Edição 77
O indivíduo é o único sujeito ativo possível em Direito Penal?
31 de dezembro de 2006
Álvaro Mayrink da Costa Desembargador (aposentado) do TJ/RJ, Ex-presidente do TRE/RJ. Presidente do Fórum Permanente de Execução Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Criminologia da pós- graduação da UGF e da EMERJ
A discussão sobre o sujeito de direito adquiriu especial atenção no final do século XX diante do questionamento da máxima “societas delinquere non potest”, traduzido como o princípio de imputação penal individual. A idéia de sujeito tem sido o ponto de referência das categorias dogmáticas da ação e da culpabilidade sem resolver o problema das condutas de diversos entes coletivos na sociedade atual que requerem reprovação penal, tal como as condutas puníveis realizadas por ou a partir das pessoas jurídicas. Sabemos que os conceitos dogmáticos de ação, culpabilidade e pena privativa de liberdade foram elaborados a partir da idéia do indivíduo e suas qualidades. Questiona-se, se o modelo de Direito Penal dominante com patamar no sujeito individual, ainda é capaz de solucionar os conflitos da atualidade de relevância penal.
Historicamente é larga a prática desenvolvida por Bartolo sobre a lei 16, §1º do título 1º, livro 48, do “Digesto”, que chegou aos séculos XVII e XVIII. Com a “Época das Luzes” surge a Revolução Francesa que restabelece o critério da ficção, assinalando a imutabilidade do direito penal moderno, só a pessoa física poderia ser apenada, sendo totalmente impossível fazê-lo em relação à pessoa jurídica, sem violar a máxima do direito penal que exige a identidade do condenado. Em sentido oposto, surge a teoria alemã da responsabilidade penal das pessoas jurídicas através do civilista Otto Gierke em sua obra “Das deutsche Genossenchaftrecht”(1868) sustentando que a pessoa jurídica deve também ser punida como todos os membros que a representam.
Franz Von Liszt em seu tratado combate o axioma Societas delinquere non potest e afirma a responsabilidade da pessoa social. Mezger aceitava as exceções impostas por necessidades práticas na questão das multas fiscais. Assinale-se na Itália que Forian sempre repudiou a incriminação das pessoas jurídicas, posição contrária a de De Marsico e Silvio Longhi.
Note-se que Jimenez de Asúa em seu estudo “La responsabilidad criminal de las pessoas jurídicas” (1947) concluía pela ausência de imputabilidade para a edificação da noção do delito sem que este se opusesse a uma norma de cultura. Postula que não se pode afirmar que uma pessoa realize um ato, se nele não concorrem dois grupos de elementos essenciais: a) o intelectual consiste em que o autor capte dentro de sua consciência o fato, como ele é e como todas as circunstâncias do tipo injusto e conheça a significação de seu ato; b) o afetivo: para que o sujeito atue, realize o ato doloso, é necessário que conheça as circunstâncias do fato, e ao mesmo tempo a significação antijurídica de sua ação. Conclui, indagando: a) como poderíamos construir numa pessoa jurídica o elemento intelectual para ter conhecimento, consciência e juízo cognitivo?; b) como vamos edificar esse elemento intelectual do dolo em que é incapaz de um juízo crítico? Assim, a pessoa jurídica não é capaz de delinqüir1.
No modelo de responsabilidade por atribuição surge a questão dogmática da natureza do título de imputação de responsabilidade à pessoa jurídica pelos atos de seus órgãos. A transferência do elemento subjetivo das pessoas jurídicas atuantes na pessoa física que compense os déficits subjetivos destas, dá razão à postura doutrinária que defende que tal imputação “normativa” do comportamento individual “como do próprio grupo” se reduz a uma mera imputação objetiva que seria suficiente para a imposição de conseqüências cíveis ou no campo do direito público, mas não necessariamente para a culpabilidade subjetiva e pena. Recorde-se que Jakobs em seu trabalho “Strafbarkeit juristicher Person?” defende que inexiste culpabilidade jurídico-penal transferível2. Como coloca Jesús-María Silva Sánchez, superada a questão entre as teorias de ficção e de realidade, questiona-se se as pessoas jurídicas são sujeitos reais, distintos das pessoas físicas que nela se integram. As pessoas jurídicas constituem agentes econômicos e daí são agentes essenciais. A questão complexa e controvertida é saber se a condição de sujeitos sociais permite caracterizar as pessoas jurídicas como destinatários das normas jurídico-penais.
