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O Judiciário combatente: A falácia da pós-modernidade

3 de janeiro de 2019

Desembargador federal no TRF 1a Região Professor na UnB

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Qual de nós gostaria de ser julgado pelo general do exército inimigo?

Quem reconheceria virtudes no adversário a ponto de permitir que ele condenasse ou absolvesse a nós mesmos, de acordo com a sua reconhecida competência e o seu notável conhecimento técnico? Quem seria magnânimo ao ponto de se deixar julgar pelo líder do inimigo, abandonando a tranquilidade que vem da imparcialidade do juiz?

Leitores e escritores foram julgados na Idade Média por quem se dedicava à investigação, à perseguição e ao combate à heresia, à apostasia e às ofensas a Deus, todas praticadas através das divulgações de ideias.

Sabemos – da história, da filmografia e da literatura – o resultado desta guerra: condenaram-se filósofos, professores, acadêmicos e livres pensadores. Naqueles idos, quem combatia também julgava, mas o fazia sempre – o combate e o julgamento – em nome de Deus.

Aquele que age para investigar, punir e acabar com as práticas objeto de seu diuturno afazer e das quais acusa terceiros terá os olhos atentos à inocência do réu e os ouvidos prontos a escutar seus argumentos de defesa? Respeitará cegamente a lei, mesmo que isso signifique que seu combate elegeu um alvo equivocado? Admitirá a inexistência de provas da acusação se for o caso? Terá equilíbrio e firmeza para reconhecer excessos se ele próprio conclamar o público a juntar forças consigo no combate ao objeto do processo?

Ou a presença no campo de batalha o torna apaixonado pela luta e pela vitória, não permitindo que reconheça atos equivocados de quem acusa e a inexistência de provas de culpa de quem está submetido a ele próprio?

Existem batalhas justas, é verdade! Tão justas e corretas que somente ser contra elas já coloca o Homem na contramão dos valores positivos. A guerra contra a corrupção é uma delas! Ela é feita de batalhas justas.

Ninguém – a não ser os criminosos – é a favor da corrupção!

Nenhum juiz é contra o combate à corrupção.

Mas vamos nos lembrar que ninguém era contra Deus na Idade Média.

A questão não é ser contra ou a favor do combate. É quem deve ter na sociedade moderna a atribuição de combater e quem deve ter a função de julgar também os excessos e os erros dos combatentes!

É preciso perceber que uma coisa é ser a favor ou ser contra a corrupção, e outra coisa bem diferente é a veracidade de todas as acusações de corrupção e a correção de todas as sentenças condenatórias por corrupção.

Quem combate está apto a perceber a inocência? Quem combate algo está apto a ser imparcial e a reconhecer que este alguém pode não ter praticado o ato do qual é acusado? Ou perceber que deve ser punido, mas para aquém da pena máxima? Ou o desejo de vencer é sempre mais forte para quem guerreia? Será que o comprometimento pessoal com a causa é mais poderoso que qualquer senso de imparcialidade ou de reconhecimento de que a acusação pode ser um erro?

O Judiciário combatente – de braços dados com a acusação, em uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais e absorvendo todo o discurso moralista do senso comum – com livre troca de apoios e informações com as forças e com os tarefeiros das acusações é uma realidade.

E é um erro!

Erro maior ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo. Esta postura não mantém a nossa devida distância de movimentos teocráticos de outras plagas.

A ideia de Judiciário da Idade Moderna não se confunde com magistrado que implementa políticas públicas, que combate seja lá que ilícito for, ou que é protagonista de alguma parcela da moralidade. O ato de conclamar o senso comum e a mídia para o combate que o próprio juiz trava e também julga não é próprio da modernidade.

Não é função do Judiciário moderno.

É negar a função do juiz!

A prova maior disto é que não raro percebemos invasões de competência, interpretações retorcidas da lei, arbitrariedades na execução de decisões, personalismos em se tratando de réus específicos, desrespeito e incoformismo com decisões de instância superior, críticas pessoais ao próprio integrante do Judiciário que é discordante… Tudo isso é consequência da posição apaixonada que se revela quando o juiz deixa a sua função e se torna combatente. É a negativa do próprio conceito de magistrado que se oferece à sociedade.

O gosto pelo aplauso e pelo reconhecimento, tão naturais aos imperadores romanos – estes, sim, combatentes – agora invade o Judiciário e turva a sua imparcialidade, na medida em que evoca a atitude aceita e desejada pelo senso comum. Fácil explicar o desejo de palmas de um jogador; difícil ver no papel do magistrado sua necessidade.

A ideia de um Judiciário de combate é uma grande falácia!

Um equívoco histórico na medida em que nos afasta do papel do juiz e nos confunde com a acusação. Um erro que nos aproxima de um dos contendores, rompe nossa imparcialidade e nos leva de volta para a Idade Média.

Não ser general de tropas, parceiro da acusação ou tarefeiro do senso comum não implica concordar com o bandido. Isso implica tão somente entender que o papel constitucional do juiz precisa ser observado para que a sociedade se mantenha equilibrada e segura. O papel que legalmente nos cabe certamente não é conclamar as massas, declamar em redes sociais ou dirigir qualquer combate.

Se o juiz para além de jogador for um jogador agressivo, quem no estádio será capaz de respeitar o seu apito?

Buscando apoio no sempre sólido Aristóteles, falácia é um falso enunciado que simula uma verdade e nos impõe um equívoco e uma mentira.

A falácia do juiz combatente nos faz abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente, imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais. É um equívoco que bordeja o totalitarismo e o autoritarismo, que nos faz namorar com a ditadura da toga e mergulha a todos nós nos destinos morais de uma nova inquisição!