Edição 279
O papel social do juiz contemporâneo e a contribuição da arte na aproximação entre o Poder Judiciário e a sociedade
7 de novembro de 2023
Daiana Gomes Almeida Juíza do Trabalho do TRT7 / Integrante do Conselho Fiscal da Anamatra
A humanidade é composta de seres humanos diversos e plurais, ainda mais na era contemporânea, em que a evolução da espécie humana e a multiplicidade de teorias do conhecimento, a exemplo das relativas ao pensamento complexo e interdisciplinar, vêm aflorando a cada dia, desafiando conceitos e comportamentos tradicionais e criando novos outros.
No atual cenário, portanto, são múltiplas as personalidades humanas, com os mais inusitados interesses jurídicos, que têm batido às portas do Poder Judiciário, apresentando em juízo as mais variadas questões, que muitas vezes demandam do(a) magistrado(a) uma atuação mais empática e menos engessada ao formalismo tradicional.
Essa conjuntura atual só nos revela o quanto tem destoado dos anseios da sociedade aquela figura do juiz distante, formal, intocável e incapaz de dialogar no mesmo dialeto dos jurisdicionados, para os quais se dispõe a atuar.
E quanto mais as pessoas e causas se diversificam, mais complexas vão se tornando as teses jurídicas e a linguagem forense. Toda essa combinação de diversidades e complexidades, somada ao desconhecimento de parte da população sobre direitos fundamentais e mecanismos de prevenção e gestão de conflitos, tem funcionado como verdadeiro obstáculo à aproximação da sociedade ao Poder Judiciário e aos direitos fundamentais de pleno acesso à Justiça e de informação, constitucionalmente assegurados.
Nesse cenário, importa-nos indagar: Qual é a configuração de poder jurisdicional que a sociedade espera do juiz contemporâneo? E qual é o papel social desse juiz na contemporaneidade?
Como se sabe, a palavra “jurisdição” vem da expressão em latim juris dictio, que significa “dizer o direito”, e que o poder-dever de “dizer o direito”, também chamado de poder jurisdicional, está reservado ao Estado, consistindo em uma de suas principais funções, com vistas a garantir os direitos individuais, coletivos e sociais, resolver conflitos entre cidadãos, entidades e Estado e, assim, promover a pacificação social.
Diante de uma sociedade complexa e cheia de desigualdades como a brasileira, o poder-dever de “dizer o direito” do juiz contemporâneo deve assumir uma configuração mais extensa, que vai mais além do que meramente proferir decisões em lides já judicialmente instaladas, tal como quem está só a apagar fogueiras de conflitos.
Dentro de seu papel social, o “dizer o direito” do juiz contemporâneo pode ser compreendido como o ato de compartilhar conhecimentos em direitos fundamentais e ferramentas de prevenção e autogestão de conflitos, que empoderem as pessoas de saberes e capacidades para solucionarem seus próprios impasses extrajudicialmente, antes que as fogueiras de querelas se acendam; ou para acionarem adequadamente a Justiça em busca de solução judicial, quando a solução extrajudicial não for alcançada.
A tarefa de pacificação de conflitos e promoção da paz social requer do juiz da contemporaneidade, também, uma atuação preventiva junto à sociedade, por meio de iniciativas sociais que aproximem o Poder Judiciário dos cidadãos e os engradeçam de saberes jurídicos fundamentais e de técnicas de autogestão de conflitos, em prol da concretização do acesso à Justiça, à informação, à educação, inclusive para o trabalho.
Nesse sentido, Caffarate assevera que “o papel do Juiz através do Poder Judiciário é o de auxiliar nas mudanças sociais, para que os mecanismos corretos, com a finalidade de solucionar conflitos, se tornem eficazes”.
É fato que o Poder Judiciário já vem se reinventando para melhorar sua atuação e, consequentemente, sua imagem, em prol da sociedade. Mas é fato que, não obstante os esforços implementados até então, ainda persiste a flagrante e urgente demanda da sociedade por um Poder Judiciário mais ágil, mais próximo das pessoas e tanto mais acessível, quanto eficiente, acolhedor, humanizado e solidário.
