“O Judiciário não pode ser um museu de princípios”

10 de setembro de 2020

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Novo presidente do STF defende uso das novas tecnologias e da resolução consensual de conflitos para desafogar o Judiciário, além da realização de audiências públicas para aferir o “sentimento constitucional do povo”

Às vésperas de tomar posse como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – e assim assumir a chefia do Poder Judiciário e alcançar o ápice de uma brilhante carreira na magistratura – o Ministro Luiz Fux concedeu essa entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania.

Na conversa com o Presidente do Conselho Editorial, Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, e com o Editor-Executivo Tiago Salles, o Ministro Fux falou sobre os planos para lidar com o aumento de demandas judiciais em função da pandemia de covid-19, sobre a contribuição do Judiciário para a retomada da economia e sobre como pretende enfrentar os julgamentos polêmicos que estão na pauta do Supremo. 

Confira a íntegra da conversa em nosso canal no Youtube e abaixo a transcrição dos melhores momentos. 

Tiago Salles – Ministro, o senhor será responsável pela condução do Poder Judiciário brasileiro em um momento muito difícil da história do País e do mundo com a pandemia. Como o senhor se sente? Está animado para o desafio? Sente-se preparado? Qual deve ser a contribuição do Poder Judiciário nesse período?
Ministro Luiz Fux – Sou juiz de carreira e iniciei minha vida no interior do Estado do Rio de Janeiro, de sorte que é mensurável por qualquer um o grau da minha felicidade ao assumir a Presidência do Supremo Tribunal Federal, que é o órgão de cúpula do Poder Judiciário. A própria história revela que esse é um destino muito raro, por isso é que diuturnamente agradeço a Deus, porque sem ele não se consegue absolutamente nada, mas confesso que desde o meu primeiro ano na magistratura, pela minha dedicação à leitura jurídica, sempre almejei esse sonho. A maior capacidade do ser humano é transformar os sonhos em realidade. Busquei, sonhei, realizei e estou preparado para isso, com toda humildade.

O que se pode esperar do Poder Judiciário é uma postura de muita deferência às escolhas feitas pelo Governo nesse momento de pandemia. O Judiciário não tem exército, não tem tropas, não tem dinheiro. O Poder Judiciário há de ser deferente às políticas governamentais dentro da expectativa da reserva do possível e intervir minimamente, quando essas medidas de exceção forem tomadas, ciente de que elas devem sê-lo dentro de um Estado de Direito.

Por outro lado, o Supremo há de oferecer instrumentos para que o Brasil possa promover, diante de tanta dificuldade, o seu desenvolvimento econômico. Fazer com que se cuide da saúde da população, que foi abandonada por muitos anos, e hoje estamos, muito justamente, pagando a conta dessas pessoas desvalidas que viveram ao largo da sociedade – e, ao mesmo tempo, ouvir as instâncias majoritárias do Estado Democrático de Direito. Intervir apenas naquilo em que não perpassar o princípio da razoabilidade ou as regras da Constituição, o que será interpretado, sempre tendo em vista o momento e as consequências jurídicas das decisões, que devem ser compatíveis com o estágio vigente. 

O Judiciário deverá ter, então, acima de tudo aquilo que representava a grande virtude enunciada pela carta de Siete Partidas, ou seja, sensibilidade. Justiça não é algo que se aprende, é algo que se sente. Os documentos antigos diziam que os juízes devem ser homens sensíveis e saber Direito, se possível.

