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O parlamentarismo

28 de fevereiro de 2010

Presidente do Conselho Editorial e Consultor da Presidência da CNC

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Inicio estas reflexões deixando claro que não nos será possível ir muito longe na compreensão das ideias políticas sem a verificação de como estão elas relacionadas com os fatos políticos.
Assim, não há como deixar de lembrar os passos da Monarquia e os primeiros do regime republicano. É que a objetividade e a imparcialidade que a perspectiva histórica possibilita tornam viável, nos dias presentes, uma avaliação mais exata das circunstâncias que presidiram, entre nós, o destronar da Monarquia e a adoção do regime republicano.
E uma plêiade de historiadores da mais alta suposição, brasileiros ou não, refletindo sobre a época histórica em questão, tem a quase unanimidade, concluindo de forma uníssona: ao contrário do que registrado em muitos outros confins, não se acusou, entre nós, uma censura ideológica, que tornasse a Monarquia um dado insuportável. Dir-se-ia, mesmo, que ela terminou muito mais por erros de cálculo e equívocos pessoais, que geraram reações do mesmo nível, que por intolerabilidades institucionais. Nem mesmo a tensão dialética Parlamento-Coroa atingiu, em momento algum, os níveis agudos que em outros países fermentaram o fortalecimento da aspiração parlamentarista e o enfraquecimento do centralismo decisório. A composição do Congresso era marcantemente reveladora da predominância, em seus quadros, de uma elite, que só tinha a beneficiar-se do sistema da Monarquia, e da relativa impunidade, ou irresponsabilidade jurídica, que o envolvia.
Apontam-se, é verdade, vários incidentes ou eventos históricos como formadores do caldo de cultura em que a República acabaria por crescer e afirmar-se. Assim se referem, por exemplo, à questão “Christie”, ou mesmo à questão religiosa. Ora, a primeira, por si só, tenderia a confinar-se em mero episódio disciplinar militar, revelador da impetuosidade da oficialidade jovem, mas incapaz de fazer o aluir das instituições monárquicas. E a segunda, com os meandros misteriosos que o conflito Igreja-Maçonaria propunha, teria, cedo ou tarde, uma inelutável vocação para a discrição antes que para o embate aberto.
Cremos que o passo decisivo, que instabilizou o regime, há que ser buscado no despertar, em nosso Exército, de um espírito triunfalista e afeiçoável ao exercício do poder. E tal despertar se deu, sem dúvida, na guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Data de então a consciência, por parte do Exército, de sua importância estrutural e, por consequência, de seu poderio institucional. Uma vez espicaçado tal estado de espírito, bastará uma fagulha para que o brasileiro entre em combustão. E essa fagulha — mais que isso, verdadeira bomba incendiária — adviria com a abolição da escravatura: a incipiente burguesia econômica, a nascente plutocracia rural viu, ali, grave ameaça a seus privilégios. E personificou no soberano a origem de todo o mal. Estava pavimentado o caminho que conduziria à aliança da força militar com a força econômica, episódio mais tarde tantas vezes repetido, forjado para a derrubada não tanto da Monarquia, mas do monarca. E tanto assim foi que, anedotas, algumas picarescas em demasia, cercam os momentos que impeliram um renitente Deodoro a proclamar a República. E, tanto assim, foi que adotamos um modelo presidencialista muito mais próximo da Monarquia ortodoxa do que da acenada república democrática. E dessa maneira, pela primeira vez, nos afastamos das inspirações francesas e nos refugiamos numa adaptação “tupiniquim” do Presidencialismo norte-americano. Com isso pretendíamos, à brasileira, casar nossa já visível nostalgia monárquica com as proclamadas visões de modernidade que a República ensejaria.
O Presidencialismo brasileiro é filho direto e dileto da Monarquia. Historicamente mesmo, nossos primeiros presidentes foram personalidades que, ao tempo do reinado, haviam ocupado postos de relevância. Nessa qualidade, frequentemente identificavam as fraquezas estruturais dos últimos tempos da Monarquia ao Parlamentarismo, à divisão (quase oposição), característica de então, entre o Gabinete e o Imperador. Soma-se a isso o fascínio do modelo norte-americano (presidencialista) e o nosso proverbial subdesenvolvimento cultural (naturalmente traduzido também na concepção de nossas instituições) e ter-se-á a gênese do Presidencialismo imperial, que as vicissitudes e agruras de nossa vida político-econômica só têm adubado.
De braços dados com essa deformação, temos a também genética, pertinente à estrutura federativa. Não obstante a opção federativa, em verdade, sempre fomos, politicamente, pragmaticamente, um Estado unitário. A supremacia da União estava presente na mente do próprio redator de nossa primeira constituição republicana. As vicissitudes, determinantes da acromegálica desenvoltura do Poder Executivo, também vieram a determinar a ênfase marcante que, historicamente, a União Federal experimentou.
