Edição 194
O parlamentarismo no contexto da realidade brasileira
10 de novembro de 2016
Ives Gandra da Silva Martins Membro do Conselho Editorial, Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
Pessoalmente, sempre defendi o parlamentarismo e presidi, antes da Revolução de 1964, o diretório metropolitano do Partido Libertador em São Paulo, único partido parlamentarista pré-revolucionário, tendo deixado de fazer política em 1965, quando o Ato Institucional no 2 eliminou os antigos partidos, criando a Arena e o MDB. Não me arrependo daquela decisão que me permitiu dedicação plena à advocacia e ao magistério universitário. A experiência de 1962 a 1965, entretanto, foi interessante e rica.
Com a adoção das eleições diretas, quando da redemocratização, o Brasil avançou se comparado ao regime de exceção, então, vigente. Não adotou, todavia, o melhor sistema que, a meu ver, é o parlamentar.
Apesar de ter votado, no plebiscito, pelo parlamentarismo monárquico, sem ser monarquista, o certo é que, em 1984, como solução para sair do sistema político anterior, a eleição direta era o melhor caminho. Engajei-me inteiramente na luta, que permitiu, num primeiro passo, a eleição de Tancredo Neves. A sua vitória sobre o candidato do Governo e, depois, a Emenda Constitucional no 26/86 geraram a mais democrática Constituição do País: a de 1988.
Vivemos hoje uma democracia, graças aos méritos desta Constituição que, apesar de sua excessiva pormenorização e defeitos inequívocos, traz na espinha dorsal os anticorpos jurídicos para a estabilidade das instituições e a garantia do regime democrático, assegurando os direitos individuais e o equilíbrio dos Poderes, que se autocontrolam.
Deve-se tal equilíbrio ao fato de toda a formatação da nossa lei suprema ter sido para um sistema parlamentar de governo, ideal frustrado nas discussões finais do texto, em plenário da Constituinte, com o que alguns dos mecanismos de controle dos poderes, próprios do parlamentarismo, remanesceram no texto brasileiro.
Inicialmente, convém ressaltar que os autores divergem sobre a conformação conceitual do presidencialismo e do parlamentarismo, entendendo uns que correspondem a autênticos sistemas e outros a regimes jurídicos de exercício do poder. Particularmente, prefiro a expressão sistema a regime, por ser o regime uma ordenação inserida num sistema. Neste artigo, entretanto, fugirei do debate semântico e concentrarei minhas reflexões aos aspectos que os diferenciam.
Neste ponto, três são os tipos clássicos de sistemas de governo, a saber: o parlamentar, o presidencial e o misto.
O presidencialismo clássico não é o americano. Este foi apenas o primeiro sistema criado. A tradição inglesa de Parlamento forte fez da experiência americana uma experiência ímpar, já que o Parlamento nunca perdeu sua dignidade, desde a preparação da Carta Magna daquele país, este ano completando 229 anos, pois promulgada com sete artigos em 1787.
O presidencialismo clássico foi aquele desenvolvido por todos os países que procuraram copiar a solução americana, sem a mesma tradição parlamentar. Neste sistema, em que na figura de um homem só se concentra a essência do poder, torna-o mais vulnerável às tentações próprias de quem detém a força e, com o tempo, com ele se identifica, transformando aqueles que governa, não em seus superiores a quem deveria servir, mas em seus inferiores que lhe devem obedecer.
Já o parlamentarismo clássico é o inglês ou o belga, posto que neles o chefe de governo é realmente aquele que governa. Tal sistema pressupõe o bipartidarismo ou o pluripartidarismo. Nos países em que o bipartidarismo dominou durante muito tempo, como na Inglaterra, tal parlamentarismo revestiu a forma de governo majoritário, ou seja, o partido que ganhava as eleições governava sem necessidade de apoio e participação do partido derrotado.
Hoje, o pluripartidarismo começa a infiltrar-se na Inglaterra. Nos países em que o pluripartidarismo prevalece, o modelo é consensual. O partido ou a coligação vencedora governa com participação de muitos partidos; inclusive de partidos minoritários. O governo decorre, pois, de um consenso político, reflete-o e se orienta em tal linha. A Inglaterra tem, nos últimos anos, visto o fortalecimento de outras correntes partidárias, impondo pela primeira vez, no atual governo, a busca de apoio com legendas menores.
Nos sistemas parlamentares puros, os partidos políticos se fortalecem e passam a representar as aspirações populares.
No presidencialismo puro, as estruturas partidárias são fracas, meros instrumentos institucionais para que as personalidades, nem sempre com elas identificadas, possam alçar-se ao poder.
Os partidos políticos são, portanto, instrumento do povo no parlamentarismo e das elites políticas dominantes no presidencialismo.
