O olhar da vivência cidadã

12 de março de 2024

Da Redação

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Recém-empossada Ministra do TSE, Vera Lúcia Santana conta sua trajetória de vida e comenta sobre a preparação das eleições municipais

Tomou posse em fevereiro de 2024 a Ministra Substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Vera Lúcia Santana Araújo, segunda mulher negra da história a ocupar uma cadeira na Corte Eleitoral – a primeira foi a Ministra Edilene Lôbo, no ano passado. Recém-chegada ao TSE, Vera Lúcia assume uma das vagas destinadas à classe dos juristas por um biênio. 

Vinda de uma cidade pequena no interior da Bahia, Livramento de Nossa Senhora, a Ministra é filha de uma professora de Língua Portuguesa e um garimpeiro. Morou na capital baiana por dois anos, chegando em Brasília em 1978, onde concluiu sua formação em Direito pelo UniCEUB. Foi neste período que participou de movimento estudantil e estagiou na Defensoria Pública. “Especialmente para quem estuda Direito, [o movimento estudantil] é uma grande escola para desenvolver o debate de ideias, de um projeto político”, afirma a Ministra, que participou de movimentos em prol de redução do valor das mensalidades na universidade. 

Questionada sobre o momento em que se viu dentro do ambiente eleitoral, a Magistrada relembra do período da ditadura militar. À época, Vera Lúcia levantou bandeira de defesa do exercício da cidadania, tendo sido militante por eleições diretas e por Democracia efetiva. “Dentro do meu tempo cronológico, participei ativamente de todos esses processos. Eu não via pela televisão, corri da polícia muitas vezes pela Esplanada [dos Ministérios], fazia parte”, comenta. A primeira vez que exerceu o voto foi em 1986, momento intenso de movimentação política diante da Assembleia Nacional Constituinte.

“Não tenho a menor sombra de dúvida de que, para além dos conhecimentos teóricos, minha vivência auxilia muito no debate, na reflexão, na formulação de proposta e de resolução. Não trago um saber apenas teórico, trago também o olhar de uma vivência cidadã muito intensa”, afirma a Ministra, que defende o reconhecimento da importância do Estado Democrático de Direito, da eleição, do voto e da liberdade de votar. A soberania popular do voto, segundo ela, deve ser exercida sem qualquer espécie de pressão. 

Ao longo de sua trajetória, Vera Lúcia atuou no Conselho Penitenciário do Distrito Federal e na Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Também já exerceu os cargos de Diretora da Fundação Cultural Palmares (FCP), Diretora-Presidente da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do Distrito Federal (Funap) e de Secretária-Adjunta de Políticas para a Igualdade Racial do Distrito Federal. Além disso, compôs o Conselho Econômico e Social da Presidência da República. Nesta entrevista franca à Revista JC, a Ministra conta um pouco da sua atuação na vida política e comenta sobre a preparação das eleições municipais deste ano. Confira a entrevista a seguir:

Revista Justiça & Cidadania – O que a senhora destaca de sua atuação até a chegada  ao Tribunal da Democracia, o TSE?
Ministra Vera Lúcia – O Eleitoral entrou na minha vida junto com o meu primeiro voto, para a Assembleia Nacional Constituinte, que foi a primeira eleição aqui no Distrito Federal. A partir da Constituição é que Brasília teve a sua representação política reconhecida, então naquela eleição de 86, que era em verdade meu primeiro voto, já atuei como advogada eleitoral. Tive uma vivência intensa de construção do próprio Tribunal Regional Eleitoral, na qualidade de advogada, mas, por várias eleições, eu fazia o ciclo completo, desde a orientação de fiscais e delegados até a parte processual. Nunca fiz panfleto em forma de petição e sempre trabalhei com profundo respeito à Justiça Eleitoral e tive uma postura muito institucional.

JC – A senhora já começa no TSE com a missão de participar da organização e coordenação das eleições municipais. Quais são os principais desafios já mapeados para este ano?
VL – É pacífico que a grande demanda e o grande desafio é saber como fazer da tecnologia, da inteligência artificial e de todas essas conquistas da ciência, um instrumental da Democracia e não o contrário. A sociedade não se regulou para isso, o Estado brasileiro não se regulou para isso, o Poder Legislativo, dentro do processo regular, não laborou para isso. 