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas se constituiria numa questão pertinente ao sujeito do direito penal. A idéia do sujeito tem sido o ponto de referência de categorias dogmáticas da ação e da culpabilidade que não tem sido capaz de solucionar o problema da atualidade relativo a numerosas condutas coletivas, cuja realização é percebida pela moderna sociedade de riscos como condutas intoleráveis a partir de pessoas jurídicas e, sob tal ângulo com base no modelo dominante com patamar num sujeito individual, não seria possível solucionar os conflitos sociais deste novo século que se consideram de relevância penal.
Na atualidade o thema da responsabilidade penal dos entes coletivos está diretamente ligado ao âmbito dos injustos econômicos, diante de quatro grupos principais: a) perigos contra o meio ambiente; b) perigos dentro da empresa; c) perigos do produto; d) perigos no âmbito dos meios de transporte.
A antiga discussão sobre a possibilidade da imposição de sanções de caráter penal aos entes coletivos dividem-se em duas posições opostas: a) inadmissibilidade da punibilidade das pessoas jurídicas, mas admitindo a possibilidade de aplicação de sanções administrativas ou civis; b) admissibilidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos sistemas anglo-saxões e os que foram por ele influenciados. Aduza-se que no âmbito europeu há países que admitem o princípio societas delinquere potest, como a Holanda, França (reforma do Código Penal de 1992), Dinamarca (reforma do Código Penal de 1996) e a Bélgica (reforma do Código Penal de 04.05.1999) e a Itália (anteprojeto do Código Penal italiano de 1999)3. As dificuldades jurídicas se situam nas questões relativas ao problema do sujeito e da norma jurídica, diante da incompatibilidade da pessoa jurídica com as categorias dogmáticas da ação e da culpabilidade, como da função e essência da pena que marcam a separação entre a pessoa física e a jurídica4.
A questão pode ser aprofundada diante da crise da idéia de sujeito ao suscitar que a culpabilidade não se entende como uma reprovação ético-social, mas se deve determinar a partir de aspectos da pena. A teoria da culpabilidade de Jakobs toma como referente material a idéia de pessoa, cujo âmbito normativo se encontra definido a partir do cidadão5. O direito penal cumpre a função de confirmar a identidade normativa da sociedade para uma nova configuração de seu sujeito. Para Jakobs é necessário partir de correspondentes conceitos sociais e da norma como expectativa social institucionalizada. Neste contexto, ser sujeito significa exercer um papel e não a expressão da subjetividade de seu portador (representação de uma competência socialmente compreensível)6. Traduzindo a posição de Jakobs o indivíduo não é o único sujeito possível de direito penal.
Não podemos olvidar a evolução dogmática da idéia de sujeito de direito penal em forma paralela às mudanças de fundamentação das categorias da teoria do injusto. O sujeito na teoria hegeliana é o sujeito individual eticamente responsável, já ao contrário, na dogmática da prevenção especial positivista, a capacidade de responsabilidade ética não é uma característica do sujeito.
A questão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas repousa sobre as mesmas categorias dogmáticas da teoria do injusto (ação e culpabilidade) com uma discussão sobre a teoria do sujeito de direito penal.
A teoria que parece ser a mais adequada para o novo contexto, sob o ângulo de que o novo marco dos sistemas sociais não se compõe de ações individuais, mas de comunicações imputáveis como ação. A sociedade não se compõe de um conjunto de ações específicas, se estrutura sobre o sucesso universal dos meios operativos. O sujeito tradicional, o indivíduo, está envolvido por um sistema de suas comunicações com o mundo circundante. A sociedade se compõe de comunicações e sistemas sociais (direito, economia, política) que se orientam por suas próprias regras. Daí a reformulação dos conceitos dogmáticos de ação e culpabilidade. O sistema jurídico não parte do sujeito auto-inconsciente e de uma função do direito penal que não está vinculada a reprovar a tarefa de ressocializá-lo, senão a de satisfazer a vigência de uma norma e garantir a identidade normativa da sociedade. Há mudança do paradigma no sentido de recolocar o problema da responsabilidade penal das penas jurídicas 7.
