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O país do “faz de conta”

31 de janeiro de 2008

Sérgio Couto Advogado

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Entre seus magníficos juízes, o Brasil tem um cujas manifestações – corajosas e polêmicas – vez por outra atraem as atenções da sociedade. Refiro-me ao Ministro Marco Aurélio, do STF, que tem dito que o Brasil “é o país do faz de conta”. Há um Brasil real e há um Brasil fantasioso. A tirada do insigne Ministro vem a pelo quando se examina o Brasil legal.
A obediência às leis é canônica. Dobrar-se perante a Lei é questão impositiva e isso é dever maior quando se trata dos agentes do Poder Público, porque estes cuidam (ou deveriam cuidar) da res, que pertence a todos e que deve ser objeto de zelo e honestidade.
Os agentes públicos vinculam-se, nesse dever, à ação por delegação. Na vida prática, por exemplo, se o filho menor subtrai o carro do pai e causa dano à terceiro, a autoridade paterna deverá arcar com a responsabilidade civil ou penal; se o médico contratado por hospital age com desleixo ou imperícia, o paciente tem ação contra o hospital ou contra o médico, solidariamente. É o pai que dorme enquanto o filho menor sai a matar com a terrível arma que lhe foi subtraída.  São casos típicos de delegação implícita ou explícita,  e o rol é inesgotável.
No entanto, a mais cabal responsabilidade por delegação, é cometida aos chefes de governo, porque representam, por mandato de confiança, a incumbência de administrar os superiores interesses da nacionalidade com dedicação e amor à causa pública. Investidos de igual poder, o governante escolhe e nomeia seus assessores ou comissionados que, em verdade, são emanações de sua própria autoridade.
Se os delegatários pisam na bola, prevaricam, furtam ou simplesmente locupletam-se pessoalmente às custas de obras e compras superfaturadas, atos que comprometem a moralidade pública, quem responderá por isso deve ser o comitente, isto é, quem, arvorado em poder de chefia, delega a quem falseia sua confiança e comete crime contra a probidade pública. A ação regressiva… ora, deixa pra lá!
Mas no Brasil “do faz de conta”, todos fechamos os olhos ante a irresponsabilidade dos governantes, que assumem a aura de “coitadinhos” ou de vítimas porque de nada sabiam, nada ouviram, nada viram. Coitados, foram ludibriados em sua boa-fé, e fica por isso mesmo. E a delegação do Poder acaba nesse instante.
Nada importa que as falcatruas hajam sido perpetradas na tênue cortina que separa a sede do poder de sua ante-sala e muito menos importa quem escolheu o tesoureiro ou o chefe de gabinete civil. E eis garantida a incolumidade do santarrão, olhos desviados no instante preciso em que o dinheiro troca de bolso!
Nada importa, ainda, o clássico conceito segundo o qual  “delegação” é atribuição que se dá a alguém para agir em nome de outrem, quer em caráter particular, como vimos, quer como representante quando se cuida de mandato. Neste segmento ocorre a delegação de competência, medida de descentralização administrativa que tem por objetivo transferir a uma autoridade delegada a competência para a execução de atribuições específicas (Plácido e Silva, in “Vocabulário Jurídico”, atualiz. Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho). A autoridade que agiu omissivamente, cuja conduta se compara à intenção ou comissão (art.37, § 6, CF), pecou na indicação errônea e tem responsabilidade objetiva, pois assume as conseqüências.
Mas isso, leitores, “no país do faz de conta”. No Brasil verdadeiro, manda quem pode e obedece quem precisa. O regime é imperial, herança de antanho, ou seja, tudo como dantes no quartel de Abrantes.
Alguns outros importantes aspectos pontuais merecem  ser salientados:
Promulgada em meio a fanfarras, a Carta de 1988 trouxe auras de modernidade e criou normas que inflaram de orgulho o peito dos brasileiros de boa-fé. No papel, asseguradas garantias próprias de cidadão primeiro-mundista. Na prática, um amontoado de boas intenções inviáveis objetivamente.
E o que temos hoje? Um Estado pantagruélico, insaciável, voraz, que exige de seu cidadão carga tributária inédita e fantástica. Há quem diga que trabalhamos seis meses ao ano só para pagar o Fisco famélico. E o que a máquina estatal devolve aos cidadãos?
Saúde? A saúde pública, “quase às portas da perfeição”, como a qualificou o inefável dircurseiro que ocupa a Presi-dência da República, é a eterna órfã. Sucateada, hospitais sujos, filas enormes, gente morrendo à míngua de assistência. Quem quer algo melhor tem que pagar um Plano privado, que nem sempre funciona bem.  Logo, saúde não há.
Educação? O sistema educacional implantado no pós-64 é brutalizador e alfabetiza mal as pessoas. Forma, num mecanismo perverso, seres incultos. Isso sem falar na proliferação indiscriminada de  cursos superiores particulares, que são verdadeiros caça-níqueis. Ensino superior público ? Vai mal, obrigado.
