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O JUDICIÁRIO NÃO PODE SER COLOCADO EM POSIÇÃO DE SUBORDINAÇÃO

5 de fevereiro de 2004

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DISCURSO DO MINISTRO NILSON NAVES NA ABERTURA DA REUNIÃO PREPARATÓRIA DA VIII CÚPULA IBERO-AMERICANA DE PRESIDENTES DE CORTES SUPREMAS E SUPREMOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA

Entre as várias idéias que me propus realizar quando assumi a presidência, pratiquei, de modo intenso, a de levar a Justiça brasileira, em seus contornos e realizações, para fora das nossas fronteiras. Foi por isso que, bem convencido dessa tarefa, o Superior, tribunal, como se sabe, para onde converge a Justiça comum, a federal e a estadual, estreitou relações e estabeleceu outras, tão caras e tão irmãs, com países de língua portuguesa e com países ibero-americanos. Com estes, é certo, o Superior apanhou as reuniões de cúpula já em sua sétima versão, mas ainda chegou a tempo e a hora, contribuindo para a plantação de idéias e sua frutificação. Veja, senhor Presidente da República, que as incursões do Superior foram bem longe, e o Tribunal já se prepara para sediar a próxima reunião da Comunidade de Países e Territórios de Língua Portuguesa, em 2005, e se candidata aqui a sediar a próxima reunião de cúpula ibero-americana, em 2006. A par disso, o Superior está sendo admitido na Associação Internacional de Altas Jurisdições Administrativas e participará, no mês de abril, do congresso a ser realizado em Madri.

Assim, Brasília e o Superior Tribunal de Justiça acolhem, com satisfação, a IV Reunião Preparatória da VIII Cúpula Ibero-Americana de Presidentes de Cortes Supremas e Supremos Tribunais de Justiça e do IV Encontro Ibero-Americano de Conselhos da Magistratura. Como participantes recentes da Cúpula e do Encontro, o Superior Tribunal e o Conselho, que me cabe presidir, regozijam-se em dar calorosas boas-vindas às senhoras e senhores representantes e desejar-lhes proveitosos momentos.

A península ibérica e os países americanos aqui representados compartilham longa e íntima história. Essa mesma história, que registra, é verdade, momentos de lutas e desavenças, contribuiu sobremaneira para a formação de consciências e personalidades que, sem ser monoliticamente similares, constituem a sólida base do ideal de ibero-americanismo que todos comungamos: a criação de uma nova ordem através da agregação desses povos irmãos e da conjunção de seus esforços.

O Brasil, particularmente, por ocupar uma área descomunal e por ter fronteiras com quase todos os países sul-americanos, sente forte necessidade de cooperação, de integração. Para a felicidade de todos, a fase de desentendimentos terminou, e o século recém-findo testemunhou a participação do Brasil em ações conjuntas de grande importância, como a construção da hidrelétrica de Itaipu, a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica e a instituição do Mercosul.

Mesmo com os países centro-americanos, geograficamente mais distantes, compartilhamos, em parte mediante a herança jurídica que nos legaram Espanha e Portugal, a noção de ibero-americanismo. Iberos foram os primeiros conquistadores da Península, os quais geraram os filhos do latim, que somos, e o latim foi capaz de sustentar a cultura clássica romana, veiculando, dizem, o talento, entre outros, de Sêneca e Lucano.

Os países ibéricos absorveram e incorporaram em seus sistemas jurídicos os fundamentos do direito romano e do direito canônico. Foram fontes principais, por exemplo, a Lei das Sete Partidas, que pretendeu unificar o direito espanhol; já em Portugal, as Ordenações Afonsinas, em 1446, e as Filipinas, em 1603.

No Brasil, as Filipinas continuaram em vigência após a Independência: por pouco tempo, no que se refere ao Penal, pois editado em 1830 o Código Criminal do Império; por 28 anos, quanto ao Comercial, porque em 1850 entrou em vigor o novo Código. Contudo a completa substituição daquelas Ordenações por legislação aqui elaborada só veio a dar-se em 1º de janeiro de 1917, com a entrada em vigor do Código Civil.

A herança comum traz como decorrência natural a necessidade de mais e mais se unirem os Judiciários ibero-americanos em cúpulas, na busca do fortalecimento de seu diálogo e colaboração – colaboração e diálogo indispensáveis em face da conjuntura mundial, na qual, além da criminalidade organizada em âmbito internacional, testemunhamos formas criminosas de contestação e instâncias de emprego violento e desmedido do poderio militar. É evidente que tal realidade coloca em perigo os bens sem os quais não se pode conceber o Estado de direito: justiça, ética e direitos humanos, o que requer junção de forças.

Essa conjuntura mundial nos leva a crer que os povos anseiam por paz, liberdade e consecução de seus direitos. Pergunto: como saciar-lhes tamanha sede? Somente com a justiça, entendo. Contudo a justiça, garantia da ordem democrática, só pode assegurar-lhes esses bens por meio de um Judiciário forte e independente, rápido e eficaz, atuante e prestante – um Judiciário que, comungando os princípios do regime democrático, proteja os direitos dos cidadãos contra interferências indevidas.