Tiago Salles – É motivo de orgulho para toda a magistratura e o Poder Judiciário, depois de 20 anos, um magistrado de carreira chegar à Presidência do Supremo Tribunal Federal. Hoje, são apenas dois ministros de carreira, o senhor e a Ministra Rosa Weber. O fato da maioria dos ministros ter chegado à Casa apenas a partir de indicações políticas pode criar uma proximidade indesejável entre os magistrados e o poder político?
Ministro Luiz Fux – Tem sempre uma indicação política na chegada aos tribunais superiores. Quando nada, nós precisamos ter uma força política que nos apresente aos mandatários da nação, que escolherão os ministros do Tribunal Superior. A tarefa é muito simples, apenas encaminhar nosso histórico de vida profissional, que é o nosso curriculum vitae. Quando possível, levamos pessoalmente o currículo ao dignitário que vai nos indicar, mas quando isso não é possível, e isso é histórico, temos que ter alguns políticos com acesso ao representante maior da nação para que ele possa nos conhecer através do histórico dos nossos antecedentes de vida profissional e científica. Mas a grande verdade, isso é muito importante e aceite em toda a doutrina, é que após a investidura no cargo a independência do magistrado é absolutamente olímpica. Depois da investidura, apaga-se tudo o quanto feito anteriormente. Até porque, no Brasil, só a influência política não leva ninguém a lugar nenhum. É preciso haver uma revelação de meritocracia e que se cumpram os requisitos profissionais de notório saber e de reputação ilibada. O ministro não chega ao Tribunal para fazer sua biografia, já tem a biografia feita. Deve procurar políticos que sejam homens de higidez ética e moral, que saibam que não há e nem pode haver nenhuma contrapartida.

Ministro Luis Felipe Salomão – O Ministro foi o primeiro colocado em todos os concursos que disputou, para promotor, para magistrado, para titular da UERJ, onde leciona, em todos eles. É impossível cogitar chegar a uma posição de ministro, seja do STJ ou do próprio Supremo, se não houver a meritocracia. Nesse ponto, como juiz de carreira que assume a chefia do Poder Judiciário, como pretende desenvolver a relação com os demais Poderes? Diante do aumento do protagonismo do Judiciário e das demandas que chegam ao Poder, como fazer para enfrentar esse novo momento agravado pela pandemia?
Ministro Luiz Fux – Essa pergunta dele é muito importante, porque nós assistimos realmente, em tempos recentes, esse protagonismo judicial, que no meu modo de ver trouxe grandes males ao Poder Judiciário. As relações entre os Poderes, conforme a própria Constituição diz, devem ser harmônicas, institucionais e litúrgicas. No Estado Democrático de Direito, a instância maior é o Parlamento, que pode muito, mas não pode tudo. Exatamente a ordem em que a Constituição coloca os Poderes dá bem a ideia da função do Poder Judiciário, o único que tem competência constitucional para rever os atos dos demais Poderes.

A postura desejável, em primeiro lugar, é a da deferência ao Poder Legislativo, porque o que sai da Casa Legislativa tem presunção de constitucionalidade. Entretanto, temos assistido ao fenômeno denominado judicialização da política, que não tem nenhuma vinculação com o Judiciário, porque o Judiciário só age quando é provocado. Quem tem provocado o Judiciário, conduzido o Judiciário a um protagonismo bem elevado, quase que transformando-o nesse Estado Democrático em uma instância hegemônica é a própria política. 

Não existe judicialização da política ex officio, a judicialização vem exatamente dos partidos políticos que provocam o Judiciário, tendo em vista que não chegam a um consenso. O ideal, uma postura desejável do Judiciário, é valer-se do que estabelece hoje a melhor doutrina constitucional como, por exemplo, a Professora Christine Bateup, segundo quem o Judiciário deve ter a virtude passiva de decidir não decidir quando aquela matéria não se encaixa na órbita da sua competência constitucional, naquelas matérias em que não tem expertise ou capacidade institucional, naquelas matérias em que uma decisão judicial pode acabar gerando um risco sistêmico muito grande. Hoje se preconiza essa humildade judicial, essa virtude passiva da Corte de saber que aquela matéria não compete a ela. 