Entre o parlamentarismo puro e o presidencialismo puro colocam-se os sistemas mistos, como o francês e o americano.
Os sistemas mistos parlamentaristas são aqueles em que se procura solução intermediária, ofertando menos participação governamental ao Chefe de Governo, que o dirige ao lado do Chefe de Estado.
Assim é que o Presidente da República, na França e em Portugal, indica determinados ministros que divergem e discutem com o chefe de governo a política que deva ser adotada para o país.
A solução não nos parece ideal, na medida em que, por ser o Presidente da República não demissível e sê-lo o primeiro-ministro, nos impasses criados, se pertencentes a coligações partidárias ou partidos diversos, nem sempre encontram mecanismos de solução fácil no arsenal jurídico-institucional.
Portanto, entendo que o melhor dos três é, inequivocamente, o parlamentar puro, na medida em que fortalece as estruturas políticas, gera a responsabilidade do eleitor e do eleito e obriga o permanente exercício democrático, com a depuração natural de elementos aproveitadores e oportunistas, que se encontram em número consideravelmente menor que nos sistemas presidenciais conhecidos.
O sistema parlamentar de governo propicia a plenitude de tal exercício, em face de todas as correntes de pensamento nacional poderem ser representadas nas Casas Legislativas, permitindo, por outro lado, que, nas composições que se fazem necessárias para a formação de Gabinetes, os parlamentares escolhidos pelo povo exerçam sua força de representação, na indicação, participando e controlando o Gabinete encarregado de governar o país.
Neste ponto, ressalto que a expressão “voto de confiança”, nos sistemas parlamentares de governo – cujo início dá-se em 1689, na Inglaterra, com o Governo de Orange, momento em que se separam as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo –, tem especial significado. Equivale a saber se o Chefe de Governo continua ou não a merecer o apoio do povo para governá-lo, expresso pela manifestação de seus representantes no Parlamento.
Isso porque o parlamentarismo é, por excelência, o sistema de governo representativo, visto que toda a sua conformação foi plasmada a partir das conquistas populares de coparticipação, no excelente laboratório em que a Inglaterra se transformou, por muitos séculos, para a experiência democrática.
Já a realidade do presidencialismo – salvo a experiência do país que o criou (EUA) – tem sido particularmente negativa, principalmente no contexto latino-americano, pois tem gerado “sistema gangorral” entre ditaduras e semidemocracias, com constantes rupturas institucionais em quase todos eles.
Basta dizer que, quando Lijphart escreveu seu clássico livro “Democracies”, em 1984, encontrou, sem violações democráticas, 20 países parlamentaristas e 1 presidencialista.
É que os países presidencialistas, exceção feita à experiência americana, não geram partidos políticos, sendo muito mais governos de pessoas e não de ideias, de donos de legendas e não integrantes de uma agremiação partidária com ideologia definida.
Não sem razão, tem o Brasil 35 partidos políticos, 28 com representação no Congresso Nacional, enquanto a maioria dos países parlamentaristas têm em torno de 5, com representação nacional, raramente ultrapassando 10.
Os governos de um homem só, assim como aqueles originados das absolutas e despóticas monarquias ou ditaduras, não podem conviver com o sistema parlamentar, pois que neste a representatividade popular é essencial e não naqueles.
O Presidente, uma vez eleito, é titular absoluto e, irresponsável por seu mandato, nomeando ministros e auxiliares, sem qualquer necessidade de controle e à revelia da vontade popular, eis que o eleitor que o escolhe tem os seus direitos políticos restritos ao voto.
Com pertinência, Raul Pilla entendia ser o presidencialismo sistema de governo de “irresponsabilidade a prazo certo”. Uma vez eleito o Presidente da República, o povo deveria suportá-lo, bom ou mau, até o fim do mandato. Se muito ruim, apenas a ruptura institucional poderia viabilizar sua substituição, posto que a figura do impeachment é aplicável somente à inidoneidade administrativa e não à incompetência.
Contrariamente, o parlamentarismo – adotado pela maioria esmagadora de todos os países que são autênticas democracias no mundo – é o sistema de governo da “responsabilidade a prazo incerto”. O governo apenas se mantém enquanto merecer a confiança do eleitor. Se não, será substituído, com a crise política encontrando remédio institucional para sua solução.
Durante a guerra das Malvinas, a primeira-ministra da Inglaterra era obrigada a comparecer diariamente ao Parlamento para prestar contas de sua ação. Se perdesse a guerra, seria derrubada e substituída por um outro ministro porque a responsabilidade é a nota principal do parlamentarismo. O presidente da Argentina, por seu lado, ofertava as informações que desejava ao povo, sem a responsabilidade de dizer a verdade, visto que se sentia livre para “fabricá-la”. A derrota argentina provocou seu afastamento, através de ruptura institucional, à falta de mecanismos capazes de equacionarem tais crises no sistema presidencial.
