Edição 272
O ‘nunca mais’ brasileiro
5 de abril de 2023
Integrante da Comissão de Direito Constitucional do IAB / Presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania

No início deste ano tive a grata surpresa e a honra de ser convidada pelo ministro de Estado dos Direitos Humanos e Cidadania para presidir a Comissão de Anistia. Este é um trabalho voluntário, assim como o de todos os demais integrantes do Conselho da Comissão de Anistia. É a primeira vez que uma mulher ocupa a presidência da Comissão nos seus pouco mais de 20 anos de história. Já havia tido a oportunidade de ser conselheira, entre os anos de 2009 e 2018.
A Comissão de Anistia é uma comissão de Estado, incumbida da missão constitucional de promover o Programa de Reparações do Estado brasileiro. Embora muitas pessoas acreditem que aqui se cuida de reparações econômicas, vale sublinhar que este programa se refere à reparação integral, ou seja, sob a perspectiva do que se convencionou chamar de “justiça de transição”. Permitam-me esmiuçar um pouco mais o tema. A justiça de transição é um conjunto de ferramentas, ou dimensões, destinadas a promover a reconciliação nacional após um período de conflitos internos, sejam eles motivados por guerras ou ditaduras. No caso brasileiro, aplicamos a justiça de transição para fazer a transição do Estado de exceção que se instalou em 1964, com o golpe de Estado, para a democracia.
São quatro essas dimensões: o binômio memória/verdade; a reparação integral; a responsabilização, inclusive penal; e a reforma das instituições. A Constituição Federal determina o processo transicional no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Já tive oportunidade de desenvolver com mais profundidade este tema em um livro digital denominado “A transição brasileira: 1979-2021”.
É importante ressaltar que a anistia política de 1979, que inicia a abertura democrática, é uma anistia de memória e não de esquecimento. Também no citado livro eletrônico demonstrei este conceito e suas implicações. Numa síntese muito apertada, a memória à qual me refiro aqui é a memória coletiva, e nunca individual. E a memória coletiva está sempre em disputa, é construída e reconstruída, a partir do presente para o passado, e é subjetiva. A verdade, diferentemente, é objetiva.
A reparação integral inclui efeitos econômicos. A regulamentação do art. 8º do ADCT veio com a Lei nº 10.559/2002, que acabou por instituir uma nova e mais ampla anistia, conforme o Parecer AGU/JD-1/2003, aprovado pelo presidente da República em 21 de outubro de 2003, tornando-o vinculante para toda a Administração Pública Federal. De acordo com os dispositivos da Lei nº 10.559/2002, no campo da reparação financeira, duas são as possibilidades: a reparação econômica em uma única prestação, com cálculo previsto na própria lei equivalente a 30 salários mínimos por ano ou fração de perseguição política, limitada tal prestação única ao teto de R$ 100 mil; e a reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada, nas hipóteses de perda de atividade laboral.
Além destes dois tipos de reparação econômica, a Lei nº 10.559/2002 ainda prevê expressamente a possibilidade de reingresso em curso que tenha sido interrompido em razão da perseguição política (art. 1º, IV), em instituição pública no local onde o anistiando estiver residindo quando da decisão da Comissão de Anistia, além de deixar em aberto a possibilidade de outras formas de reparação, tais como mudanças de registro público e outras ações.
A política constitucional transicional do Estado Federal implica, de maneira mais importante e para além das verbas que as pessoas venham a receber, a assunção do erro do Estado brasileiro por ter perseguido seus próprios cidadãos por suas opiniões e posicionamentos políticos. É o “Nunca mais!”. É a memória dos fatos. Complementando cada declaração de anistiado político, a Comissão de Anistia procedia ao pedido oficial de desculpas do Estado brasileiro pelas perseguições infligidas àquela pessoa e seus familiares. Destaco que esse pedido não era apenas dirigido àquela pessoa ou família; dirigia-se a toda a sociedade brasileira. Era uma verdadeira garantia para a sociedade brasileira que naquele momento se constituía: que nunca mais o Estado perseguirá seus cidadãos.