Foi assim pensando que, quando da VII Cúpula, levando em consideração o intenso esforço de cooperação judicial da região ibero-americana, proclamamos, na Declaração de Cancún, que a distribuição da justiça é um direito fundamental dos indivíduos a fim de poderem resolver suas controvérsias de maneira ágil, efetiva e expedita e que os Judiciários da região devem esforçar-se para alcançar tão nobre desiderato.

Sem dúvida, os direitos e relações individuais dependem da justiça, porém justiça eficaz. Para concretizá-la, necessita o Judiciário, além de melhor estrutura, mais funcionalidade e recursos adequados, de convivência em real independência e harmonia com os demais Poderes. Esses pontos são a preocupação de todas as cortes e tribunais ibero-americanos – de toda a Magistratura.

É inegável que, para cumprir suas funções com a eficiência que a cidadania deseja e merece, o Judiciário precisa dispor de recursos humanos e materiais tão amplos quanto exige seu volume de trabalho. A propósito, a VI Cúpula, realizada nas Canárias, em 2001, aprovou declaração que pleiteava passassem as Constituições dos países representados a conter – se ainda não a contivessem – disposição pela qual ficaria reservada ao Poder Judiciário uma porcentagem mínima do orçamento geral do Estado. A proposta foi justificada pela necessidade de garantir a independência funcional e financeira desse Poder. Proposição idêntica resultou da mais recente reunião dos países e territórios de língua portuguesa, realizada em Macau.

A VII Cúpula aprovou resolução em que decidiu dar seqüência aos esforços iniciados pela anterior. A VIII Cúpula, estou certo, dará continuidade a tão ingente luta, já que uma das ramificações do tema principal deverá ser o financiamento da Justiça.

Na verdade, esse é um importante objetivo, pelo qual devemos continuar a batalhar; o clamor por recursos humanos e materiais suficientes não é demonstração de corporativismo, nem faz parte do jogo do poder. Se pedimos que os recursos que nos destinam sejam mais adequados às reais necessidades é porque os tribunais devem ser acessíveis a todos os que os procuram – e os que a eles recorrem desejam ver seus pleitos julgados com celeridade, sem tardança. Bem sabemos que justiça tardia quase equivale à denegação de justiça.

Sobrepõe-se a isso a independência do Judiciário. Como Poder da União (Estado/Nação, Nação/Estado) e como garante do Estado Democrático de Direito, não pode submeter-se a ingerências externas, as quais trazem em si vírus letal que inseriria atitudes e interesses políticos determinados a influenciar as decisões dos tribunais. Independência não existe pela metade: ou é, ou não é.

Entre nós, já foi estabelecido que os tribunais são órgãos da soberania nacional, que o Judiciário é soberano, tal como escreveu Campos Salles quando a República ganhava seus contornos constitucionais. Portugal é outro exemplo: sua atual Constituição estatui que os tribunais são órgãos da soberania. Portanto, se soberanos, certo é que somos, todos, independentes, submetidos apenas ao império da lei – soberania e independência que se dão em nome da sociedade, porquanto indispensáveis ao funcionamento das instituições republicanas e do modelo de tripartição de poderes. Como bem sabemos, é a independência da Magistratura que constitui a alma e o nervo da liberdade.

Grassa pelo Brasil discussão a respeito do controle do Judiciário, que tem tudo a ver com sua independência e com sua soberania. A criação de um conselho destinado a exercer tal controle tem-se revelado tema espinhoso e complexo, sobressaindo entre as questões polêmicas da reforma em andamento.

Quando, historicamente, pela primeira vez, se cogitou a criação de um órgão controlador do Judiciário, pensou-se em dar proteção à Magistratura. Sabe-se que o primeiro conselho foi instituído na França, em 1946 e reformado em 1958, com o objetivo de garantir a independência dos magistrados. Na Itália de hoje, já existe a pretensão de que o controle se faça por instituição composta apenas de magistrados.

Ao contrário dessa visão, surgiu nos últimos tempos, no Brasil a idéia de um controle externo do Judiciário, que, antes de conferir proteção à Magistratura, pressupõe castigá-la. O controle em si não é um mal; antes, é um bem. O mal é o chamado controle externo, pois bate de frente com o próprio texto constitucional. É assim que pensa o Superior Tribunal, tanto que sua proposta, que se encontra nas mãos dos parlamentares, limita a composição do Conselho Nacional de Justiça a sete membros para sua mais expedita funcionalidade, sendo um ministro do Supremo (presidente), um do Superior (corregedor), um do Superior do Trabalho e um do Superior Militar, além de dois desembargadores de Tribunal de Justiça e um juiz de Regional Federal.

O Judiciário não pode ser colocado em posição de subordinação a qualquer dos outros Poderes. Caso o fosse, ficaria exposto a influências políticas, o que, como sabemos, sucede nos regimes totalitários, em que o ditador não admite que o Legislativo e o Judiciário não lhe sejam submissos.