Portanto, o parlamentarismo é sistema conquistado pelo povo. Nasce de suas aspirações e reinvindicações. Assim foi na Inglaterra e em todos os países em que se instalou.
O presidencialismo, ao contrário, pelos seus resquícios monárquicos, torna o Presidente da República um monarca não vitalício, constituindo-se em sistema outorgado pelas elites políticas dominantes, que sobre escolherem entre elas aqueles nomes que serão ofertados à disputa eleitoral, necessitam dos eleitores apenas para sua indicação.
Significa dizer que, no sistema presidencial, sobre não ter o eleitor o poder de escolha de uma gama variada de candidatos, mas somente entre os poucos elencados pela elite, sua participação política resume-se, exclusivamente, no depósito de um voto na urna e nada mais. Já no sistema parlamentar, o eleitor controla o Parlamento e este controla o governo, durante todo o mandato legislativo.
À evidência, para permitir esta corrente de mútuos controles, deve se alicerçar no voto distrital, de um lado, e no direito de dissolução do Congresso por parte do Poder Moderador, de outro. Este poder moderador existe nos sistemas parlamentares republicanos e monárquicos, sendo efetivo no republicano e dinástico no monárquico.
Na primeira estaca do sistema, o voto distrital permite que o eleitor conheça, conviva e controle o seu representante que, por seu lado, deve representar condignamente aqueles que nele depositaram o voto e a confiança. Graças ao voto distrital, o Parlamento se transforma, efetivamente, na Casa de representantes de todos os segmentos e correntes do pensamento político, econômico e social de uma nação. A própria escolha, pelo parlamentar, do Gabinete que deve governar o país será sempre exercitada com a preocupação de intuir a vontade de seu eleitor. Sua participação na escolha do governo e no seu controle, em verdade, transforma-o em longa manus da vontade popular.
Na mesma linha, o direito do Chefe de Estado de dissolver o Congresso, se este derrubar Gabinetes constituídos, com muita frequência, traz elemento de estabilização às relações entre Parlamento e Gabinete, visto que se “irresponsável” o Parlamento, poderá o Chefe de Estado consultar novamente o eleitor para saber se aquele Parlamento continua a merecer confiança de seu eleitorado.
E a própria separação da figura de Chefe de Estado da do Chefe de Governo não permite que o Chefe de Estado seja envolvido nas crises políticas, fator de equilíbrio que o presidencialismo não pode ofertar pela confusão na mesma pessoa de duas representações.
Não é sem razão que nas 21 únicas democracias estáveis que o mundo conheceu, sem solução de continuidade, de 1945 até 1984, 20 eram parlamentares e naquela única presidencial (a americana), o Parlamento é de tal forma vigoroso que derruba presidentes, ao contrário dos demais países presidencialistas, em que os presidentes fecham os Congressos.
Já a experiência latino-americana, com o modelo presidencialista, é penosa, na medida em que a falta de mecanismos para solução de crises políticas tem levado todos os países, que o adoraram, a regimes pendulares, os quais vão da ditadura à democracia precária e desta à ditadura.
O presidencialismo é, portanto, um sistema tendente à democracia, mas inibido pela sua origem e pela pouca confiabilidade do homem no poder, razão pela qual não poucas vezes trabalha contra a democracia.
O parlamentarismo, ao contrário, pela sua própria formulação de conquista popular, é sistema plenamente democrático, motivo pela qual nas muitas crises que passa, encontra sempre formas renovadas de preservação da democracia e da vontade popular.
Tanto assim o é, que o período político mais estável que o Brasil conheceu foi à época do 2º Império, em que o país possuía o sistema parlamentar de governo. Por quase 50 anos, mesmo enfrentando uma guerra externa, a que o país foi levado sem preparação, os Gabinetes se sucederam, mas a estabilidade permaneceu.
Rui Barbosa, introdutor do presidencialismo no país, declarava, desconsolado 10 anos após, que preferiria a instabilidade do parlamentarismo à irresponsabilidade do presidencialismo, em “desabafo” que deveria ter feito ou fazer pensar todos os constituintes (originários e derivados) brasileiros de todas as épocas.
O presidencialismo no Brasil apenas trouxe insegurança política, com períodos de ditadura real e outros de débil democracia. De 1889, quando uma quartelada derrubou a monarquia do Brasil, ao ponto de Marechal Deodoro pensar ter derrubado o Gabinete e não a monarquia, o Brasil conheceu revoluções periódicas (1918, 1924, 1930, 1937, 1954, 1957), sucumbiu à ditadura de 1930/45 e ao regime de exceção (1964 a 1984), precisando de seis constituições para conformá-lo (1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988). E nestes 28 anos de Constituição, tivemos um “impeachment” presidencial e, ainda, o desastre político e econômico do governo Dilma, que tem alimentado pedidos de “impeachment”, pois carrega o que a imprensa mundial denomina de o governo que propiciou o maior esquema de corrupção da história do mundo.