Recordo que em certa feita o Parlamento indicou para a Comissão de Direitos Humanos um pastor homofóbico e os parlamentares entraram com um mandado de segurança – judicialização da política é isso – para tirar do cargo esse pastor, uma questão interna corporis do Parlamento. Perguntaram: “Ministro, o senhor vai tirar ele?”. Falei que não, “quem vai tirar ele é quem o colocou”, porque isso seria um exemplo inequívoco de intromissão do Poder Judiciário em questão interna do Poder Legislativo, o que viola frontalmente a cláusula de separação dos Poderes. Agora, imaginar que o STF não possa mexer em nada que sai do Executivo ou do Legislativo é também desconhecer a Constituição Federal, que impõe ao Judiciário, desde que provocado, um controle de constitucionalidade das regras jurídicas à luz da Constituição e também dos atos praticados pelo Poder Executivo. 

Minha postura será de deferência. Tenho absoluta convicção de que esse protagonismo judicial que foi imposto ao Judiciário, por provocação do próprio poder político, colocou o Poder Judiciário em uma situação muito difícil. O Judiciário deve velar pela cláusula de separação dos Poderes, não no sentido de não poder declarar inconstitucionalidade, mas de não intervir naquilo que escapa à sua capacidade institucional e à sua deferência. Não é a aplicação da regra non liquet, porque, por exemplo, o juiz quando diz que o autor não preenche as condições da ação, extingue o processo sem decidir o mérito, mas ele dá uma decisão. A mesma coisa é o STF, por exemplo, decidir que não tem expertise para decidir aquela questão, que aquela questão não é jurídica, mas eminentemente política do Poder Legislativo, e aí decidir devolver a questão, como fiz no caso do pastor. Extingui o mandado de segurança e disse que se o Parlamento não estivesse satisfeito, como aquele partido que provocara o Poder Judiciário, que modificasse a indicação.

Tiago Salles – Como presidente do CNJ e do Supremo, à frente de todo o Poder Judiciário, como o senhor imagina conter o provável aumento do número de demandas em razão da crise econômica? Será necessária a criação de novos mecanismos de filtro processual?
Ministro Luiz Fux – Hoje, o Brasil dispõe de alguns instrumentos fundamentais e que, paradoxalmente, deve haver uma judicialização, mas uma judicialização que chegue aos tribunais superiores, não aquela judicialização atomista, de uma causa só. O momento é de fixação de teses jurídicas pelos tribunais superiores. Sabemos, por exemplo, que esse momento de pandemia influiu sobremodo na vida econômica. O Ministro Luis Felipe Salomão tem um estudo publicado, se não me engano na Folha de São Paulo, no qual revela números alarmantes da recuperação judicial, porque a influência da pandemia na vida econômica do País certamente está levando empresas a uma situação difícil, pessoas que constituíram vínculos obrigacionais estão com dificuldade para cumprir as suas obrigações, de sorte que caberá aos tribunais superiores – na matéria infraconstitucional ao STJ e na matéria constitucional ao Supremo – fixar teses jurídicas que sejam obedecidas por todas as instâncias antecedentes. O que, evidentemente, vai ter efeito ultra partes e evitar essa judicialização excessiva. Por exemplo, temos uma lei de proteção ao comércio, uma lei de iniciativa comercial e um Código Civil que preveem as figuras da onerosidade excessiva, da possibilidade do devedor chegar para o credor e dizer “vamos negociar, porque não tenho condições de pagar esse valor”. Nós temos hoje a possibilidade, pelo Código Civil, de haver uma resilição do negócio e que o credor tenha condições de fazer um acordo. Então, é muito importante que as instâncias superiores fixem a regra de que os juízes podem promover a readequação econômico-financeira do contrato. Eles podem estabelecer, através da jurisprudência que há de ser obedecida por todas as instâncias antecedentes, teses jurídicas que, de duas uma: evitarão a judicialização ou conduzirão as partes à mesa de negociação. 

