O Ministro Lupi tem razão

28 de fevereiro de 2008

Carlos Roberto Siqueira Castro Advogado

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Tem sido debatida na imprensa a questão da cumulação do cargo de Ministro do Trabalho e das funções de Presidente de Partido Político por parte do Ministro Carlos Lupi, em face da orientação em sentido proibitivo que a Comissão de Ética Pública vem divulgando com insistência. Registre-se que o Ministro não é acusado de qualquer prática de desvio ou improbidade de conduta no exercício do importante cargo que ocupa. Diz-se apenas, mediante pré-conceito de ordem exegética, que tal cumulação estaria a violar o princípio da moralidade administrativa e o marco legal da ética pública, centrado no art. 37 da Constituição Federal. Convém ilustrar, desde logo, que essa Comissão foi instituída pelo Decreto de 26.05.1999 (alterado pelo Decreto 6.029, de 1o.02.2007), cabendo-lhe, dentre outras atribuições, dar aplicação ao Código de Conduta da Alta Administração Federal, objeto do Decreto 4.081/02.
A questão não é nova e coleciona vários precedentes. Assim é, que o atual Senador Francisco Dornelles ocupou o mesmo cargo de Ministro do Trabalho ao tempo em que exercia a presidência do Partido Popular (PP). O então Ministro das Comunicações, Sérgio Motta, cumulou as funções ministeriais com a Secretaria-Geral do PSDB. De igual modo, parlamentares como Jorge Bornhausen, Ricardo Fiúza e o Senador Marco Maciel foram titulares de ministérios enquanto presidiam suas agremiações partidárias. A esse tempo já vigia o apontado Código de Ética da Administração Pública Federal, sem que fosse impediente à acumulação de funções hoje questionada. Assim, a convicção da inexistência de proibição legal acha-se corroborada pelos costumes. Como diria o gênio de Maquiavel, na “História Florentina”, “os costumes precisam de boas leis e as boas leis precisam dos costumes”. Trata-se de outros tempos – se dirá – ou de outra Comissão com outros membros, ou outras motivações, se preferir. Mas, vamos aos fatos e ao direito de regência.
Em primeiro lugar, inexiste qualquer proibição legal quanto à cumulação do cargo e das funções em apreço, a exemplo das que vigoram para os juízes, para os membros do Ministério Público e para os militares da ativa, por força dos arts. 95, III, 128, II, “c”, e 142, § 3o, V, da Constituição Federal, aos quais é interditada a filiação e a militância partidária a qualquer título. E bem se sabe que as restrições ao exercício de direitos individuais, para serem lícitas, hão de estar expressas na Constituição e nas leis. Quanto a estas, porém, apenas quando em face de inocorrência de reserva constitucional exauriente da matéria. Vale lembrar que a antiga Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei no 5.862/71), editada nos idos do regime autoritário, impusera a proibição ora cogitada (art. 26, I). Contudo, além de não ter sido recepcionada pela nova Constituição democrática, restou revogada pelo atual diploma partidário (Lei no 9.096/95). Por outro lado, o Código de Ética Pública (art. 8o) em categórico permite “à autoridade pública o exercício não remunerado de encargo de mandatário, desde que não implique a prática de atos de comércio ou quaisquer outros incompatíveis com o exercício do seu cargo ou função, nos termos da lei”. E não pode ignorar a Comissão de Ética Pública que as funções de dirigente partidário, ao menos no partido (PDT) ao qual se acha filiado o Ministro Carlos Lupi, são exercidas a título honorífico e sem qualquer remuneração. A par disso, o projeto de lei do Poder Executivo em tramitação no Congresso Nacional (PL 7.528/06), com o objetivo de definir outros atos e práticas que possam ser eticamente inconciliáveis com o exercício de cargo público, sequer cogita da incompatibilidade vislumbrada pela aludida Comissão. Cumpre advertir, por fim, que tal Comissão carece de competência normativa para editar restrições a direitos individuais, sejam eles públicos ou privados, tampouco para julgar quem quer que seja – o que de resto seria afrontoso às competências primárias do Poder Legislativo e do Judiciário. Ora, até o poder normativo das agências reguladoras, que são autarquias especiais instituídas por lei, se sujeita a limites e contestações. Tanto assim é que suas atribuições, aliás conferidas por simples decreto executivo, cingem-se hoje a “atuar como instância consultiva do Presidente da República e Ministros de Estado em matéria de ética pública, bem como a submeter ao Presidente da República medidas para seu aprimoramento”  (Decreto 6.029/07, art. 4o, I e II, “a”).