Diante da multiplicidade de fatores, Caffarate reconhece que o Judiciário brasileiro vem enfrentando dificuldades de cumprimento efetivo de seu papel na contemporaneidade:
Pois bem, até então já é visto que o papel do Judiciário vai além do que é disposto na Constituição Federal de 1988, todavia diante da sociedade contemporânea, o Judiciário tem enfrentado dificuldades para que o seu papel esteja sendo cumprido de forma efetiva.
Nesse escopo, faz-se imprescindível que as ações sociais que o Poder Judiciário vem desenvolvendo sejam intensificadas ou até mesmo remodeladas de forma criativa, de modo que a comunidade sinta a presença efetiva e constante dessa instituição, agindo como colaboradora de pautas coletivas, em prol da dignidade da pessoa humana, redução das desigualdades sociais e promoção da paz social, quanto mais em se tratando da Justiça do Trabalho, que é essencialmente uma justiça social.
Se é na figura do juiz que a sociedade enxerga, o mais personificada possível, a imagem do Poder Judiciário, então se pode asseverar que, para a construção de um Poder mais evoluído, assume extrema relevância o efetivo desempenho do papel social conferido pela Constituição Cidadã aos juízes contemporâneos, sensíveis às realidades atuais e abertos a uma atuação cada vez mais interativa, dialógica e acessível.
A propósito, Teixeira já enfatizava que:
(…) o Judiciário, como Poder ou atividade estatal, não pode mais manter-se equidistante dos debates sociais, devendo assumir seu papel de participante do processo evolutivo das nações, também responsável pelo bem comum, notadamente em temas como dignidade humana, redução das desigualdades sociais, erradicação da miséria e da marginalização, defesa do meio ambiente e valorização do trabalho e da livre iniciativa. Copartícipe, em suma, da construção de uma sociedade mais livre, justa, solidária e fraterna.
Dentro desse contexto, transformar o conceito tradicional de juízes-cátedra e juízes-encastelados em juízes-ponte, estreitando-lhes os laços sociais com todas as pessoas, físicas e jurídicas, reduzindo o distanciamento entre o Direito e a Justiça de que a sociedade vem sofrendo, tem sido um dos principais objetivos do sistema de Justiça na contemporaneidade.
Necessário se faz, pois, que o processo de reconfiguração que o Poder Judiciário já vem desenvolvendo, foque na efetiva construção de uma Justiça de proximidade contemporânea.
Nesse propósito, é primordial que haja intensificação do papel social da magistratura dos dias atuais, por meio de reformulação de mentalidades e de iniciativas concretas, tanto endo quanto exoprocessualmente.
Outrossim, é indispensável que os magistrados não se restrinjam aos limites de seus gabinetes e às tarefas burocráticas, mas se dirijam às ruas, ouçam a comunidade sobre suas insatisfações com a Justiça e identifiquem os pontos a melhorar.
Com efeito, tomando como premissa que, na visão neoconstitucional, a função institucional dos juízes deve ser interpretada à luz da concretização dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição como foco central, não resta qualquer dúvida de que, contemporaneamente, o exercício da magistratura não deve se limitar à estrita prestação jurisdicional, cabendo ao juiz conhecer de perto as realidades econômicas e sociais, participando da vida de sua comunidade e utilizando proativamente sua liderança, coordenando, provocando e participando de ações sociais propagadores de direitos fundamentais e preventivas de novas conflituosidades, na busca de realização plena da cidadania e da paz social.
Em consonância com os fins neoconstitucionais de seu mister de “dizer o direito” no mais amplo e hodierno sentido, é primordial que o juiz contemporâneo esteja intimamente comprometido com a democratização do acesso à Justiça, informando a comunidade sobre seus direitos, deveres, sobre as formas de acesso à Justiça, o funcionamento do sistema de Justiça e as ferramentas de pacificação extrajudicial de lides, dialogando junto a escolas, empresas e demais esferas sociais, colocando-se disponível a atender e ouvir partes, advogados e a comunidade em geral.