O Brasil dispõe hoje, por exemplo, de um instrumento fantástico que é a assunção de competência. Os tribunais podem avocar causas para fixar teses jurídicas e evitar que haja a judicialização, porque enquanto aquela assunção de competência está se desenvolvendo, os milhares de processos que versam sobre a mesma tese jurídica ficam suspensos. Nós temos o denominado IRDR, que é mais eficiente ainda do que os recursos repetitivos e as repercussões gerais, porque eles matam o processo no nascedouro. A jurisprudência fixada no incidente de resolução de demandas repetitivas, se aplicada a um, dois ou três processos-modelo, como na ideia germânica originária, será introjetada em todas as ações e os recursos que visem violar e infirmar essas teses serão considerados inadmissíveis. Como não cabem esses recursos, o processo que introjetar a tese terá – como promete a Constituição, como direito fundamental, e também o novo Código Civil – uma duração razoável, evitando a judicialização excessiva e dando à parte aquilo a que ela faz jus, no momento tempestivo em que se aguarde uma duração apenas razoável para se obter a resposta judicial. 

Ministro Luis Felipe Salomão – Vossa Excelência é um dos maiores conhecedores da Análise Econômica do Direito (AED). De que forma essa doutrina pode contribuir para a diminuição desse acervo? De que forma ela vem sendo aplicada no âmbito do Judiciário?
Ministro Luiz Fux – A Análise Econômica do Direito tem como escopo tornar o Direito mais eficiente (…) e sinaliza que o sistema processual deve, necessariamente, ter meios alternativos de solução judicial. Costumo fazer uma comparação dizendo que Eric Hobsbawm, no século passado, escreveu um dos melhores livros de história denominado “O breve Século XX – A era dos extremos”. Ocorreram duas guerras mundiais, houve a queda do Muro de Berlim, a derrocada do comunismo, os homens passaram da navegação dos mares para a navegação da Internet. Tenho certeza de que ele escreveria um segundo volume, porque o início do Século XXI já é uma nova era dos extremos, mas também é uma era da consensualidade. A AED prega que o sistema processual, para que seja respeitado e faça com que aquele país que o adote integre o ranking “Doing business”, do Banco Mundial, tenha em seu bojo meios alternativos de resolução judicial, porque a atividade judicante, em regra, é uma atividade que acaba resultando em vencedores e vencidos. Essa é a regra da aplicação do Direito, dar razão a quem tem em um prazo razoável. Essa é a definição da atuação do Judiciário através da jurisdição, a definição clássica, dar a cada um o que é seu. Entretanto, o momento agora é o momento do consenso, em que se inauguram, efetivamente, as promessas constitucionais.

Essa é a era da solidariedade e da consensualidade. A AED prega que nesses momentos os problemas devem ser resolvidos em uma mesa de conciliação. O nosso Código de Processo Civil e a nossa Constituição Federal estabelecem que o Estado deve tentar a conciliação até as últimas consequências, porque essa é uma forma de melhor solução dos litígios, que otimiza o relacionamento social e traz para as pessoas a sensação de justiça e de felicidade. 

Iniciei minha vida escrevendo sobre locação, processos e procedimentos. O locador que tem um bom locatário, que, por exemplo, paga hoje R$ 10 mil, ele certamente vai sentar com esse locatário, que é bom pagador, e vai aceitar diminuir o valor do aluguel para que ele possa continuar cumprindo o contrato, dentro das condições do locatário e do locador, porque há uma realidade que não podemos desconhecer. O Brasil ficou mais pobre, as pessoas ficaram mais pobres, mas, em contrapartida, os seres humanos se tornaram mais solidários. A AED trabalha com a psicologia hedônica e com a economia comportamental. Há até uma obra recente do Professor Jonathan Masur, de Harvard, “Happiness and the law”, justiça e felicidade. As pessoas hoje fazem seus acordos exatamente baseados na justiça e na felicidade.