Cabe, então, indagar: com que autoridade a Comissão de Ética Pública editou e difundiu tão errôneo entendimento em questão sobremodo sensível e que por certo repercute na imagem e na honorabilidade do Ministro atingido? Com que critério hermenêutico, diante da ostensiva falta de respaldo legal para a ampliação do objeto e alcance de sua própria e minúscula competência, ousou descurar de princípios e regras constitucionais que sacramentam entre nós o pluralismo político, a liberdade de criação de partido político e autonomia dos mesmos para definir sua estrutura e funcionamento, a liberdade de filiação ao lado da obrigatoriedade de registro partidário de candidatura para a disputa dos mandatos eletivos, a fidelidade ao estatuto e programa dos partidos, a utilização dos recursos do fundo partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (arts. 1o, V, e 17 da CF)?  Os partidos políticos, conquanto no regime da Constituição de 1988 passassem a ostentar a natureza de instituição privada, são agentes de promoção do interesse público e veículos de expressão da soberania popular. Como placitou o Supremo Tribunal Federal, são “entidades revestidas de caráter insti-tucional, absolutamente indispensável à dinâmica do processo governamental, na medida em que concorrem para a formação da vontade política do povo” (ADIn 1.396-3/SC, Relator Ministro Celso de Mello). Nessa ótica, o conflito entre interesses público e privado, que caracteriza a ruptura da ética de governo, na hipótese aventada é nenhum.
Por isso, tanto no sistema parlamentarista quanto no presidencialista multipartidário, é comum a formação do gabinete de ministros ser recrutada no seio dos partidos que formam a base de apoio ao governo, inclusive em seus quadros de direção. Ninguém ignora que o PMDB detém a maior fatia de cargos de primeiro escalão no governo e os maiores orçamentos da República, como os Ministérios da Agricultura, Integração Nacional, Saúde, Comunicações, Minas e Energia e Defesa, que gastaram em 2007 a soma de R$ 84,6 bilhões. Por certo, esse processo de arregimentação de um arco de alianças para a sustentação congressual do governo não raro exibe os condenáveis vícios da vida política brasileira. Todos se lembram da melancólica afirmação do então Deputado Severino Cavalcanti, do PP: “Quero a Diretoria da Petrobras que fura poço”! Essas deformações corrigem-se com a educação cívica da cidadania e a efetivação rigorosa das leis moralizadoras e punitivas. Mas, o que é aqui relevante é a percepção inequívoca de que, ao estabelecer distinção arbitrária e criar restrição a direito em situação em que não o fez o legislador habilitado, o ato da Comissão de Ética Pública apresenta-se abusivo e ilegal, além de infringente do princípio da razoabilidade e destoante das basilares regras de interpretação sistemática da Constituição e das leis. O que mais surpreende em todo o episódio é que a indigitada Comissão fez editar, primeiramente, a Resolução Interpretativa no 7/2002, destinada a regular a participação de autoridades públicas em atividades político-eleitorais, a fim de permitir que essas pudessem participar, na condição de cidadão-eleitor, de eventos de natureza político-eleitoral, convenções e reuniões de partidos políticos, comícios e manifestações públicas. Abstraindo-se, por ora, a questão preliminar sobre se uma Comissão inorgânica criada por decreto executivo poderia editar regras jurídicas de tal teor e inovar o sistema normativo, é certo que, naquela oportunidade, nada aduziu (nem poderia!) quanto à restrição somente anos após perpetrada. Eis que apenas em 25.06.2007, portanto com constrangedores efeitos retroativos (uma vez que o Ministro Lupi já havia sido nomeado em 26.03.2007), a Comissão resolveu ditar orientação para fins de interpretar (ou reinterpretar) sua resolução de quatro anos antes, com o inopinado e casuístico entendimento de que o exercício do cargo de Ministro de Estado cumulado com a função de dirigente partidário estaria a ferir o Código de Ética Pública. A intemperança é notória. Chega-se a pensar, com Shakespeare, em “Hamlet”, que “há muita coisa mais no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Se houver, voltarei ao assunto. De todo modo, é assinalável que o comportamento incongruente da Comissão já merece reações de porte, como o pronunciamento do Senador Francisco Dornelles na tribuna do Senado, em 30.11.07, e a recente nota oficial das Executivas Nacionais do PSB, PRB, PC do B, PMN e PDT.