A propósito, os presidentes das Cortes Supremas e Tribunais Superiores de Justiça, reunidos em Cancún, condenaram os atos de perseguição e fustigação que atingiram algumas instituições judiciais de nações ibero-americanas, os quais constituíram um grave desprezo à independência do Judiciário e afetaram a ordem jurídico-constitucional.

O fortalecimento dos respectivos sistemas democráticos é preocupação comum a nossos países. Muitos deles só começaram a gozar da democracia, ou só voltaram a desfrutá-la, nos últimos trinta anos. Democracia, como sabemos, pressupõe um Judiciário independente.

Quando participei da Cúpula de Cancún, em 2002, impressionou-me o número de iniciativas emanadas das reuniões anteriores e das preparatórias. Torna-se evidente o cuidado e a inteligência com que se haviam identificado e estudado os temas então em debate. A declaração do conclave, dedicada ao tema Acesso à Justiça e efetividade da prestação jurisdicional, mostra como as questões que preocupam nossos Poderes Judiciários são idênticas para quase todos nós.

A resolução sobre Assistência jurídica e defensoria pública é, a meu ver, muito atual, pois o cidadão tem crescente consciência de seus direitos, inclusive do direito de acessar à Justiça, entretanto pode chocar-se com a barreira da ausência de recursos financeiros e assim ver limitada sua possibilidade de usufruir aqueles direitos.

No entanto a assistência jurídica integral e gratuita vem sendo alvo de atenções, entre nós, vejam, desde a Constituição de 1934. O Brasil incluiu, em sua atual Constituição, disposição segundo a qual a defensoria pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado. O Superior Tribunal de Justiça vem participando de políticas no sentido de dar a esse princípio eficácia plena e ampla validade e está pronto a participar de programas semelhantes encarregados da defensoria no âmbito ibero-americano, nos termos da Declaração de Cancún.

Embora ainda existam desafios no que concerne, de um lado, a evitar litígios e, de outro, a facilitar sua solução (sem dúvida, a verdadeira eficácia do acesso à justiça está não apenas na entrada; está, sobretudo, na saída dela), o certo é que, nessa moldura, os juizados especiais, aqui no Brasil, chegaram a tempo e a hora. Eram facultativos, como os de pequenas causas; tornaram-se obrigatórios e hoje estão espalhados em ambas as áreas – estadual e federal. Exemplo de desburocratização e de Justiça rápida, os juizados, na busca de melhor estrutura, o que implica a liberação de verbas, rogam a atenção de todos os agentes políticos. É imprescindível que a boa idéia vá em frente. Não podemos perder essa mosca azul!

A VIII Cúpula e o IV Encontro tem como tema “Justiça e Governabilidade Democrática”. As reuniões preparatórias anteriores identificaram três ramificações do tema dos vindouros Encontro e Cúpula: O financiamento da Justiça, O governo da Justiça e A dimensão internacional da Justiça. Com isso, voltamos à ação dos três Poderes e a sua interação dentro de um Estado Democrático de Direito.

Sem dúvida, é importante, repito, que um Judiciário, para gozar de verdadeira independência, fique dispensado de negociar ou compactuar com os outros Poderes e tenha seu financiamento, em nível adequado, garantido através de um mecanismo automático. A determinação de um percentual orçamentário, ao qual a Cúpula já fez referência anteriormente, continua a parecer-me solução realista e exeqüível.

A ampliação da independência do Judiciário é uma das ações essenciais e urgentes para fortalecer e consolidar o Estado Democrático de Direito e afastar uma crise de governabilidade, a qual também se manifesta pela falta de institucionalização de organizações e processos políticos, pelo colapso dos aparelhos administrativos e pela anulação da legitimidade das estruturas políticas e está relacionada com a transformação da ordem de um sistema social, limitando-o ou ampliando-o.

O grau de governabilidade de uma democracia vai depender da eficiência com que cada um dos Poderes se desincumbe de suas obrigações, respeitados os limites das respectivas competências. Não se pode, porém, permitir que a divisão do poder do governo leve a um extremo incompatível com um governo democrático eficaz, e é por isso que, nesse quadro, cabe ao Poder Judiciário, em determinadas ocasiões, a última palavra.

Quanto à dimensão internacional da justiça, gostaria de ressaltar a magnitude desse tema. A III Reunião Preparatória enviou-nos o projeto de criação da Rede Ibero-Americana de Cooperação Judiciária. Cúpulas passadas enfatizaram o problema da globalização e segurança jurídica, enquanto a II Reunião Preparatória criou um grupo de trabalho sobre “O Poder Judiciário e os tribunais supranacionais” e “A aplicação dos tratados internacionais”. Tudo é reflexo da crescente internacionalização em todos os setores da atividade humana, com a conseqüente necessidade de que a Justiça não se abstraia desse fenômeno.

Na esperança de que esta reunião preparatória dê os contornos finais aos temas que constarão da carta que assinaremos em El Salvador, quero, em nome desta presidência, em nome do Superior Tribunal de Justiça e, principalmente, em nome de todas as delegações, renovar meus cumprimentos ao Presidente da República Federativa do Brasil, ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, ao Presidente do Senado Federal, ao Presidente da Câmara dos Deputados e ao Procurador-Geral da República, bem como aos demais presentes.”