Nesse sentido, Cichocki já ressaltava a função sócio-política do Poder Judiciário, elencando algumas sugestões para minorar as barreiras de acesso à Justiça:
Algumas sugestões citadas pela doutrina para a minoração desses fatores, são, por exemplo: a instituição de órgãos ou a atribuição das atividades de informação, orientação e aconselhamento à população sobre as leis e seus direitos, àquelas já existentes; a contribuição das instituições de ensino jurídico, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público e dos próprios juízes, na orientação da população sobre seus direitos; a contribuição também de grandes empresas e sindicatos para o auxílio aos funcionários e demais interessados, quanto aos serviços jurídicos, tal como possuem os serviços médicos, odontológicos, etc.
Como se vê, o elenco acima transcrito traz exemplos de iniciativas que, certamente, contribuirão para expandir informação e orientação da população, de forma ampla e facilitada, sobre o funcionamento do ordenamento jurídico e de seus órgãos, alargando o acesso à Justiça para toda a sociedade.
Outrossim, para a construção de uma Justiça de proximidade, é fundamental que haja, também, uma atualização do exercício da autoridade inerente ao cargo de magistrado, para entrar em conformidade com os valores contemporâneos da sociedade, de tal modo a não se manifestar por mera imposição hierarquizada, mas por meio de uma genuína conquista do juiz, através da excelência de seu trabalho e de uma relação empática com a comunidade e seus dramas.
Nessa linha hodierna de democratização dos direitos fundamentais e de primazia do preceito da dignidade da pessoa humana, cabe ao juiz desenvolver sua atuação, sempre pautado na cortesia, educação, reserva, habilidade e inteligência emocionais, respeito e serenidade para com todas as pessoas e instituições e nunca com espírito de arrogância, arbitrariedade, prepotência, soberba, autoritarismo ou vaidade.
Vale ressaltar que a indispensável autoridade de “dizer o direito” não restará comprometida diante de tal postura que ora se conclama, dado que a autoridade de um juiz já decorre naturalmente do próprio cargo em si e não do grau de hostilidade, tom de voz ou rispidez com que este venha a tratar os jurisdicionados e demais operadores do Direito ou proferir suas decisões diante dos impasses processuais.
Urge, portanto, que mentes, de dentro do Poder Judiciário, não só pensantes, mas precipuamente atuantes, instiguem a própria sensibilidade, de modo a perceberem e atenderem mais incisivamente aos anseios e necessidades da sociedade.
Mentes que sejam convoladas a elaborarem e fazerem entrar em ação projetos que elevem essa esfera de Poder a um patamar mais humanizado e mais integrado à sociedade, despertando, mais ainda, em seus magistrados e servidores, a fundamental consciência para um papel social transformador de outras mentes humanas espalhadas mundo afora.
Para que o Poder Judiciário – que é instituição atinente a todas as pessoas, sem distinção – possa aproximar-se cada vez mais da sociedade e dialogar com esta, em sua pluralidade e diversidade imanentes, urge que esteja aberto ao estudo e compreensão de outras linguagens, ciências, disciplinas e formas de manifestação e expressão humanas, para além do Direito puro e propriamente dito e por meio do uso da interdisciplinaridade, sendo a arte uma via extremamente favorável nesse propósito.
E é exatamente neste ponto que a junção de manifestações de arte à dinâmica de ações sociais do Tribunal Regional do Trabalho do Ceará (TRT7) deu ensejo a um programa pioneiro e permanente, denominado “Justiça com arte”, instituído pelo Ato TRT7.GP No 137/2023, como estratégia de aproximar o Poder Judiciário de todas e todos os cidadãos.
De acordo com esse normativo, o programa “Justiça com arte”, vem utilizando a arte como ponte, para difundir noções básicas de ética e cidadania, direitos e garantias fundamentais, inicialmente em relação ao trabalho decente e em enfrentamento à exploração humana do trabalho escravo, além de outras temáticas, com o envolvimento de juízas, juízes, servidoras e servidores, para atuarem na aproximação do Poder Judiciário com a sociedade.
Sendo o Direito uma ciência mais complexa e seletiva; e já a arte, por outro lado, uma expressão humana que trafega mais facilmente entre todos os seres humanos, em suas mais complexas diversidades; a ideia que se apresenta é justamente a de fazer uso dessa interdisciplinaridade, para unir Direito com arte, como elo de empatia e aproximação do Judiciário a todas as pessoas, tanto no âmbito forense, quanto em ações sociais comunitárias, tocando-lhes a alma e, de uma só vez, levando – e recebendo – conhecimentos jurídicos e diversos outros saberes, inclusive em matéria de prevenção e autogestão de conflitos, como medida de concretização e fortalecimento da cidadania, da dignidade humana, do pleno acesso à justiça e da paz social.
Daí a importância do desenvolvimento de projetos de interação, escuta e prestação de atendimento, nas mais periféricas e desprovidas comunidades, como este ora mencionado.
Essa interseção é crucial para uma compreensão mais profunda e um comprometimento mais significativo com os princípios constitucionais, especialmente em uma era em que as questões legais e sociais se tornaram cada vez mais complexas e interligadas, daí porque a unir direito e arte pode ser de grande valia, por exemplo, para:
a) traduzir a linguagem jurídica, muitas vezes complexa e de difícil entendimento pelo cidadão comum, para uma comunicação simples, acessível e emocionalmente envolvente, seja na forma de pinturas, exposições, teatro, filmes, música, dança ou literatura, para que as pessoas compreendam melhor as implicações das questões judiciais em suas vidas;
b) estimular a reflexão crítica, inclusive sobre o sistema de Justiça, seus preconceitos e suas limitações, oferecendo uma lente exame das complexidades do Poder Judiciário e aprimoramento de suas interações com a sociedade;
c) promover uma conscientização sobre direitos fundamentais de forma leve e tocante, humanizando as narrativas e casos judiciais, retratando as vidas e os dramas das pessoas afetadas pelas decisões jurisdicionais, mostrando seus rostos, suas histórias e suas lutas;
d) gerar empatia e engajamento emocional, evocando emoções de forma criativa e profunda e criando conexões, para além de fatos e números;
e) promover o diálogo e a compreensão mútuos, por meio da escuta ativa e da cura pela fala;
f) inspirar ações cívicas e mudanças sociais, envolvendo o público a tomar iniciativas, participar de debates públicos e pressionar por solução dos problemas da sociedade;
g) humanizar o sistema de Justiça, retratrando juízes, advogados, policiais e outros profissionais desse sistema como pessoas reais com suas próprias lutas e dilemas, contribuindo para humanizar esses operadores do Direito, aproximando-os do público e demonstrando que eles também são afetados pelas decisões que tomam;
h) construir pontes culturais entre diferentes grupos, permitindo que as experiências e preocupações de comunidades diversas sejam compreendidas e consideradas pelo sistema de justiça.
Em suma, a arte funciona como eficaz ferramenta no papel social do juiz contemporâneo e a sociedade atual. Essa interação de Direito com arte não apenas enriquece a compreensão da sociedade sobre questões legais, mas também pode desempenhar um papel na melhoria do sistema de Justiça e na busca por uma Justiça mais equitativa, fazendo com que o Poder Judiciário se conecte de forma mais significativa com a sociedade a que serve.
Notas___________________________
1 CAFFARATE, Fernanda da Silva. “O distanciamento da efetividade do acesso à Justiça no Poder Judiciário”. https://jus.com.br/artigos/88706/o-distanciamento-da-efetividade-do-acesso-a-justica-no-poder-judiciario Acesso em 3/1/2023.
2 TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. “A formação do juiz contemporâneo”. In A formação do juiz contemporâneo.pdf. Acesso em 5/1/2023.
3 CICHOCKI NETO, José. “Limitações ao acesso à Justiça”. 1a edição, 2a tiragem. Curitiba: Juruá, 1999.