O impacto econômico do Bilhete Único_Entrevista com Lélis Marcos Teixeira, Presidente da Fetranspor

28 de fevereiro de 2010

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Revista Justiça & Cidadania – O Bilhete Único, implantado a partir de primeiro de fevereiro deste ano, mudou a rotina de grande parte da população fluminense. Para que uma mudança de tal amplitude ocorresse,  foram necessários muitos estudos e um grande planejamento. O que foi considerado nos estudos que antecederam essa implantação?
Lélis Marcos Teixeira – A visão social  permeou todos os estudos técnicos e modelos matemáticos para a definição do formato final. Nosso foco foi o de atenuar o custo do transporte para aqueles que, apesar de terem menos recursos, eram os que mais caro pagavam por este serviço. Isto porque, ao contrário de outros países, aqui no Brasil, normalmente aqueles que moram em subúrbios e em locais das respectivas Regiões Metropolitanas mais distantes do Centro, são exatamente os que têm menor renda e enfrentam maiores problemas de infraestrutura.urbana. Nessas áreas, os terrenos são menos valorizados, mas o transporte coletivo fica mais oneroso, pelo custo quilométrico maior.

JC – Como foram realizados esses estudos e o que foi feito para corrigir essa situação?
LMT – Essa implantação foi muito interessante e singular em vários aspectos. O Bilhete Único vem mudar um paradigma de 32 anos, e levou em consideração, em seus estudos, o que existe de melhor no mundo, em termos de práticas tarifárias. Na maioria dos países, existem zonas tarifárias, com faixas de preço específicas, no âmbito das cidades ou em suas regiões metropolitanas, de acordo com as distâncias a serem percorridas, e há subsídio governamental. Isso não acontecia aqui, o que acabou por gerar um excesso no número de tarifas — eram 74, em nossa Região Metropolitana. Criou-se nova modelagem, baseada em dados oficiais do Plano de Desenvolvimento Urbano (PDTU), com zoneamento da Região Metropolitana e definição de faixas de custo, com redução para apenas 12 tarifas e barateamento na grande maioria. Os parâmetros de número de integrações e de tempo foram criados com base em critérios técnicos, levando em conta pesquisas como a do Instituto Ibope, e os dados obtidos pelo sistema RioCard, que demonstraram que 97% da população é atendida com o período estipulado de duas horas. Vale lembrar que o governo subsidia, na realidade, o cidadão, que passa a fazer economia importante em seu dia a dia. Com a tecnologia utilizada pelo sistema, o governo pode acompanhar os deslocamentos de cada cidadão, pois o cadastramento é feito pelo número de CPF. Com o Bilhete Único, as integrações entre os modais dentro de 20 municípios podem ser feitas com um valor único de R$4,40. O alcance social desta medida é muito grande e ocorre em vários aspectos. Quando falamos em mobilidade da população, não estamos falando apenas de deslocamentos, em transporte público, individual ou a pé. A questão está centrada em conceitos mais amplos, como planejamento urbano, política de utilização do solo e inclusão social.

JC – Como avalia o processo de implantação do Bilhete Único na Região Metropolitana do Rio de Janeiro?
LMT – A implantação foi um sucesso. Como em qualquer mudança de cultura ou introdução de nova tecnologia, acontecem alguns transtornos. Mas foram em número insignificante, pois falamos de uma população que faz 9,4 milhões de deslocamentos diários em transporte público, 6,6 milhões só em ônibus. A frota do Estado é de cerca de 20 mil ônibus, existem ainda os trens, o metrô, as barcas, as vans… As integrações com Bilhete Único podem acontecer entre quaisquer modais, desde que um dos deslocamentos se dê em caráter intermunicipal. As próprias autoridades do governo estadual têm manifestado sua satisfação com os resultados. Podemos dizer que foi uma iniciativa que alterou a rotina de grande parte da população, e que as mudanças aconteceram sem trauma.

JC – Quanto à quantidade de cartões, nesta primeira etapa, de que números podemos falar?
LMT – Temos cerca de 2 milhões de cartões de Vale-Transporte, que já passam a funcionar como Bilhete Único a partir do momento em que o empregador atualiza o cadastramento de seus funcionários no site, incluindo o CPF. Para portadores de cartões Expresso ou Jovem, o procedimento é o mesmo. Além disso, foram adquiridos, só na primeira quinzena de implantação, 30 mil cartões novos. Isso dá uma ideia da magnitude desse sistema, sem dúvida um dos maiores do mundo. Podemos dizer que temos algo me torno de 1,8 milhão de cartões de Bilhete Único no Estado.