Tiago Salles – Ministro, como é que o senhor vê a cobertura da imprensa sobre o Poder Judiciário. Lembro que em 2018, na última Copa do Mundo, o povo brasileiro conhecia mais os nomes dos ministros do Supremo do que os da Seleção brasileira que ia jogar aquele ano. Como o senhor vê essa aproximação entre o povo e o Poder Judiciário?
Ministro Luiz Fux – A regra hoje é a transparência. Cita-se com muita frequência, inclusive, um grande justice da Suprema Corte Americana, Louis Brandeis, que dizia que “o melhor desinfetante é a luz do sol”. Ou seja, quanto mais claro e transparente for o ambiente, melhor será o prestígio do Judiciário junto à sociedade brasileira. Nesse particular, a imprensa tem realizado um trabalho formidável, porque a imprensa procura ter um posicionamento correto, que é o posicionamento crítico. O homem público que não quer sofrer críticas não pode exercer a atividade que pretende. Temos que entender que jornalista não é amigo, nem inimigo, jornalista é jornalista, tem que cumprir o papel dele. Posso até confessar a você que em uma conversa com um jornalista que para mim é um dos maiores expoentes, que é Elio Gaspari, pude colher muitas informações extremamente eficientes para a melhora da imagem do Poder Judiciário. Obtive isso com a imprensa. Os setoristas procuram se aperfeiçoar com relação à matéria jurídica. O que é importante destacar é que se uma pessoa está respondendo a um inquérito e a imprensa divulga, ela não está divulgando nada que não seja verdadeiro. Se incomoda essa notícia, que a pessoa se livre desse inquérito por meio do devido processo legal. Há queixas contra a imprensa, de que ela publica tudo, mas ela tem que publicar tudo. A imprensa é o sol e o desinfetante. 

Por outro lado, estamos verificando o surgimento das fake news, viralizadas pelas redes sociais. A liberdade de expressão não é um valor absoluto. Hoje há uma postura crítica da própria imprensa quanto à má utilização da liberdade de expressão, que não pode ser instrumento do ódio, da falsidade, da violação da honra, imagem e reserva das pessoas. Todo mundo tem liberdade de pensamento, mas é vedado o anonimato. Li que os tártaros eram tão valentes que anotavam seus nomes nas suas flechas, para que os inimigos soubessem por quem eles tinham sido mortos. Hoje o anonimato é algo deplorável. É claro que não se está aqui e agora falando sobre o sigilo da fonte, mas o sigilo da fonte é servil ao instrumento de prestação de notícias que tenham interesse público e não sejam falsas. (…) 

Ministro Luis Felipe Salomão – Hoje nós temos plenário virtual, sessões por videoconferência, inteligência artificial já desenvolvida em alguns tribunais, temos ferramentas tecnológicas permeando toda a atividade dos juízes. Como Vossa Excelência verifica essa situação atual? Ela veio para ficar? Como enxerga o uso dessas ferramentas tecnológicas no futuro?
Ministro Luiz Fux – O Direito e o Judiciário não podem ser museus de princípios. O Direito e o aparelho judiciário devem acompanhar os novos instrumentos e a modernidade. A própria Análise Econômica do Direito é uma escola novíssima do pensamento jurídico que traz muita eficiência ao Direito. À semelhança dessas novas escolas  do pensamento jurídico, temos as novas tecnologias, que existem para dar uma resposta judicial rápida, cumprindo o devido processo legal e, ao mesmo tempo, saciando as pessoas que têm sede e fome de justiça de obterem uma resposta judicial em um prazo em que possam aguentar a expectativa dessa decisão. (…) Procuro explicar que a Justiça cria um método civilizado substitutivo da vingança privada. Então, se as pessoas têm que ir ao médico, têm que ir ao Judiciário também, mas há estudos bem evoluídos que demonstram que as pessoas sofrem quando são obrigadas a recorrer ao Judiciário. Essa tecnologia nova vai permitir que se diminua essa ansiedade da população quando ingressa em juízo. Primeiro porque vai permitir respostas rápidas, cumprindo todos os cânones da Constituição, o devido processo legal. Em segundo lugar, ela vem a ser um instrumento de eficiência em um momento tão difícil.

