderia ser substituída por fiança idônea, nos casos autorizados por lei.
O primeiro diploma que, no Brasil, afirmou o habeas corpus foi a Lei de 29 de novembro de 1832, que promulgou o “Código de Processo Criminal de Primeira Instância”.
Tratou do assunto em dezesseis artigos e instituiu o writ no Brasil — no seu art. 340 — que dispunha:
Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor.
Percebam que o habeas corpus nasceu vocacionado à proteção à liberdade de locomoção violada por uma prisão ou por um constrangimento ilegal.
Muitos anos após a entrada em vigor desse diploma legal, a Constituição brasileira de 24 de fevereiro de 1891 — intencionalmente ou não — viria trazer uma modificação de suma importância à utilização prática do habeas corpus.
Isso porque o § 22 do art. 72 da dita Constituição incluiu o habeas corpus como um dos direitos e garantias individuais e tratou-o da seguinte forma:
Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer, violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder.
Conforme se nota, esse dispositivo, por motivos desconhecidos, não limitava — ou, por outra, não era claro em limitar — o habeas corpus às violações da liberdade ambulatória.
Esse fato não passou despercebido ao gênio jurídico de RUI BARBOSA, que, já em quinze de agosto de 1893, em editorial publicado no “Jornal do Brasil”, escreveu a respeito do tema, sustentando o cabimento do habeas corpus para, por exemplo, assegurar a publicação de uma gazeta.
O Brasil passava, então, por tempos bicudos; a República — sob o comando de militares de ferro — consolidava-se política e territorialmente. Havia severa repressão policial, principalmente contra os que se opunham à nova ordem.Um dos primeiros habeas corpus utilizados para proteger direito que não o de locomoção foi impetrado, no segundo semestre de 1896, por JOÃO MENDES DE ALMEIDA (pai do processualista João Mendes de Almeida Júnior) em favor dos integrantes do “Centro Monarquista de São Paulo” e do “Centro dos Estudantes Monarquistas de São Paulo”, proibidos pela polícia de realizarem suas reuniões — então altamente subversivas, já que a República buscava firmar-se contra os que consideravam melhores os tempos dos imperadores. Esse writ não foi conhecido ao argumento de que o habeas corpus se limitava à proteção do direito à liberdade de locomoção e não se aplicava ao direito de reunião.
Posteriormente, por obra do mesmo Supremo Tribunal Federal, que relutou em conhecer os pedidos de habeas corpus fundados em direitos outros, de RUI BARBOSA, e dos mais diversos e hoje desconhecidos advogados de antanho, nasceu e durou mais de vinte anos a chamada “Doutrina Brasileira do habeas corpus”, uma solução de compromisso entre os que advogavam uma limitação do habeas corpus à proteção da liberdade ambulatória e os que entendiam ser ele cabível para proteger todos os direitos individuais.
Essa doutrina consistiu em ampliar a concepção do habeas corpus para a defesa de quaisquer direitos desde que tivessem alguma conexão com o direito de ir e vir. ENEAS GALVÃO, Ministro do Supremo Tribunal Federal no início deste século — e apontado por LEDA BOECHAT RODRIGUES como um dos principais entusiastas da utilização do habeas corpus para proteger quaisquer direitos —, respondeu o seguinte aos que viam excesso na sua ampliação:
Se o conceito do habeas corpus evoluiu por esse modo é porque as necessidades da nossa organização social e política o exigiram, como resultado de repetidos ataques à liberdade individual, determinando, assinalando função maior, mais lata, ao instituto do habeas corpus.
(…) No nosso meio político, os repetidos ataques à liberdade individual impuseram a necessidade de alargar a concepção do habeas corpus (…). O Tribunal está cumprindo a sua missão tutelar dos direitos, está evoluindo com as necessidades da Justiça; se há excesso, é o excesso que leva ao caminho da defesa das liberdades constitucionais.
Essa doutrina durou até setembro de 1926, quando uma reforma constitucional alterou a redação do § 22 do art. 72, deixando clara a aplicabilidade do habeas corpus apenas como instrumento de proteção da liberdade de ir e vir.
Estava, porém, lançada uma importante semente. Os vinte anos de aplicação do habeas corpus para toda sorte de violações de direitos serviram para consolidar, no Brasil, a ideia da necessidade de uma ação sumária e documental predisposta à sua proteção. E, juntamente com a limitação do habeas corpus à liberdade de ir e vir, nasceu a ideia de um instrumento que o substituísse nesse mister.
Foi assim que, durante as discussões da Assembleia Constituinte eleita em 1933, surgiu pela primeira vez o mandado de segurança, fruto de sugestão de JOÃO MANGABEIRA. O mandado de segurança descende do habeas corpus; tanto que a primeira disposição constitucional a seu respeito — o item 33 do art. 113 da Constituição brasileira de dezesseis de julho de 1934 — estabelecia que o procedimento do mandado de segurança haveria de ser o mesmo do habeas corpus. Seria perfeitamente possível e até estimulante falar do mandado de segurança juntamente com o habeas corpus, mas o tempo que me foi concedido é inclemente e não me permitiria semelhante imprudência.
Como se nota, o habeas corpus possui tamanha significância que gerou, pode-se dizer, descendente de tão ou quase igual envergadura jurídico-constitucional, qual seja, o mandado de segurança. O inciso LXVIII do art. 5º da Carta Magna prescreve:
Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;
Observa-se, entretanto, que, pelo seu art. 142, § 2º, nas punições disciplinares militares, excetua-se tal garantia.
No plano infraconstitucional é disciplinado pelo CPP, em seus arts. 647 a 667 e pelo RISTJ, nos arts. 201 a 210.
Quanto à competência do STJ, dispõe o art. 105 da CF:
Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I – processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
c) os habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea “a”, ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999)