JC – O sistema de transportes teve de fazer uma grande redução no número de tarifas vigentes no Estado, para tornar possível a implantação do Bilhete Único. Em que medida isso será prejudicial ou benéfico para a população? E para os transportadores?
LMT – Existiam 74 tarifas diferentes, que se transformaram ou, melhor dizendo, se compactaram em apenas 12.
Os transportadores vêm, há muitos anos, defendendo políticas que permitam a redução das tarifas de transporte. Quando reduzimos, aqui no Rio de Janeiro, o número de tarifas vigentes, a maior parte delas teve seu preço minorado. Logicamente, isso só traz vantagens para a população.
Quanto ao empresário de transporte, embora possa parecer uma contradição que ele lute por tarifas mais baixas, é algo inteiramente lógico. Nas grandes cidades de todo o mundo, o transporte público é subsidiado pelos governos, o que permite que o passageiro tenha um desembolso menor, pois o poder público arca com uma boa parte do custo dos deslocamentos em coletivos. Esta não é, porém, a nossa realidade e o segmento defende, através de suas entidades representativas, uma política de desoneração tarifária, de forma que a população tenha mais acesso ao transporte público — segundo números do Ipea, existem 35 milhões de brasileiros que não utilizam o transporte coletivo por falta de recursos financeiros. Esta é uma situação muito preocupante, pois o transportador sempre dependeu única e exclusivamente da tarifa e, por não haver uma divisão desses custos com o poder governamental, o passageiro acaba onerado e deixa de utilizar o transporte, criando um círculo vicioso: quanto menor o número de passageiros, mais cara se torna a tarifa, o que leva à diminuição dos passageiros.
Com o Bilhete Único, o governo estadual do Rio de Janeiro está fazendo a sua parte, subsidiando a diferença, para que o cidadão tenha direito a um desconto que lhe é de fundamental importância para uma qualidade de vida melhor. O transporte é um serviço essencial, tem enorme significado e influência na vida de cada um de nós. Mesmo aqueles que não usam o transporte público, precisam de serviços e produtos cujos fornecedores dele dependem, em sua maioria, para chegarem a seus trabalhos, diariamente. Imaginemos o que seria a economia do país sem uma infraestrutura de transporte público.

JC – Em termos de tecnologia, o que significa um sistema capaz de administrar tantos cartões, principalmente quando sabemos que podem coexistir, num único cartão inteligente, as funções de Vale-Transporte e Bilhete Único?
LMT – O sistema RioCard utiliza tecnologia moderna, num sistema confiável e de grande poder de armazenamento. Apenas a RioCard, fora do mercado financeiro do país, tem equipamentos desse porte, que permitem 30 milhões de operações simultâneas, envolvendo dados e valores, com o máximo de segurança com a qual podemos contar nos dias de hoje.

JC – Costumamos ver, na imprensa, comparações entre o sistema de Bilhete Único de São Paulo e do Rio. Quais são as principais diferenças entre um e outro?
LMT – Em São Paulo, o Bilhete Único é válido apenas no sistema de transportes da capital. Aqui no Rio, como foi criado pelo governo estadual, ele é válido nas integrações que incluam um deslocamento na rede intermunicipal. Ambos os bilhetes funcionam como moedeiros, e têm capacidade para aliar a função à do Vale-Transporte. Em São Paulo, o BU pode ser usado durante três horas, e aqui no Rio este período é de duas horas. A grande diferença é que o BU fluminense beneficia 20 municípios, enquanto em São Paulo abrange apenas a capital.

JC – Quanto ao tempo de duas horas para utilização do BU, como vê as sugestões de aumento desse intervalo para 3 horas?
LMT – As pesquisas demonstram que a maior parte dos passageiros, embora se pense o contrário, gasta pouco mais de uma hora em seus deslocamentos casa-trabalho e vice-versa . Segundo o PDTU (Plano de Desenvolvimento do Transporte Urbano), o tempo de viagem médio na Região Metropolitana do Rio é de 68 minutos. Duas pesquisas mais recentes, realizadas pelo Instituto Insider e pelo Ibope,  respectivamente em 2008 e em 2009, mostraram que 98% da população da RMRJ realizam seus deslocamentos em até 2 horas.
Por ora, temos que acompanhar o funcionamento do Bilhete Único, que ainda se encontra apenas no início de sua utilização, verificar os dados obtidos, ouvir os usuários. Caso fique comprovada a necessidade de estender esse período para 3 horas, e o governo assim o decidir, contará com a colaboração do corpo técnico da Fetranspor, assim como da equipe da RioCard, como aconteceu para a implantação do BU.

