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O papel da Justiça no caos social

31 de março de 2007

José Carlos Schmidt Murta Ribeiro Desembargador aposentado do TJERJ e membro do Conselho Editorial

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No livro “Era dos Extremos – o breve século XX”, Eric Hobsbawn, um dos grandes historiadores de nosso tempo, resume impressões sobre o último século, ali se destacando a síntese do músico

Yehudi Menuhin: “Se eu tivesse de resumir o século XX, diria que despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais.” Tantas foram as hecatombes do século passado e do início deste, tais como as guerras mundiais, o Holocausto, o 11 de setembro, a se traduzirem em desesperança e desencanto dos ideais.

Veremos este novo milênio marcado por transformações sociais, pelo espantoso avanço da tecnologia e pela persistência de problemas cruciais como a miséria, a insegurança trazida pelo terror da violência cotidiana – agora mesmo remarcada pelo trágico e emblemático homicídio do menino João Hélio Fernandes Vieites – e das guerras aparentemente irracionais, mas sempre altamente lucrativas para o mercado da morte e seus tristes senhores, em insuportável violação aos direitos humanos fundamentais. Daí por que a democracia, as constituições e o próprio Direito também viverão constantes mutações, exigindo do Poder Judiciário o acompanhamento permanente de todas as circunstâncias que envolvem sua atuação.

A combinação dos princípios da razoável duração do processo e o da vinculação estrita dos meios à entrega da prestação jurisdicional baliza os planos que devem elaborar os projetos a serem executados e as atitudes que devem manter os incumbidos da gestão do Judiciário, a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004. Surgem, dessa constatação, dois desafios para administrar o Judiciário. O primeiro, a delimitação da função jurisdicional, em novo contorno constitucional, republicano e democrático. O segundo diz respeito aos instrumentos da ciência da administração que devam e possam ser manejados para tornar o sistema capaz de apoiar o exercício da função jurisdicional em tempo razoável.

Merecem lembrança algumas experiências já existentes no Rio, com vistas à obtenção de acordos que evitem a multiplicação das demandas. Destaque-se a atuação bem-sucedida do Expressinho, instância conduzida por juízes para autocomposição de litígios entre consumidores e concessionárias de serviço público. O programa Justiça Itinerante também deve ser lembrado, ao proporcionar a prestação de serviços judiciais e de conciliação a comunidades distantes dos fóruns, especialmente as mais carentes. Outro exemplo desse ativismo judicial foi a realização, em 8 de dezembro último, do Dia de Conciliação Nacional, projeto lançado sob inspiração da ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que não pode ficar só naquele mutirão, ainda que bem-sucedido, mas deve frutificar e se tornar uma atividade permanente.

Para produzir o resultado judicial com qualidade – o conflito bem resolvido, em tempo hábil –, a administração judiciária deve aprender a aplicar as mais modernas técnicas de gestão, adaptando-as às peculiaridades desse singular sistema. É necessário também entender que administrar não é apenas desembrulhar um pacote de técnicas e de truques ou de ferramentas analíticas. A evolução da história da administração ensina que há um conjunto de cinco princípios essenciais norteadores de toda a gestão, que deve ser permeada pela Ética, Competência, Participação, Transparência e Efetividade.

O primeiro ponto refere-se às pessoas. Toda administração delas depende e para elas se destina. O gestor deve ser hábil o bastante para ajudar pessoas a se tornarem capazes de apresentar um desempenho conjunto, de fazer com que suas características pessoais mais fortes se manifestem e se desenvolvam em favor da organização. Em síntese, a pessoa certa, no lugar certo, na hora certa.

Na jurisdição, tem-se o fenômeno da agitação permanente da cidadania, daí não poder aquela função distanciar-se do sentimento ético que lhe é absolutamente essencial. Por isso, o grande e saudoso Miguel Reale proclamou a eticidade radical da atuação dos juízes. É igualmente inarredável o comportamento ético como norte absoluto para toda a Administração do Judiciário.