Não é por outra razão que sempre esse momento é o mais solene das sessões da Comissão, e o mais comovente. O pedido de desculpas deixou de ser feito alguns anos atrás, mas terei a enorme honra de voltar a fazê-lo na primeira oportunidade que a Comissão deferir uma declaração de anistiado político. Faz parte da reparação e faz parte do processo de reconciliação nacional, porque é parte do cumprimento da política transicional consagrada na Constituição, uma política de Estado. Significa uma garantia de não repetição.
A reforma das instituições é uma dimensão que preconiza a democratização das instituições. O Brasil ainda precisa avançar muito nesta ferramenta, pois ainda temos várias instituições autoritárias entre nós.
A responsabilização, por fim, é um tema bastante polêmico. Houve progressos nas esferas civil e administrativa; entretanto, no campo penal não tivemos nenhum avanço. No livro digital que citei anteriormente, desenvolvo os argumentos no sentido de que não há nenhum obstáculo para que se implemente a responsabilização penal no Brasil, ao contrário, este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal e também da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que são convergentes nessa direção.
Voltando à Comissão de Anistia, como afirmado, ela é uma comissão de Estado. Três foram as comissões de Estado criadas para efetivar a justiça de transição a partir da Constituição Federal: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Lei nº 9.140/1995); a Comissão de Anistia (Lei nº 10.559/2002) e a Comissão Nacional da Verdade (Lei nº 12.528/2011). Desde que fui nomeada para presidir a Comissão de Anistia, tenho dito que a tarefa da Comissão se relaciona intrinsecamente com a construção da nossa democracia e com a reconciliação nacional.
Isto porque vivemos tempos de profundo esgarçamento das relações sociais, familiares e até mesmo afetivas. Alguns anos atrás, ingenuamente, imaginávamos que poderíamos não avançar nas pautas democráticas, mas jamais teríamos retrocessos civilizatórios, porque os traumas de viver mais de 20 anos sob uma ditadura e a superação de ter elaborado uma Constituição cidadã nos havia imunizado. Os discursos de ódio e as cizânias nas famílias demonstraram que não existe essa imunização. Aprendemos da pior maneira possível que não efetivar todas as ferramentas da justiça de transição significa colocar em risco a própria integridade da sociedade brasileira.
O que desejo enfatizar é a necessidade que temos de concluir a nossa justiça de transição. Em todas as suas dimensões, e de maneira completa, pois, caso contrário, não conseguiremos alcançar a tão sonhada reconciliação nacional, e ainda estaremos colocando as nossas relações democráticas em grave risco. Os atos bárbaros do dia 8 de janeiro deste ano demonstraram isso. Quando não enfrentamos nosso passado de violência, ou seja, quando tentamos fazer de conta que nada aconteceu ou que não podemos falar sobre os fatos porque precisamos esquecê-los e seguir em frente, acabamos por recalcar essa violência. E o recalque funciona como uma bola de plástico numa piscina: tentar escondê-la embaixo d’água será possível por um tempo, mas de repente a bola escapará do nosso controle e emergirá com muita violência, quase como uma explosão. Isso acontece porque o recalque não opera apenas com as vítimas diretas da ditadura, mas toda a sociedade é recalcada, e por isso a violência explode aparentemente de maneira incompreensível.
No que concerne à Comissão de Anistia, tivemos um período recente de desmonte e de negação: desmonte das políticas públicas de Estado do programa constitucional de reparação e negação do golpe de Estado ocorrido em 1964; negação da perseguição política perpetrada pelo Estado brasileiro, e negação dos direitos das vítimas ao apresentarem seus requerimentos à Comissão. Neste último caso, com a crueldade adicional de atribuir às vítimas a culpa pela perseguição sofrida no passado, numa verdadeira revitimização.
Esses retrocessos estão sendo agora corrigidos. Estamos reconstruindo a Comissão de Anistia como uma comissão de Estado. Em breve retomaremos as sessões de apreciação de requerimentos e poderemos rever todos os pedidos que foram ilegalmente negados.
Estou muito esperançosa de que conseguiremos afirmar o nosso “Nunca mais!”. É imprescindível cumprir a lei, vale dizer, cumprir o mandamento constitucional e realizar de maneira completa a justiça de transição, para alcançarmos a reconciliação nacional.
Atos de exceção, nunca mais! Barbárie, nunca mais! Tortura, nunca mais! Ditadura nunca mais!
Nota_______________________
1 Disponível em https://justicadetransicao.org/wp-content/uploads/2022/02/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021-1.pdf