Em termos históricos, portanto, a experiência presidencialista não foi positiva e a parlamentarista não foi, de rigor, negativa, excetuando-se o “Quasimodo Parlamentar” editado, quando da renúncia de Jango.
Em termos de desenvolvimento atual, não obstante os desacertos da política econômica governamental, graças a empresários e empregados, mantém relativa confiabilidade externa, não obstante o esforço governamental em destruí-la. Não há, pois, razão para não se adotar o sistema parlamentar que, por ser o mais estável no concerto das nações, representa também a forma mais democrática e civilizada de governo.
Quando se diz que o Brasil não pode adotar o parlamentarismo porque não tem partidos políticos, deve-se responder que o Brasil não possui partidos políticos porque não adotou o parlamentarismo.
Nem se diga que, por ser um Estado Federativo, o Brasil, dificultaria o exercício dessa forma mais civilizada, pois deve-se lembrar que a Alemanha, Canadá e Austrália também o são e o parlamentarismo têm permitido a segurança das instituições, mesmo nas crises políticas, sociais e econômicas mais graves que viveram. Nestes países, todavia, as funções legislativas são diferentes.
No parlamentarismo, eleito um irresponsável é derrubado pelo Parlamento por um voto de desconfiança. No presidencialismo, sua derrubada, sem ruptura institucional, só se dá através do processo traumático do “impeachment”. Não há “voto de desconfiança” capaz de afastá-lo, mesmo que tenha deixado de ter a confiança do povo que o elegeu.
Em outras palavras, como nenhum governo administra sem a confiança do povo, o parlamentarismo encontrou os meios para, sem traumas, afastar o mau governo e substituí-lo por governos que recebam o apoio popular atual. No presidencialismo, um governo que não conta com a confiança da sociedade e abalado por toda a espécie de vícios, inclusive por atos provados de corrupção, só pode ser afastado por maioria qualificada no Parlamento. No Brasil, 2/3 dos parlamentares da Câmara e do Senado.
Por isto, a história brasileira é rica em golpes de Estado, sem contar um suicídio e um “impeachment”. Ostenta, nossa República, nítida demonstração de fracasso do sistema adotado, lembrando-se que, até mesmo a monarquia, quando conviveu com o parlamentarismo, teve maior duração democrática do que qualquer período presidencialista.
Lembro que, com voto distrital (puro ou misto), Banco Central autônomo, burocracia profissionalizada, além de cláusula de barreira para criação de partidos e fidelidade partidária, com poucas exceções para mudança de legendas, todas elas com nítida conformação ideológica, o parlamentarismo funciona, como ocorre nos países desenvolvidos e emergentes, inclusive alguns com crises religiosas graves, como a Índia, ou pequeno desenvolvimento, como a Tailândia.
O Brasil, com 35 legendas – não conheço nenhum filósofo capaz de formular 35 ideologias políticas distintas – é prova inquestionável de que o sistema é propiciador de variadas negociações pouco saudáveis, na troca de cargos e favores. Não sem razão nossa carga tributária é superior à dos EUA, Coréia do Sul, Japão, Suíça e semelhante à da Alemanha, em grande parte para atender exclusivamente aos governantes e seus amigos enquistados ou agregados às delícias do poder.
Entendo que o momento é de amadurecimento das instituições e o Brasil necessita, de uma vez por todas, abandonar aquelas que trazem resquícios das monarquias absolutas, visto que, no presidencialismo, o Poder Executivo é hipertrofiado e os Poderes Legislativo e Judiciário enfraquecidos.
Só teremos plenitude democrática e uma carta suprema mais estável se abandonarmos, definitivamente, o sistema presidencial de governo, principal causa de todas as crises políticas que vivemos no século XX e começos do XXI.
Se tivéssemos o sistema parlamentar, já há algum tempo a crise recessiva na qual estamos afundando, teria sido superada. O governo Dilma constitui, pois, nítida demonstração da falta que faz o parlamentarismo.
Quando os índices de sua popularidade rondam permanentemente a casa dos 10% é que, de há muito, o índice de confiança do brasileiro deixou de sustentá-la, algo que também há muito tempo, em sistema parlamentar de governo, teria permitido, sem traumas, seu afastamento.
Chegou, portanto, o momento de o povo começar a considerar o sistema parlamentar de governo para votar, nas próximas eleições, naqueles que estiverem dispostos a defendê-lo, propugnando interesses nacionais acima de interesses pessoais.