O segundo ponto reside no fato de que toda administração trata com a integração de pessoas em uma missão determinada. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio,
graças às inovações introduzidas nos últimos anos, atingiu reconhecido grau de excelência e desenvolveu o paradigma do Judiciário ágil e eficiente de que o País precisa.
Entretanto, é necessário reconhecer que, apesar do muito já realizado, mais ainda carece de ser feito, especialmente na 1ª Instância. É principalmente nela que se dá o contato direto do povo com o Judiciário.

O terceiro ponto concerne aos objetivos. Toda organização precisa tê-los comuns, simples e claros, tornando tangível sua missão. Tal objetivo exige permanente respeito à dignidade das pessoas, inclusive em seu direito à divergência, além de prudência, serenidade, maturidade, equilíbrio e firmeza. Em suma, uma partilha de ideais e pensamentos que leve em conta o sentimento das partes e de seus advogados.

O quarto ponto funda-se no reconhecimento da necessidade de comunicação interna e também com o público externo – fator importante para a imagem do Poder Judiciário, devendo o princípio da transparência ocupar lugar de destaque em nosso cotidiano. Nesse tópico, merecem particular atenção a luta moralizadora pelo respeito ao princípio constitucional do teto salarial, que, entretanto, não pode nem deve descambar para o moralismo de fachada, sob pena de sacrifício de normas consolidadas – em verdade, protetoras do cidadão comum –, de observância do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, desde que incorporados sem qualquer violação da legalidade e da moralidade administrativa.

Também as medidas anunciadas pelo corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Pádua Ribeiro, de apuração de condutas de corrupção no Judiciário, merecem nosso aplauso, pois, mesmo ainda isoladas e longe de refletir o comportamento do conjunto da magistratura, devem receber tratamento cirúrgico dedicado ao tumor que se precisa extirpar antes de qualquer oportunidade de invadir as partes sadias do organismo. Nesse particular, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, já no início da década de 90, condenou e segregou do convívio social juízes, advogados, procuradores do INSS e outros fraudadores da chamada Máfia da Previdência, inclusive conseguindo inédita, na ocasião, recuperação de dinheiro enviado para contas numeradas no exterior e leiloando imóveis dos integrantes da quadrilha.

O quinto e último ponto diz respeito à produtividade, sendo notória a percepção pelos cidadãos da morosidade como o principal entrave da prestação jurisdicional. Logo, aumentar a produtividade dos juízes seria o maior desafio do Poder Judiciário. Nessa questão, deve-se destacar que estatística de decisões, embora importante, é apenas um primeiro passo que não se confunde com uma verdadeira e eficaz produtividade. Este é o segredo da estabilidade social e mesmo de uma mudança induzida pela efetivação dos direitos fundamentais tal como demarcados pela fronteira entre a modernidade e a pós-modernidade, a primeira proclamando-os e a segunda cuidando de assegurá-los concretamente e para todos.

Os resultados que o Judiciário precisa obter não estarão dentro das paredes do Tribunal, mas na certeza de que nós, juízes, seremos capazes de transmitir aos jurisdicionados que nossas decisões são independentes, abstraída a figura de quem seja o vencedor ou o vencido, rico ou pobre, poderoso ou cidadão comum.

Por tudo isso, as decisões judiciais, além de proferidas em tempo razoável, exigem isenção, zelo, conhecimento, transparência, ética e, como resultado dessa combinação de fatores essenciais, espírito de justiça correspondente a seu tempo e ao sentimento do povo. Essa é, em verdade, a inspiração que deve guiar nossos passos no trabalho permanente da construção de um judiciário garantidor dos valores democráticos da conciliação e da participação, cumprindo seu papel de fiel da balança de direitos fundamentais que, inscritos na Carta da República, não podem ser reduzidos a pó nem transformar-se em irônica ficção.