Como é que a gente vai operacionalizar e lidar com um saber tecnológico que nem sempre é utilizado em defesa do Estado Democrático de Direito? O balizamento de como se dará a fiscalização é desafiador para a Justiça Eleitoral brasileira.

JC – Em sua opinião, quais são as mudanças legislativas necessárias nesta área? Uma lei específica poderia resolver o problema das fake news, por exemplo? O problema atual se dá por falta de lei?
VL – O Brasil é um país cuja história é muito marcada pelo autoritarismo. É um país que se fez sobre a escravização por quase 400 anos. A sociedade brasileira precisa deixar de ser autoritária por sua vontade coletiva. Hoje, há um ambiente político em que essa vertente autoritária da sociedade está muito aflorada. Quando há essa vocação e há um instrumental, sem nenhuma regulação a partir do poder próprio e fundamental, que é o Poder Legislativo, naturalmente o território fica como uma areia movediça, às vezes muito pantanoso. Ao mesmo tempo, também temos uma cultura muito positivista, ou seja, a gente gosta do Código, da lei, de forma que a ausência de uma norma para isso não auxilia. 

Importante frisar, no entanto, que o Brasil tem uma estrutura de Poder Judiciário eleitoral extremamente bem consolidada. O Tribunal Superior Eleitoral conta com magistrados altamente experimentados. A Presidência do TSE para o período do processo eleitoral em si será da Ministra Cármen Lúcia, que já presidiu esse mesmo tribunal em outras eleições municipais. Seguramente que essa experiência que ela traz oferece à Democracia brasileira um nível também qualificado de segurança na condução da Corte. Sou muito confiante, mas acredito que a autorregulação seria o ideal. Ou seja, a civilidade construída pela própria cultura do povo de não fazer nenhum desvio ou abuso. 

JC – Nos últimos anos, o TSE também destacou a preocupação com os discursos fraudulentos. Qual é o limite de atuação da Justiça Eleitoral em tema de liberdade de expressão para não esbarrar em censura, por exemplo?
VL – Só tem um caminho: a Constituição da República Federativa do Brasil. Não tem bifurcação, são os princípios fundantes e os pilares do Estado Democrático de Direito. Fora desses princípios, [quando se] atenta contra o Estado Democrático de Direito, não é liberdade de expressão. Atenta contra a dignidade humana, princípio fundante da República, não é liberdade de expressão. A régua e o compasso a Carta Constitucional nos dá. O manejo caso a caso e a sabedoria dos nossos Magistrados e Magistradas que também vão nos orientar.

Cada cidadão e cidadã é um fiscal, no sentido mais pleno e parceiro dessa relação Estado-sociedade, cada um tem o direito e o dever de denunciar, de não fazer circular uma falsa notícia. Temos espaço para fazer crescer esse trabalho mais pedagógico, no sentido de uma cultura democrática, de respeito à dignidade humana, de não veiculação do discurso de ódio, de proclamação das igualdades, de respeito às diversidades. É o momento dos partidos políticos assumirem suas responsabilidades com a promoção dessas campanhas civilizatórias.

JC – Como melhorar daqui para frente com relação às fraudes de gênero que impactam diretamente na representatividade das mulheres na política?
VL – O descumprimento à cota da representação feminina e a questão do financiamento, que também tem uma ação afirmativa para a inclusão racial, são tarefas desafiadoras. Essa é uma questão muito mais da sociedade e dos partidos políticos do que do próprio Estado. De forma muito correta a Constituição assegura a autonomia da organização partidária. A grande arma de fiscalização é a denúncia e, fundamentalmente, o não votar. Ou seja, o não votar em partido que põe a mulher de candidatura laranja. A Justiça Eleitoral tem papel de contributo nessa esfera.

JC –  Como é possível enfrentar o “teto de vidro” que impede a ascensão de Magistradas mulheres? E com relação à magistratura negra?
VL – Não há teto de vidro. Não há nem piso para negros dentro das carreiras jurídicas, a pessoa negra não tem acesso. O teto de vidro existe para a mulher branca. Para nós, juristas negras, é tudo por fazer e por acontecer. Eu insisto que a Ordem dos Advogados do Brasil e a advocacia brasileira tem grande responsabilidade com esse processo [nas indicações em listas].

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