Transporte? Se o cidadão quer estradas, tem que pagar pedágio. Aquelas mantidas pela União , Estados ou Municípios, são intransitáveis. As ferrovias foram eliminadas por uma política estatal que prioriza a indústria automobilistica. O transporte aéreo? Precisa falar sobre Anacs, Infraeros e outros cabides de emprego inteiramente inúteis que geraram o caos aéreo devido tão-somente à incúria governamental? E os agentes do Poder Público causadores de acidentes fatais, certamente por omissão ou negligência, estão respondendo a alguma ação penal?
Segurança? O leitor acaso sabe o que é isso? Recentemente, uma grande parte do efetivo de um batalhão da Polícia Militar do Rio foi posto sob chave. porque participava do crime organizado. Não dá nem para clamar pela polícia, porque pode aparecer mais um bandido. E os policiais honestos, felizmente a maioria, não dispõem de armas, transporte, salários decentes,  ficando a mercê da criminalidade violenta, muito mais preparada.
Enfim, são uns pobres coitados que andam sobre o fio de uma navalha, no sério dilema de enfrentar a cada jornada um combate pela própria sobrevivência. E, quando escapamos ao fim de cada dia do assaltante de plantão, não há como evitar o saque organizado que é o assalto diário ao erário público, praticado por políticos e administradores que vivem da propina e dos contratos superfaturados.
Força concluir, então, que a única retribuição pelos nossos tributos é a certeza de que pagamos uma nomenklatura burocrática que se organiza para saquear o país, como os jornais não se cansam de noticiar.
Enquanto isso, só no centro do Rio, a população de rua cresce 12,4%. Velhos, crianças, mulheres, que não têm para onde ir e que à sombra das marquises dormem e fazem suas necessidades fisiológicas. A Constituição só existe para lembrar os deveres do cidadão e as prerrogativas dos que violam a Lei.
Quem, valendo-se dos direitos constitucionais, recorre ao Judiciário, esbarra, por vezes,  nas  impossibilidades de responsabilização do Poder Público. Quem, por exemplo, morre na rua nas mãos de um criminoso ou de balas perdidas  não espera que o Judiciário atribua ao Poder Público a obrigação de indenizar sempre pela falta de segurança. Tornou-se rotina. Quem teve a vida de um ser querido ceifada pelos maus tratos dos hospitais públicos  não espere que o Juiz, de imediato, determine que o Governo indenize a falta de políticas de saúde, que é notória e continuada.
Nesse particular o Judiciário tem oferecido respostas positivas embora a solução dos casos demande anos de porfia, finda a qual a reparação moral ou patrimonial constitui vitória de Pirro.
Se tudo ocorresse com rapidez, paradoxalmente, o Judiciário quebraria o Poder Público pela impressionante cadeia sucessiva de incúrias. Quem pode, em sã consciência, compreender o fenômeno dos calotes oficiais que revela, a mais não poder, a vocação do Estado  brasileiro em ser um mau pagador? Isso não é um desprestígio à nossa Justiça, que não tem meios para compelir o devedor oficial  a cumprir suas obrigações, conforme preceito constitucional expresso?
Relembra-se aqui a lição do grande constitucionalista Ferdinand Lassale que, se antecipando ao seu tempo, chamou a Constituição de “folha de papel”. Ele prenunciava o risco de as Constituições viverem apenas no papel e não serem implementadas no cotidiano concreto dos sujeitos (apud “A defesa da Constituição nas Cortes Supremas”,  de Luiz Edson Fachin).
É o que acontece, ordinariamente, nas terras de Cabral. O ordenamento jurídico-social assenta-se em “folhas de papeis”, porém, cabe ao intérprete, oxigená-las, ajustando as normas escritas à triste realidade em que se vive para se fazer justiça, valendo-se dos princípios contidos na  lei de introdução. Se assim é, o norte consuetudinário talvez fosse o melhor conselheiro.
Se vingasse esse procedimento, não haveria necessidade de órgãos legislativos para dizer o que os tribunais proclamam, como no caso de uma inovação recente que tanta balbúrdia vem acontecendo até hoje na área de família: a estranha figura da união estável, o que é isso? Concubinato à antiga ou casamento por equiparação, basta o casal apertar as mãos para desde logo desenhar-se expectativas de direitos patrimoniais. Afinal, qual  o estado civil de quem vive em “união estável”?
Pena que essa matéria de família, de feição nitidamente constitucional, não tenha sido, até hoje,  examinada pela Corte Suprema, embora esta, por decisão monocrática exarada pelo Min. Marco Aurélio, em 7.3.98, considerou com exatidão:
“Consubstanciam institutos distintos o casamento e o concubinato. Tanto é assim que o parágrafo terceiro do art. 226 da CF, tido como vulnerado pela recorrente, sinaliza no sentido de a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Por outro lado, na cláusula alusiva à proteção pelo Estado, não se tem tal igualação no campo patrimonial com a partilha dos bens pelo simples fato de haver ocorrido a convivência comum. A referência à citada proteção e ao reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar não é conducente  a, por si só, levar à conclusão sobre a meação. Assim é, porquanto, até mesmo no casamento, é possível a adoção  do regime de separação total dos bens.” (in “Nova Realidade do Direito de Família, p. 58, Coord. Sergio Couto).
E arremata, parecendo que o tema voltaria, em outros casos, a ser examinado pela Corte:

“Logo, permanece íntegra a jurisprudência do STF revelada no teor do verbete  número 380 da respectiva súmula, a saber:
“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível sua dissolução judicial com partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.

A matéria não voltou a ser tratada nos anais da Suprema Corte…
O legislador, que são os nossos políticos, acenou com tal novidade por motivos manifestamente eleitoreiros e quem teve, senão o Judiciário, de descascar mais esse abacaxi, a começar pela competência, que jamais foi discutida formalmente, porque não houve provocação pelas entidades responsáveis.
Note-se que as súmulas, que se vão formando ao longo do tempo,  têm inegável função normativa pacificadora. Se assim é inimaginável que um outro poder, ao arrepio de princípios já consagrados e sumulados, possam inovar, constrangendo o judiciário a dar uma nova interpretação sobre temas cediços, embora à luz de uma nova ordem legislativa, o que revela permanente  e estarrecedor  clima de insegurança jurídica.
A clássica separação dos poderes precisa ser rediscutida, posto que bem o sabemos ela simplesmente não funciona, acontecendo na prática a sujeição de um poder pelo outro.
O Executivo legisla através de medidas provisórias que se eternizam. O Legislativo abdica de suas funções, transmudando-se em órgão homologatório da vontade do poder central, negociando suas posições que variam em função do que recebe em troca.
Isso compromete o sistema.
E nesse clima de deformação, as leis são feitas. Como construir uma sociedade justa e solidária? Sobra-nos o Judiciário, que faz o que pode, esmagado, na Corte Suprema, por uma vasta e lamentável clientela política, cujos desmandos entopem as pautas de julgamento em prejuízo de cidadãos que, em alguns casos, aguardam anos para a solução de seus casos.
E nesse contexto, as pesquisas de opinião revelam o pouco crédito que se  dá às instituições públicas em nosso País! Como reverter esse quadro? Ah, esse é o nosso maior desafio!