JC – Na sua visão, o Bilhete Único é bom para o transportador?
LMT – Considero que tudo o que é bom para o nosso cliente — o passageiro — é igualmente bom para o transportador. Como em qualquer outro negócio, só se alcança bons resultados se a clientela está satisfeita. No caso do transporte coletivo, que é um serviço essencial, esta satisfação é mais do que se sentir atendido nas expectativas quanto a um produto que se adquire pois, como disse anteriormente, ele influencia na própria qualidade de vida do cidadão. As horas que se consomem num engarrafamento, ou num terminal ou estação, enquanto se aguarda a condução, são percebidas de uma forma bastante negativa, pois envolvem tensão.
Como chamou a atenção o poeta francês Lamartine, a percepção do tempo varia de acordo com o nosso estado de espírito. Se estamos felizes, ele corre, mas se estamos tristes, parece se arrastar. A espera, ou o transporte sem segurança ou conforto, faz com que a passagem do tempo seja potencializada, e que o trabalhador chegue ao trabalho irritado, cansado, menos disposto para as atividades que o aguardam. A repetição desse tipo de situação leva ao estresse constante. Isso não interessa ao transportador, que vem defendendo soluções que não estão ao seu alcance, que envolvem planejamento urbano, que envolvem planejamento urbano e políticas governamentais, como forma de poder aprimorar os serviços prestados e diminuir o tempo das viagens.
O Bilhete Único é bom para o transportador — assim como o será a adoção de corredores exclusivos, de sistemas de BRT (Bus Rapid Transit) e de outras soluções que o ajudem a o transporte coletivo a funcionar cada vez melhor e que satisfaçam o seu cliente. Os deslocamentos diários nos ônibus devem ser experiências agradáveis.

JC – E os empregadores do Estado, que vantagens podem ter com o Bilhete Único?
LMT – Teremos um impacto econômico muito positivo com o Bilhete Único, pois, com  a diminuição dos recursos investidos no Vale-Transporte dos funcionários, os empregadores poderão fazer investimentos para aumentarem sua linha produtiva ou seus serviços. Vejamos os empregadores do município de Duque de Caxias, por exemplo. Pelas suas características geográficas, mesmo em deslocamentos cujos pontos de partida e de chegada estão dentro de Caxias, as linhas utilizadas, muitas vezes, passam por outros municípios, sendo, portanto, intermunicipais. Aqueles que utilizem duas conduções poderão se beneficiar do Bilhete Único. Se a economia é significativa para um trabalhador, ao fim do mês, imaginemos para muitos trabalhadores. Quanto maior o número de funcionários que façam integrações dentro do perfil englobado pelo BU, maior a economia gerada.
A maior vantagem que o Bilhete Único trará, porém, na minha opinião, será a inclusão social. Voltando aos dados do Ipea e aos milhões de pessoas que passam a se tornar cativas da localidade em que moram, por não terem dinheiro para o transporte. Existem trabalhadores que passam a semana no local de trabalho ou até nas ruas, porque o deslocamento para outros municípios lhes é muito dispendioso, e é muito gratificante saber que muitos deles poderão voltar a ter acesso ao transporte coletivo, com os descontos proporcionados pelo Bilhete. Outros deixarão de ser discriminados nas oportunidades de emprego, por morarem longe e os possíveis patrões preferirem contratar pessoas que representem menores investimentos com Vale-Transporte. O tamanho desse alcance social, no entanto, só poderemos conhecer daqui a mais um tempo, através de estudos e pesquisas específicos.

JC – Há mais algum ponto que gostaria de ressaltar?
LMT – Quero reforçar um ponto, pois acho que é menos conhecido e é de grande importância para todos: empresários, transportadores, população e governo. Trata-se da transparência do processo, que conta com auditoria, contratada por iniciativa da RioCard, de duas empresas, uma que acompanha o fluxo financeiro, a Fernando Motta,  e outra que verifica a própria tecnologia, a Ernest Young. A Coppe/UFRJ também faz auditoria desse processo, para o governo estadual. Como já disse, o sistema, por si só, já permite que o governo do Estado, por meio de sua Secretaria de Transportes, verifique, em tempo real, a utilização de cada viagem feita com utilização do Bilhete Único. Podem ser verificados dados como linha e até horário. Por isso, podemos dizer que o subsídio está sendo concedido ao cidadão, pois o poder público sabe exatamente quem está sendo beneficiado. Tudo é feito dentro da maior transparência possível, favorecendo a quem precisa: o cidadão comum, que depende de deslocamentos intermunicipais para cumprir suas tarefas diárias, e que vai poder fazer economia, ter maiores chances de emprego e sair da faixa de exclusão social.