Observe Vossa Excelência que os ministros são homens mais maduros, todos estamos praticamente no grupo de risco, não poderíamos nos encontrar, mas através da videoconferência estamos realizando audiências, julgamentos, respeitando as regras sanitárias. Por meio da utilização desses instrumentos, o CNJ e o Supremo informaram que a produção judicial foi muito expressiva. Não deixamos de realizar uma sessão, não deixamos de examinar liminares importantíssimas, que versavam sobre os direitos fundamentais. Esse é um papel do qual o Supremo nunca vai abdicar, a tutela dos direitos fundamentais, e a tecnologia lhe está auxiliando muitíssimo.

O plenário virtual tem sido utilizado para casos que já estão segmentados no Supremo Tribunal Federal. Em segundos, o STF consegue, respeitado o devido processo legal, julgar centenas de processos que levariam dias e dias para serem apreciados. Hoje, essa duração razoável dos processo, que é um direito fundamental do cidadão, tem sido alcançada com o uso da tecnologia.

A inteligência artificial é algo que tem que ser aproveitado no sentido maximizado. Veja, Vossa Excelência, que se nós tivermos um algoritmo sobre a admissibilidade dos recursos, há uma comprovação de que em cinco segundos a inteligência artificial fará em relação a inadmissibilidade dos recursos o trabalho que é realizado por cem funcionários. Cem funcionários substituídos em cinco segundos pela inteligência artificial, e então poderíamos alocar esses funcionários exatamente nos gabinetes, para que os juízes tenham mais assessoramento e possam julgar mais rápido aqueles casos que não são passíveis de se submeterem à inteligência artificial.

Fiquei muito impressionado com a experiência do Direito comparado e encontrei, inclusive, algo que seria, no meu modo de ver, inaplicável ao sistema brasileiro. Porque o sistema brasileiro, como em regra é o sistema da civil law, é fundado na justiça e na moral, enquanto o sistema da commom law é fundado na justiça e na razão. Então, nós temos muito campo para a criação judicial e a humanização do Direito, enquanto eles são muito pragmáticos, não acreditam que uma causa seja tão diferente da outra que não mereça a mesma solução. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Suprema Corte chancelou a possibilidade de sentenças condenatórias penais via inteligência artificial, mediante o preenchimento de um questionário. Verificou que aquele algoritmo criado a partir do questionário acabava resultando em quase 90% dos acertos das sentenças condenatórias. Admitiu sentença condenatória por inteligência artificial, evidentemente mantendo a possibilidade de reapuração da juridicidade através do recurso. Veja, ao admitir sentenças condenatórias por sentença judicial, o próprio réu vai saber o seu destino rapidamente, ou condenação ou absolvição. 

A humanização do sistema em civil law não é só no Direito Civil, é um modo de pensar o Direito por meio da Justiça, que é algo que se sabe a contrário senso, ou seja, nós sabemos aquilo que não é justiça. Através da moral e pelos cânones da Constituição, da dignidade da pessoa humana, que ilumina o universo jurídico, o sistema brasileiro não vai admitir sentença condenatória com base na inteligência artificial. Nesse campo, é preciso a humanização, é preciso velar pela integridade moral, física e psicológica da pessoa sujeita a um julgamento, que deve ser o mais justo possível.

Tiago Salles – Quais serão os principais julgamentos que o Plenário do Supremo vai enfrentar ainda esse ano? Como o STF vai enfrentar causas polêmicas como descriminalização das drogas, aborto e desarmamento? O senhor acha que seria possível realizar audiências públicas? 