A tudo isso ocorreria somar-se novo ingrediente: a importância crescente do Exército nacional em nossa história. Como instituição armada federal, submetida ao Poder Executivo, o Exército, necessariamente, teria de ver sua importância magnificada, à medida que a União e o Executivo se fortalecessem. Entretanto, não bastasse isso, alguns fatores endógenos que os estudiosos têm assinalado também constituíram reforço à importância do Exército, e o somatório de tudo isso terminaria por animá-lo à assunção de um novo papel no Estado brasileiro. Tais fatores endógenos merecem referência, breve que seja. Temos: 1º – o caráter fechado da instituição, mais ou menos infensa, no seu dia a dia, ao trânsito aberto com a comunidade. Isso permitiu ao Exército, através de muitas décadas de extrema mobilidade social, manter invejável coesão estrutural e ideológica; 2º – o caráter tradicionalmente aberto da instituição nos seus modelos de captação de seus integrantes. Isso possibilitou ao Exército crescer e expandir-se mais que as Armas congêneres, além de difundir na população importante aura de aceitação e apreço; 3º – o constante treinamento da corporação, o que a coloca, bem como a seus integrantes, a cavaleiro das instabilidades sociais, ao contrário do que registrado quanto a outros segmentos sociais, também representativos, mas que se viram ultrapassados pelo ritmo dos acontecimentos.
Explicada esta circunstância, gerada por tais fatores endógenos, temos que somar dois outros, esses exógenos, se aí pudermos entender o motivo de ter, a partir de 1964, e como seria imperioso, obrigatório que se fizesse, a partir de uma premissa, pelo menos de uma previsão histórica para que pudesse chegar até o problema de 1964.
E aí, a partir de 1964, o Exército troca o seu até então tradicional papel de poder moderador pelo desempenho da tarefa de tutor e gestor da Nação. O momento mundial — marcado pela tensão Ocidente X Oriente, comunismo x capitalismo — e nossa dependência externa aos Estados Unidos (determinante do papel que exerceríamos na estratégia mundial) são fatores nitidamente endógenos que não poderíamos deixar de somar.
Houve, é certo, um instante de hesitação no Exército e verdadeiro momento de transição em nossa história: a experiência “parlamentarista” de João Goulart. Recorde-se: o Exército não queria abandonar seu papel moderador; mas também não desejava mais entregar a chefia do Estado a qualquer civil. Daí a imposição de um Parlamentarismo artificial, canhestro, inviável, que, ao primeiro instante em que, fossem amainados os fatores de pressão, seria, como foi, novamente destronado pelo Presidencialismo.
Necessário desfecho de todo esse panorama foi o golpe de 1964 e o autoritarismo que ele desenvolveu. As crises de Deodoro, Floriano, Bernardes e Getúlio Vargas tinham sido superadas sem arranhões ao poder civil, porque outra a concepção do poder, sustentada naqueles instantes. Infelizmente, em 1964, o desmesurado, paulatino e não controlado crescimento da União e do Executivo encontrou sua principal força armada — o Exército — doutrinariamente decidida a exercer novo papel. Daí o túnel escuro do qual custamos a sair. Mas, ao dele sairmos, não soubemos usar a inventiva para prevenir futuras recaídas. Era imperioso buscar uma equação de poder que refreasse a proverbial inclinação de nosso Executivo ao desempenho autocrático; e que implicasse a participação de toda a Nação, através de seus representantes, na condução da coisa pública. É aí que surge a inspiração do Parlamentarismo, claro que autêntico e muito diverso do adotado em 1961.
Cremos que o Parlamentarismo é a única opção política viável para assegurar a nosso país um futuro sem os acessos e recidivas dos golpes de Estado periódicos, repetitivos e até previsíveis. Ademais, nunca essa hora foi tão oportuna, uma vez que a situação emergente não mais permite o fanatismo sectário, as provocações estéreis ou a prepotência arbitrária.
A grande realidade é que a solução político-institucional não pode ser obra de uns poucos — colocados os demais como meras figuras contemplativas — mas depende de toda a sociedade, e, sobretudo, da classe política.
Tal solução não pode ser obtida através de paliativos contidos em simples emendas constitucionais, já que a nação quer e exige ser tratada com seriedade.
Num regime democrático, os governantes, em todos os níveis, são eleitos pelo povo, e democracia pressupõe alternância de poder, o que leva a dizer, em outras palavras, que a Nação está cansada de assistir ao jogo de aparências que não mais consegue escamotear os interesses pessoais.
Se a alternância de poder não significa o fim do mundo — como preconizam os coveiros da democracia, com o slogan de que “o povo ainda não está preparado para votar” —, a prática de eleição não pode nem deve significar veículo para a extravasão de idiossincrasias ou abusos de ordem pessoal.
Por tudo isso, volto à minha crença de que o Parlamentarismo é a única opção política viável, podendo assegurar ao nosso país um futuro sem a presença dos que se julgam reizinhos.
É imperioso que criemos mecanismos de difusão do poder e de magnificação do sentido do voto popular. Somente o Parlamentarismo evitará a excessiva concentração de poder nas mãos de um ou de um grupo restrito. Somente o Parlamentarismo devolverá aos Estados membros o peso específico que lhes deve caber, reduzindo a União ao que jamais deveria ter deixado de ser — elemento aglutinador e coordenador das forças e aspirações nacionais. Somente o Parlamentarismo reforçará o papel da vontade popular, manifestada através de repetidas consultas eleitorais, na formação dos escalões que devem conduzir o desempenho da atividade pública. E, como consequência — é ao menos nossa esperança —, as corporações nacionais ficarão atreladas aos interesses nacionais e às aspirações populares, proclamadas no exercício frequente e saudável do sufrágio universal. Exatamente o inverso, pois, do que nossa história, recente ou não, tem registrado.
Pena que se tenha perdido essa oportunidade por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte.