O Judiciário brasileiro possui independência

20 de junho de 2011

Compartilhe:

Entrevista: Gabriela Knaul, Relatora Especial para independência de juízes e advogados da ONU
Democratizar e diminuir a politização das indicações e nomeações dos integrantes dos tribunais superiores são alguns dos desafios do Poder Judiciário brasileiro na visão da Organização das Nações Unidas (ONU). Quem afirma é a Relatora Especial para independência de juízes e advogados desta entidade, a magistrada brasileira Gabriela Knaul. Ela foi nomeada para o cargo em 2009. O trabalho dela consiste justamente em promover a independência, a integridade e a transparência da Justiça e a independência das profissões jurídicas como pré-requisitos essenciais para a proteção dos direitos humanos.
Nesta entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania, Gabriela destaca os avanços já conquistados pelo Judiciário brasileiro. Ela citou a Constituição Federal atualmente em vigor, que tornou real a autonomia judicial ao dotar os tribunais de orçamento próprio e competência para se auto-administrar. A criação do Conselho Nacional de Justiça, na avaliação dela, foi outro importante passo rumo à democratização.
“Nota-se que o governo brasileiro observou as orientações internacionais para a criação do CNJ, e foi muito feliz na sua concepção, composição e determinação de competência, de forma que a eventual tentativa de alterar a estrutura existente deve colocar em discussão os seus reais motivos, a fim de ser certificada a ausência de interesses escusos em mitigar sua atuação”, disse a magistrada.
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Revista Justiça & Cidadania – Quando ocorreu sua eleição para o cargo de Relatora Especial para a Independência de Juízes e Advogados pelo Conselho de Direitos Humanos? Qual é o tempo de duração do mandato? E qual é o seu papel como Relatora Especial das Nações Unidas?
Gabriela Knaul – O Conselho de Direitos Humanos realizou a eleição no mês de junho de 2009 e assumi a função no dia 1º de agosto de 2009 para o mandato pelo período de três anos. O mandato para a independência dos juízes e advogados foi instituído em 1994 e deriva de uma deliberação da antiga Comissão de Direitos Humanos, face a preocupação com a frequência e a natureza dos ataques aos juízes, magistrados, defensores públicos, advogados e funcionários da justiça em todo o mundo. O Conselho de Direitos Humanos têm reconhecido a necessidade de concentrar a atuação do mandato sobre os fatores estruturais da independência judicial que, uma vez violados, podem corroer o Estado de Direito e o sistema democrático.
De modo geral, os Relatores Especiais são profissionais que trabalham no monitoramento de direitos humanos em temas específicos. O meu mandato está encarregado de promover a independência, a integridade e a transparência do Poder Judiciário e a independência das profissões jurídicas como pré-requisitos essenciais para a proteção dos direitos humanos. Portanto, é meu dever incentivar a coerência entre os sistemas jurídicos nacionais e regionais com as normas internacionais de direitos humanos e o pleno respeito ao princípio da separação dos poderes. Para tanto, eu devo executar uma grande variedade de tarefas que incluem o estudo da situação dos países e temas específicos. Além disso, são atribuições da Relatoria o envio de comunicações, cartas de denúncia e apelos urgentes aos Governos. A realização de consultas, a participação em encontros ou conferências internacionais, regionais e nacionais, a promoção de assistência e cooperação técnica com os países e o fomento de auxílio em atividades normativas relativas ao Judiciário também compõem o meu leque de atribuições. Todas essas atividades exigem uma comunicação constante com muitos grupos e indivíduos em todo o mundo e são apresentadas, mediante diálogo interativo, ao Conselho de Direitos Humanos e Assembléia Geral das Nações Unidas, através de relatórios das visitas aos países, dos relatórios temáticos e do relatório anual de comunicações.
JC – Como se pode avaliar a independência do Judiciário brasileiro? A Constituição de 1988 realmente contribuiu para um ambiente mais favorável à autonomia judicial?
GK – A Constituição Federal de 1988 caracteriza-se como um marco ao princípio da separação de poderes e do Estado Democrático de Direito no Brasil. A autonomia judicial foi expressamente reconhecida pela norma constitucional. Desde então, o Judiciário passou a ter seu próprio orçamento, sendo que os tribunais e seus magistrados, além da inerente função jurisdicional, também adquiriram o papel de gestor da administração da justiça. A propósito, penso que seja exatamente em razão dessa autonomia administrativa e financeira que o legislador constituinte originário conferiu ao Supremo Tribunal Federal o poder da iniciativa legislativa para a nova Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a fim de adequar a norma, datada de março de 1979, ao novel contexto sócio-político-jurídico do país. Verifica-se que, no decorrer desses 22 anos, as questões relativas à administração da justiça têm sido resolvidas caso a caso por intermédio de ações judiciais. É possível afirmar, inclusive, que a Reforma do Judiciário, aprovada em 2004, muito se deve às dificuldades enfrentadas pelos tribunais nessa seara. A ausência da nova Loman tem custado ao Judiciário, no âmbito interno, o preço do dispêndio de tempo, recursos e intrigas políticas, em razão da imposição da regra por meio de interpretações judiciais da lei orgânica vigente. Creio que a nova Loman deverá completar a ambiência constitucional relativa à autonomia judicial, fundada nos princípios da transparência, probidade, de critérios objetivos assentados no mérito, sob o marco nacional da democratização do Poder Judiciário.
JC – Comparando com outros países, como se poderia avaliar a independência do Judiciário brasileiro? Na prática, a justiça brasileira pode ser considerada realmente independente?
GK – Institucionalmente pode-se dizer que o Judiciário brasileiro possui elevado grau de independência, principalmente porque as disposições constitucionais e legais são cumpridas pelos demais poderes. Ademais, o Judiciário recebe o respectivo duodécimo e tem o poder de gerir todos os seus recursos, financeiros, materiais e de pessoal, sem interferência externa. No Brasil, é o próprio Judiciário que promove o ingresso na carreira, que realiza os concursos de remoção e promoção, que cuida da aposentadoria de seus membros e dos salários. Por certo, os magistrados possuem a garantia da inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade, sendo que todas essas questões apresentam-se como salvaguardas básicas à independência do Poder Judiciário.
É do meu conhecimento dificuldades enfrentadas pelo poder judicial em diversos países. Posso citar como exemplo, o repasse de verbas financeiras irrisórias ao poder judicial ou a administração do orçamento do Judiciário pelo Executivo. Também é comum denúncias sobre a exoneração arbitrária de magistrados. Recentemente, na Venezuela, uma juíza foi presa em razão do exercício da função, na qual além de aplicar a legislação interna, também deu cumprimento a uma recomendação do Grupo de Trabalho sobre detenções arbitrárias das Nações Unidas. Há informações sobre a transferência de juízes como represália a decisões judiciais proferidas contra interesses superiores ou externos. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, esta Relatoria tem recebido comunicado de que juízes de vários países da Europa estão sofrendo a redução indevida dos seus vencimentos.
Nesse quadro, vê-se que os tribunais e juízes brasileiros possuem uma segurança maior para exercerem a função jurisdicional. E, neste ponto, destaco o papel do Conselho Nacional de Justiça como um órgão catalisador importantíssimo para velar por essas salvaguardas. A independência é um bem que se conquista todos os dias porque, ainda que aparentemente conquistada, somente sua constante vigília pode evitar sua deterioração.
JC – Os magistrados criticam a criação de um órgão de controle externo, como o Conselho Nacional de Justiça, pois crêem que esse órgão interfere na independência do juiz. Quais as recomendações internacionais existentes sobre os conselhos? Qual é a sua avaliação sobre o Conselho Nacional de Justiça no Brasil?
GK – No âmbito das Nações Unidas, as recomendações são no sentido da existência e atuação de um órgão independente, de composição plural e balanceada com predominância de membros magistrados, que tenha a competência de cuidar da independência judicial. Em diversos países têm-se a atuação de órgão similar, encarregado normalmente dos seguintes assuntos: realização do processo de ingresso e promoção na carreira da magistratura, condução das ações disciplinares contra os juízes e funcionários da justiça, coordenação das gestões orçamentária, administrativa e financeira das diversas esferas do Judiciário, assim como sua estruturação física, capacitação e informatização, dentre outros. No Brasil, esse órgão corresponde ao Conselho Nacional de Justiça, criado através da Emenda Constitucional 45/2004. Esse colegiado, de caráter nacional, estende sua atuação a todas as esferas de competências e/ou jurisdições, estadual, federal, do trabalho, eleitoral e militar. Nota-se que o governo brasileiro observou as orientações internacionais para a criação do Conselho Nacional de Justiça, e foi muito feliz na sua concepção, composição e determinação de competência, de forma que a eventual tentativa de alterar a estrutura existente deve colocar em discussão os seus reais motivos, a fim de ser certificada a ausência de interesses escusos em mitigar sua atuação.
Aliás, eu me lembro da resistência oposta por parte da magistratura, principalmente pelos tribunais, à criação do Conselho Nacional de Justiça. Atualmente, acredito que esse debate venha perdendo força, por conta da relevância das questões que o Conselho Nacional de Justiça tem tratado, contribuindo efetivamente para o aprimoramento da administração da justiça.
Interessante notar que os tribunais brasileiros adquiriram autonomia financeira e administrativa com a Constituição Federal de 1988 e, até junho de 2005, prestavam contas tão somente aos Tribunais de Contas. Assim, inexistia um órgão, central e nacional, que pudesse exercer um controle, ainda que mínimo, das atividades e da gestão do Poder Judiciário. Imagine o significado disto, diante da complexidade da estrutura e do funcionamento simultâneo de 92 tribunais, os quais operavam como se fossem ilhas.
Acredito que os tribunais e a magistratura brasileira estejam maduros o suficiente para dar o passo adiante na mudança de cultura da gestão patrimonialista à gerencial, tendo o Conselho Nacional de Justiça como catalisador desse processo, que foi iniciado com o planejamento estratégico do Poder Judiciário nacional. Eventuais resistências à atividade desse órgão tendem a diminuir, a partir da compreensão da dimensão do papel do CNJ.
Cabe ao Conselho Nacional e Justiça a árdua tarefa de promover a integração do Judiciário nacionalmente.
JC – Quais seriam, em sua opinião, os principais desafios do Judiciário na atualidade brasileira?
GK – No aspecto macro: democratizar-se, interna e externamente; diminuir a politização das indicações e nomeações aos tribunais superiores, além de promover a conscientização de que o Judiciário é uno, apesar das diversas competências e jurisdições, e de que todos os magistrados desempenham relevante papel na justiça como um todo. Há desafios também em algumas áreas. No âmbito do acesso à justiça, por exemplo, destaco alguns pontos: a necessidade de maior transparência das atividades, a compreensão da linguagem e da comunicação, o aprimoramento do funcionamento das unidades judiciais, com especial relevo às que se encontram distantes dos tribunais e das capitais, e o desenvolvimento de políticas que aproximem a população da realidade do Judiciário e vice-versa, inclusive das populações indígenas, dos quilombolas, dos homossexuais etc.
Quanto à eficiência, por certo, a celeridade processual ainda precisa ser conquistada, respeitando o princípio do devido processo legal. Já na esfera da administração da justiça, há de se desenvolver mecanismos que garantam a continuidade e maior homogeneidade das políticas nos tribunais, concretizando o princípio da impessoalidade na gestão pública. Outro desafio é equacionar a gestão dos recursos financeiros e da carência de funcionários judiciais com a crescente demanda de ações, promovendo uma revisão profunda sobre o modelo de funcionamento de justiça e readequá-lo às atuais necessidades e conjuntura. Na dimensão legal, encaminhar o projeto de lei da Loman ao Congresso Nacional.
JC – Quais recomendações as Nações Unidas poderiam endereçar à justiça brasileira?
GK – Os Relatores Especiais fazem suas recomendações de caráter oficial ao Governo no relatório de missão oficial ao país. Gostaria de mencionar que o meu antecessor, Leandro Despouy, visitou o Brasil em outubro de 2004, na época em que se discutia a reforma do Judiciário, de cuja visita resultou o relatório E/CN.4/2005/60/Add.3. Tomo a liberdade de sugerir a leitura desse relatório, já disponível nos seis idiomas oficiais das Nações Unidas, de fácil acesso na internet, porque oportunizará a visualização exata da função desta Relatoria Especial em visitas oficiais e de que maneira podemos contribuir com os governos através das nossas atividades. Indico este relatório sobre o Brasil porque o contexto jurídico é familiar à comunidade judiciária brasileira. No entanto, gostaria de mencionar os seguintes pontos identificados pelo relator na referida visita: dificuldades no acesso à justiça, por razões de ordem social, econômica e cultural; lentidão e notória morosidade processual; escassa representação de mulheres, de afro descendentes e de indígenas nos altos cargos da magistratura; tendência ao nepotismo; a necessidade de apoiar a instalação e o funcionamento da Defensoria Pública, considerando que mais da metade da população vivia abaixo da linha de pobreza no Brasil, dentre outros.
JC – Qual a sua opinião sobre as boas práticas identificadas no Brasil? Há alguma boa prática observada em suas visitas a outros países que poderia ser adotada pela justiça brasileira?
GK – A boa prática comprovada é o experimento que deu certo. E, como toda experiência, requer recursos para sua elaboração, implementação e análise de resultados. Por isso que eu acredito que o desenvolvimento e o reconhecimento de boas práticas é um excelente mecanismo de aprimoramento do sistema judicial, pois estimula a criatividade dos seus diversos atores.  Permita-me salientar a extrema contribuição do Instituto Innovare que mediante concurso, no qual podem participar tribunais, magistrados, membros do Ministério Público, defensores públicos e advogados, premia as boas práticas. Ao final do concurso tem-se a disponibilidade de um verdadeiro banco de dados. O concurso para identificação de boas-práticas é um campo fértil para a democratização da justiça. Nesse contexto, parece-me oportuna a abertura para a participação da sociedade civil organizada em tais concursos. Seria uma maneira de se conhecer, sob a ótica externa, o que significa uma boa-prática do Judiciário para a população, que pode, inclusive, passar despercebida aos olhos internos. Poderia ser, ainda, um instrumento positivo de interação entre a sociedade e o funcionamento do sistema de justiça.
JC – Abordando temas específicos, qual a sua opinião a respeito da situação da justiça criminal no Brasil diante do elevado grau de impunidade existente no país?
GK – Na esfera da justiça criminal, considerando o fato delitivo pode-se dizer que o Judiciário encontra-se imprensado e dependente de ações do executivo, tanto na persecução dos crimes como na execução das penas. A notícia do crime é recebida pela autoridade policial, que também coleta as evidências e as provas do crime e relata a investigação criminal. A investigação criminal segue para o Ministério Público, que é o detentor da ação penal. Esse conjunto de informações chega ao Judiciário depois de passar por esses dois filtros prévios de natureza oficial.
No Brasil, como dito, o Executivo também tem atuação decisiva no que tange ao funcionamento do sistema prisional e na forma do cumprimento das penas. Talvez, dada à situação da maioria das nossas prisões, caberia ao Judiciário um protagonismo maior na fiscalização das penas e das condições dos cárceres. Logo, o Poder Executivo possui enorme proeminência e sua atuação é determinante para a diminuição dos índices de impunidade no país. Penso que o aprofundamento do debate em torno da remodelação das polícias, da valorização dessa função, da modernização da investigação sobre todos os níveis de delito, da capacitação dos seus agentes e da promoção e garantia dos direitos humanos, aliado a um firme combate à corrupção, sejam passos decisivos para que o sistema funcione com mais transparência e credibilidade, evitando-se absolvições indevidas e condenações injustas.
Além disso, a estrutura da persecução penal e do sistema criminal, como um todo, deve ajustar-se à realidade da atual criminalidade difusa e o Brasil deve atentar-se para o que vem ocorrendo com as instituições de alguns países da nossa região, muitas delas tentando recuperar-se da corrosão provocada pela atuação do crime organizado. Eu quero dizer, com isso, que o nosso sistema precisa preparar-se para lidar com os crimes que atentam diretamente contra o Estado de Direito, como é o caso do crime organizado, da lavagem de dinheiro, do narcotráfico e até, do terrorismo. Veja que o nosso país ainda não possui uma lei que defina e tipifique como crime as práticas de terrorismo. Esta é uma providência urgente considerando que sediaremos, em breve, eventos de magnitude global. Todos os atores do sistema de justiça, inclusive o Judiciário, devem preparar-se para esse desafio.
JC – E qual é sua opinião sobre o debate em torno do controle prévio de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal?
GK – Sobre o debate em torno da ideia de se outorgar ao Supremo Tribunal Federal a possibilidade de realizar o controle prévio de constitucionalidade, creio que o Judiciário passa por um período de transição decorrente da Reforma de 2004. Extrai-se do relatório anual do Supremo Tribunal Federal a adoção de mecanismos processuais que vem reduzindo estoque de demandas, através de seleção mais criteriosa de recursos e ações que devem ser recebidos e processados na Suprema Corte.
Atualmente esse controle prévio de constitucionalidade é realizado pelo Legislativo e Executivo. O sistema jurídico brasileiro confere ao Judiciário a possibilidade do exercício do controle posterior de constitucionalidade, sendo que as estatísticas acerca do número de ações desta natureza revelam a desnecessidade de mudanças nesse sistema na atual conjuntura do Supremo Tribunal Federal.
Os sinais apresentados pela Suprema Corte são, ao meu modo de ver, no sentido de que está direcionando sua atividade para a análise de temas de extrema relevância para o país, em consonância com a magnitude do seu papel para a sociedade e para todo o Judiciário. Atribuir ao Supremo Tribunal Federal o controle prévio de constitucionalidade, neste momento, assemelha-se a uma possibilidade de se criar o mar revolto quando a embarcação chefe começou a alinhar os demais navios.