O papel do Poder Judiciário na efetivação da equidade de gênero

5 de abril de 2021

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A Constituição Federal consagra como objetivo fundamental da República constituir uma sociedade livre, justa e solidária, além da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Não obstante, a luta pela consolidação da cidadania da mulher e o alcance efetivo e fundamental da equidade de gênero ainda é pauta essencial no processo de transformação social.

Ao falar em equidade de gênero, pretende-se o alcance transcendente à igualdade meramente formal, ou seja, para além da homogeneização, trata-se da busca mais efetiva e participativa pela justiça social na promoção de condições que legitimem o papel da mulher no contexto social, atentando-se às diferenças de oportunidades ainda existentes. Nessa linha, bem explanou Rui Barbosa na “Oração aos moços”.

Uma das formas de concretização do ideal de equidade de gênero – em que pese represente, ainda, um grande desafio a ser ultrapassado – é a implementação de ações afirmativas no combate às discriminações em todas as suas formas, ampliando a participação das minorias nos processos políticos, no mercado de trabalho e em altos cargos de liderança da sociedade.

Portanto, políticas institucionais que objetivam a ampliação da participação feminina na sociedade constituem ferramentas essenciais para a transformação social e prevenção de práticas de violência contra mulher.

Importante pontuar que a violência contra a mulher está estritamente vinculada à violência de gênero, esta última mais abrangente. Ainda hoje impera desigualdade de papeis sociais entre os gêneros, por ainda serem reproduzidos padrões discriminatórios, por vezes imperceptíveis. Aspectos como bravura e força ainda são associados ao sexo masculino, cabendo à mulher a característica sensível, delicada e sentimental. Tais concepções levam à errônea ideia de que os homens ocupam papel de superioridade na sociedade, exaltando a dominação masculina.

O alcance da equidade de gênero constitui um dos 17 objetivos de desenvolvimento que compõe a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Trata-se de compromisso assumido entre as Nações para efetivar os direitos humanos, sendo o Brasil signatário. Tal política se faz essencial frente às estimativas globais divulgadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo as quais aproximadamente uma em cada três mulheres sofreram violência física ou sexual por parceiros ou terceiros durante a vida.

A violência contra as mulheres como uma das formas de violação dos direitos humanos foi formalmente reconhecida na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, ocorrida em Viena, no ano de 1993. No âmbito do Poder Judiciário, a atuação jurisdicional para concretização dos direitos fundamentais sofreu diversas modificações históricas até chegar no momento de exaltação desses direitos como uma ordem objetiva de valores vinculantes a serem observados por todos os poderes do Estado.

No Estado Democrático de Direito, a garantia pelo Judiciário do direito à igualdade se dá a partir da leitura hermenêutica e sistêmica do Direito com incorporação dos valores fundamentais. Trata-se de uma árdua missão a ser constantemente executada pelo Poder Judiciário, com intuito de tornar realidade os valores consagrados na Constituição e, de fato, alcançar os ideais de sociedade igualitária.

Nessa linha, a proteção dos direitos humanos pressupõe uma ação estatal que se mostre apta a remover obstáculos sociais e econômicos. Essa proteção não se realiza, pura e simplesmente, com o ingresso dos direitos na Constituição, cumprindo, também, ao Judiciário promover a concretização dos direitos humanos.

Com efeito, a par do aprimoramento da prestação jurisdicional com um aumento considerável no número de sentenças proferidas e de medidas protetivas concedidas sobre a temática, dados que vêm sendo acompanhados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Judiciário vem adotando postura ativa, dentro dos limites de sua competência constitucional, na realização de políticas públicas judiciárias para inserção da mulher em ambientes de gestão, bem como na prevenção e enfrentamento eficaz à violência de gênero, a partir da integração com os demais setores.

Nesse cenário, o CNJ instituiu, por meio da Resolução nº 255/2018, a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. No corpo da Resolução em destaque, é assumido o compromisso do Poder Judiciário de ressaltar a igualdade de gênero como um objetivo a ser atingido por órgãos da Justiça, com a edição de medidas concretas.

Em cumprimento à Resolução, o CNJ designou grupo de trabalho para elaboração de estudos, análise de cenários, eventos de capacitação e diálogo com os tribunais sobre a temática (Portaria CNJ nº 66/2018). Nessa linha, a partir de estudo realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ acerca da participação feminina no Poder Judiciário, entre 2009 e 2018, foi constatado que o percentual de participação feminina na magistratura ainda é baixo, entretanto, vem paulatinamente ganhando força, partindo de 24,6% em 1988, para 38,8% em 2018.

