Edição 268
O Judiciário como sistema
8 de dezembro de 2022
Taís Schilling Ferraz Desembargadora Federal do TRF4 / Professora e Vice-Coordenadora Acadêmica do Mestrado da Enfam
A litigiosidade crescente, visualizada na intensidade de judicialização de conflitos e de recorribilidade, é um fenômeno complexo. Ninguém a produz de forma deliberada, nem deseja que persista.
Reúnam-se, porém, em um mesmo caldeirão, pessoas cada vez menos tolerantes às frustrações, que buscam alívio no Direito; profissionais formados para o litígio e não para o consenso; que se tornam economicamente dependentes da judicialização de conflitos; juízes que passam a acreditar que sabem a melhor solução para todos os casos; grandes empresas e Estado, que reagem à judicialização criando estruturas de defesa judicial ao invés de buscar soluções preventivas; metas de produtividade, a exigir solução rápida dos conflitos; atomização de litígios repetitivos; sistema recursal complexo; crescente expectativa de que os direitos sociais da Constituição se implementarão pela sua mera enunciação… e a litigiosidade estará operante.
Donella Meadows – uma das principais pesquisadoras da atualidade em matéria de pensamento sistêmico – alerta que “um dos aspectos mais frustrantes dos sistemas é que os propósitos das subunidades podem originar um comportamento geral que ninguém deseja”. Ao serem combinados esses propósitos, o resultado pode fugir ao controle.
O Judiciário é um sistema, definido como um conjunto interconectado de elementos, que está organizado de forma a atingir determinados propósitos. Políticas judiciárias, como a que cuida do tratamento adequado dos conflitos, da política de Justiça Restaurativa, das metas de produtividade, da Justiça 4.0, da gestão de precedentes, das audiências de custódia, entre muitas outras, estão voltadas a propósitos desafiadores e importantes.
Nem sempre, porém, esses propósitos estão alinhados entre si e com a razão de ser maior do que a própria existência do Judiciário: gerar harmonia social e promover a solução pacífica das controvérsias. Políticas judiciárias envolvem grande número de pessoas, instituições e outros subsistemas e, postas em execução, geram interações e efeitos muitas vezes não esperados, ou até contrários aos desejados.
Tendo como alvo o aumento da celeridade da prestação jurisdicional, a política de produtividade é um dos movimentos de maior alavancagem sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Um olhar para a série histórica da produtividade de magistrados e servidores revelará o incremento obtido, à custa de muito esforço, tecnologia e técnicas de gestão.
Paradoxalmente, porém, a cada ano é maior a litigiosidade, retratada nos índices de judicialização e recorribilidade. À exceção do ano de 2020, possivelmente em razão da pandemia, o número de novos casos no Judiciário tem sido crescente e os índices de recorribilidade de suas decisões, quando não aumentam entre as instâncias (recorribilidade externa), crescem horizontalmente (recorribilidade interna).
É possível que o aumento da litigiosidade seja decorrência da própria política de produtividade. Um dos primeiros backfires identificados foi a reação dos demais atores do sistema de Justiça, frente à execução da primeira versão da Meta 2, que consistia em julgar, até 31/12/2010, os processos ajuizados até 31/12/2005. Dar execução a essa meta envolvia articular interna e externamente o Judiciário, sendo que promotores, advogados, defensores públicos e peritos não haviam participado da sua construção e tinham seus próprios desafios. Houve vários efeitos não antevistos, que geraram litigiosidade: audiências adiadas ou inviabilizadas, porque advogados e promotores muitas vezes não tinham como estar em vários lugares ao mesmo tempo, ou porque não havia estrutura para escolta de réus presos; alegações de cerceamento de defesa; intensa recorribilidade, frente à produção apressada e em massa de sentenças; uso de estratégias defensivas variadas, entre outros resultados que ainda se fazem ativos.
Um outro exemplo pode ser encontrado quando se avalia a política de tratamento adequado de conflitos. Alinhada ao propósito maior do Poder Judiciário, esta é uma das mais importantes políticas judiciárias já construídas e lideradas pelo CNJ e talvez se possa afirmar que a quase totalidade dos magistrados e servidores assim a reconhece, bem como que todos aqueles que a executam, em maior ou menor medida, percebem seu potencial.
O que, então, dificulta que produza efeitos mais expressivos?
O problema é complexo e multicausal, no entanto, um dos fatores pode estar na interação com a política de produtividade. As metas exigem, por exemplo, que a cada ano sejam julgados mais processos do que o número de distribuídos; que seja reduzida a taxa de congestionamento; que sejam decididos com prioridade os processos mais antigos – invariavelmente aqueles cuja complexidade não permitiu que fossem prontamente julgados e que talvez sejam os menos tratáveis adequadamente por soluções adjudicadas.
Os valores que sustentam cada uma das políticas e os processos de trabalho envolvidos em uma e outra são substancialmente diferentes. O incentivo à conciliação e à mediação, ainda que hoje esteja nas leis processuais, concorre com os riscos decorrentes do não cumprimento das metas de produtividade, para o que a celeridade – e não necessariamente a pacificação social – parece ser o valor em si mesmo. Embora o tempo seja reconhecido como essencial para a construção de soluções consensuais, audiências deixam de ser agendadas sob os mais variados pretextos, de modo a não atrasar o cumprimento das metas. As que chegam a ocorrer, não raro, duram poucos e insuficientes minutos, nos quais não é possível sequer realizar a escuta ativa das partes ou adotar técnicas para o restabelecimento da comunicação entre os interessados. Há quem até hoje não aposte em conciliação e mediação, por entender que não eliminam o mesmo número de processos do que as decisões adjudicadas.
A política de tratamento adequado de conflitos parece ter duas cabeças, uma delas capturada pelo movimento eficientista, a outra, pela proposta de pacificação das relações sociais. A prova disso é que seus resultados são aferidos pelo número de sentenças homologatórias de acordo, quando seriam necessários indicadores de melhoria nas relações sociais, talvez a redução da judicialização.
Ao tratar de fenômenos complexos, é preciso adotar perspectiva sistêmica. A chave, segundo David Stroh, é cultivar a percepção de que a realidade atual é algo que os próprios participantes de um sistema criam, ao invés de algo que exista independentemente deles.
Por mais bem-intencionadas e criativas que sejam, as políticas judiciárias, com metodologias e objetivos diversos, precisam conversar, para que não tenham seus efeitos neutralizados ao serem conjuntamente executadas. O pensamento sistêmico, enquanto habilidade de compreender as estruturas de um sistema e mapear as interações de seus elementos, pode ser a estratégia para a reestruturação das políticas judiciárias atualmente em interação, de forma a favorecer o alcance dos propósitos desejados.