Para Jakobs as pessoas jurídicas, como agentes econômicos e sociais reais, são socialmente construídas como centros de imputação da frustração de expectativas normativas e sujeitos passivos das conseqüências (não são destinatárias diretas que pressuponham a liberdade de ação). É preponderante a postura que entende compatível a sanção penal na pessoa física com a sanção administrativa à pessoa jurídica diante da divergência do sujeito ativo. A imposição de conseqüências acessórias deve ser presidida pelo princípio da presunção de inocência e do ne bis in idem.
As corporações ou associações, como sujeitos de direito, possuem capacidade jurídica de atuar, todavia carecem da vontade no sentido psicológico que requer o conceito jurídico penal da ação (Societas delinquere non potest). As pessoas jurídicas não possuem capacidade de conduta, pois o injusto se elabora sobre a conduta humana individual e jamais a decisão de um colegiado equivale a uma decisão individual. Há pessoas individuais que atuam em nome e como representantes de pessoas jurídicas. Há como tendência nos projetos de reforma introduzir uma regra geral que opere como norma extensiva de tipos penais contidos na Parte Geral, como tipos sui generis, resultariam aplicáveis a quem atua em nome de outrem, ainda quando tais qualidades, relações ou circunstâncias concorram na pessoa representada.
Várias propostas buscam introduzir critérios adicionais para elaborar a culpabilidade das pessoas jurídicas (Schüneman e Tiedemann), chegando-se à conclusão de que a partir de nossas categorias dogmáticas, nenhum conceito normativo ou social de culpabilidade permitirá a superação do obstáculo para uma resposta coerente. A partir da idéia de sujeito se poderá elaborar conceitos jurídico-dogmáticos.
NOTAS _______________________________
1 Luiz Jimenez de Asúa, El Criminalista Cuarto Estudio, Tomo III, Buenos Aires. Ed. Argentina, 1949, 152-201.
2 Jésus-María Silva Sánchez, Normas y Acciones en Derecho Penal, Buenos Aires, Hammurabi, 2003, 78-81.
3 A Constituição de 1988 no §3º do art. 225 admite a responsabilidade penal e administrativa das pessoas jurídicas restrita ao meio ambiente (“As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de repor os danos causados”). A lei nº 9.605, de 12.02.98 em seu art. 21 diz que as penas aplicáveis isoladas, cumulativamente ou alternativamente às pessoas jurídicas (“As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, cível e pessoalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de representante legal ou contratual ou de órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”) são de multa, restritivas de direitos ou prestações de serviços à comunidade. Dentro da política criminal do século XXI já se antecipava à legislação pátria no elenco específico de medidas sócio-educativas sem fins aflitivos (custeio de programa e de projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas, manutenção de espaços públicos, contribuições e entidades ambientais ou culturais públicas) e a pessoa jurídica constituída ou utilizada, preponderantemente, com o fim de permitir, facilitar ou ocultar a prática de injusto ambiental tendo decretada sua liquidação forçada. Observa-se o aparecimento de um novo arsenal de conseqüências jurídicas, que embora pressuponha uma conduta delitiva, não mais se pode entender como penas no sentido tradicional. A questão se coloca em relação à culpabilidade, desenhada por uma perspectiva de política criminal. A macrossociedade no século XXI, repete-se, buscará novas formas organizacionais que não mais requeiram a pessoa, nem suas conseqüências danosas.
4 A lei 9.605, de 12.02.98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente impõe à pessoa física penas restritivas de direitos (prestação de serviço à comunidade, interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades, prestação pecuniária e recolhimento domiciliar) e a pessoa jurídica, aplicável isolada, cumulativa ou alternativamente: multa (a lei não comina disposições gerais explicitando que para seu cálculo deverão ser observados os critérios do Código Penal), restritivas de direitos (suspensão parcial ou total de atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, proibição de contratar com o poder público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações) e prestação de serviços à comunidade (custeio de programas e projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas; manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas).
5 Jakobs, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 6/44, Berlin – Nova Iorque, 1983.
6 Jakobs, “Das Strafrecht Zwischen Funktionalismus und alteropäischen Prinzipiedenken”, 859.
7 Silvina Bacigalupo “La Responsabilidad Penal de las Personas Jurídicas: un Problema del sujeto del Derecho Penal”, in El Derecho Penal del Siglo XXI, Homage al Doctor Manuel Rivacoba y Rivacoba, Mendoza, EJC, 2005, 474 e segs..