No CNJ, com a posse da Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura no cargo de Corregedora Nacional de Justiça em outubro de 2020, para o biênio 2020-2022, o órgão censor passou a contar, pela primeira vez, com sete integrantes do sexo feminino, superando o marco de seis integrantes mulheres nos biênios de 2013-2015 e 2017-2019.

Em abril de 2020, o CNJ promoveu, junto aos tribunais de todos os segmentos do Poder Judiciário, pesquisa sobre a participação feminina nos concursos para a magistratura, obtendo resultados negativos quanto à equidade de gênero na composição das comissões organizadoras e das bancas examinadoras de concursos públicos para ingresso na magistratura. Foram identificadas diferenças significativas entre os diversos ramos da Justiça. Partindo da realidade constatada, foi editada a Recomendação CNJ nº 85/2021, orientando que todos os tribunais passem a observar, nas vagas de suas indicações, a composição paritária de gênero na formação dessas comissões e bancas em seus respectivos concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura.

Por meio da Recomendação CNJ nº 79/2020 foi editado ato sobre a capacitação em gênero de magistradas e magistrados para atuar em varas ou juizados que detenham competência para aplicar a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Neste aspecto, o grupo de trabalho do CNJ que atua na elaboração de estudos e propostas para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher sistematiza a proposta de ampliação de diretrizes dessa recomendação para incluir a capacitação em gênero como componente curricular obrigatório dos cursos de formação inicial de magistrados, estendida também aos servidores que atuam nos primeiros e segundos grau de jurisdição com a aplicação da Lei Maria da Penha.

Também está em pauta a regulamentação da obrigatoriedade da criação dos Comitês de Gênero nos tribunais e das Ouvidorias da Mulher, buscando assegurar de modo permanente a promoção da equidade de gênero e a fiscalização efetiva da implementação, alcançando, assim, a todos.

Conquanto o Brasil tenha uma das três legislações mais avançadas no combate à violência doméstica, paradoxalmente ocupa elevada posição no ranking dos países mais violentos do mundo para mulheres. Como alhures afirmado, a violência doméstica é uma modalidade de violência de gênero e se sustenta, justamente, na desigualdade entre mulheres e homens e na concepção equivocada de um papel sobrevalente destes últimos em face do sexo feminino.

No âmbito jurídico, foi a partir da promulgação da Lei Maria da Penha  que o Poder Judiciário teve ampliado o seu campo de atuação nas questões relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher. Desde então, em compasso com o dever estatal de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e em conformidade com o que preceitua o art. 226, §8º, da Constituição, vem apresentando novas ferramentas que têm por objetivo maximizar os resultados no combate a este mal, o que se denota pelo histórico de resoluções, recomendações e ações de conscientização implementadas e que apresentam resultados efetivos no enfrentamento da questão.

Um ano após a edição da Lei 11.340/2006, o CNJ instituiu as Jornadas da Lei Maria da Penha, as quais objetivam discutir temas afetos à violência de gênero por profissionais que atuam na área, melhorar a atuação e compartilhar boas práticas. No mesmo ano, por meio da Recomendação CNJ nº 9/2007, foi dado início à instituição, no âmbito do Poder Judiciário, aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, contando hoje com 139 varas especializadas em todo o País.

Em 2015, o CNJ iniciou o Programa Justiça pela Paz em Casa, que é promovido em parceria com os Tribunais de Justiça estaduais, tendo por objetivo ampliar a efetividade da Lei Maria da Penha, por meio da atuação para agilizar o andamento dos processos relacionados à violência de gênero.

Em março de 2020, foi instituído, pela Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 5/2020, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. O formulário auxilia na identificação dos fatores que indiquem o risco da mulher vir a sofrer qualquer forma de violência no âmbito das relações domésticas e familiares, de forma a subsidiar a atuação do MP, do Judiciário e dos demais órgãos da rede de proteção na gestão do risco identificado.

Ainda, por meio da Resolução CNJ nº 342/2020, foi instituído o Banco Nacional de Medidas Protetivas de Urgência, em que todas as medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres vítimas de violência doméstica no país deverão ser registradas. A partir dessa unificação de dados, faz-se possível monitorar os pontos deficitários nas ações de combate à violência contra a mulher, contribuindo para melhorar as políticas públicas nessa área.

A edição de tais atos normativos demonstra o amadurecimento do Poder Judiciário em relação às questões afetas à igualdade de gênero e reafirma a necessidade de assegurar a adoção de medidas positivas nessa luta. Exalta, assim, o dever de conferir máxima efetividade aos direitos fundamentais, em respeito à dignidade humana e ao reconhecimento de que o Judiciário, dotado de poder estatal, deve atuar para assegurar o pleno respeito a todos, independentemente da identidade de gênero, respeitando a igualdade, a liberdade e a autonomia individual, que constitui a base do Estado Democrático de Direitos.