Luiz Fux – Bom, são duas respostas importantíssimas. A pauta do Supremo vai ser elaborada pelo presidente. O Ministro Toffoli elaborou a pauta até o dia 10 (de setembro) e do dia 10 em diante caberá a mim. O meu desejo é, em primeiro lugar, sentar com empresários e Governo para verificar quais são as melhores fórmulas para não levar nem o Governo, nem o País e nem o empresariado à bancarrota. Vamos verificar como é importante o balizamento das pautas econômicas. Por outro lado, vamos ter o desafio de debater as questões sobre as quais há um desacordo moral no parlamento. Não é segredo para ninguém que o Parlamento hoje é dividido entre pessoas que têm o credo evangélico e pessoas não-evangélicas, aí incluídas todas as outras crenças admitidas, ilimitadamente, pelo nosso Brasil, do judaísmo ao candomblé. Ocorre que, nesse momento, no meu modo de ver, o Judiciário deve ouvir a sociedade. Não é abdicar da sua autoridade de magistrado, não é fazer uma pesquisa de opinião pública para julgar A ou B. Isso é uma questão do Judiciário, dar uma resposta sobre razões públicas ou questões morais que estejam afinadas com o sentimento constitucional do povo, o que é muito diferente de opinião pública passageira. 

Ministro Luis Felipe Salomão – Presidente, minha última pergunta tem um traço pessoal. Acompanhei muito de perto e conheci bem o seu pai, que tinha muito orgulho do filho, na época juiz. Ele acompanhava todas as suas palestras, sentava na primeira fila, tive a oportunidade de sentar várias vezes ao seu lado e constatar esse orgulho, que é nosso. Hoje é um orgulho que perpassa toda a magistratura e, em especial, a magistratura do Rio. O que ele diria vendo o seu filho se tornar o primeiro judeu a assumir a Presidência do Supremo Tribunal Federal? Qual é a importância disso para o povo judeu e o que ele diria nesse momento para o Ministro Luiz Fux?
Ministro Luiz Fux – Ministro Luis Felipe Salomão, realizo um mergulho ao passado com essa bela lembrança. Ele realmente era aquele amigo da primeira fila, em qualquer palestra ele estava ali, e meus amigos o adoravam com aquela empolgação, porque ele foi exilado de guerra, sofreu a perseguição nazista, mas pôde realizar muitas coisas. Ele se formou na advocacia depois dos filhos crescidos e, de propósito, colocava o boletim ao lado da mesinha de cabeceira para que pudéssemos ver as notas que ele tirava na faculdade. Ele me ensinou alguns valores essenciais do judaísmo. O primeiro deles, que ele falava recorrentemente, é que no judaísmo você não tem a posse do seu corpo, mas tem a posse do seu nome e da sua honra. Ele dizia que um homem pode não ter propriedade, pode não ter riqueza nenhuma, mas deve ter sempre na sua vida um bom nome. Isso eu levei sempre com muito cuidado, a questão da honra e o perigo da desonra.

Por outro lado, a religião judaica é baseada em dois princípios: justiça e caridade. Esses dois princípios são os meus nortes na atuação no Judiciário. Tive vários exemplos concretos em que deixei falar a voz e o coração com um entendimento protetor de juridicidade. Recentemente, julguei uma causa em que 20 idosas de mais de 80, 90 anos reivindicavam manter uma pensão que era o seu sustento. Diante de alguns julgados frios, distantes daquele belíssimo humanismo do justice Oliver Holmes, eu disse “essas senhoras não vão causar nenhum problema ao Brasil”. É preciso que tenhamos o veio de proferir uma justiça caridosa e uma caridade que seja justa. É possível aplicar nesse caso concreto a proteção da confiança legítima. Elas só estavam pedindo para não perder o que juridicamente conseguiram. Como é que nós vamos fazer isso com uma senhora de 90 anos, 20 anos depois, deixá-la viver no limite da sobrevivência biológica? Essa minha ênfase, Ministro Luis Felipe Salomão, e essa minha vontade de fazer justiça vieram recheadas dos valores judaicos que aprendi desde a infância. Sou judeu de raiz, cumpri todas as liturgias do judaísmo, fiz todas as promessas que o judaísmo intuiu na minha carreira e na minha vida. Sempre declarei em todas as minhas manifestações, como promotor, como juiz, como desembargador, como ministro do STJ e como ministro do Supremo, em todas as minhas falas agradeci a Deus por ter nascido judeu, brasileiro e justo.