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O poder judiciário e o setor de combustível

31 de agosto de 2006

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Nos últimos dez anos, o Poder Judiciário exerceu uma influência considerável no setor de combustíveis e, sem embargo da evidente boa-fé e boa intenção dos julgadores, nem sempre a intervenção se revelou benéfica à consolidação das novas instituições e da concorrência leal.

Ao Judiciário, no entanto, não pode ser creditada a culpa por esta situação, já que teve ele que se defrontar com uma verdadeira avalanche de modificações institucionais e tributárias que tumultuaram, sobremaneira, o ambiente econômico em que as decisões tinham que ser proferidas.

Nos últimos sessenta anos, o setor de combustíveis foi fortemente controlado pelo Poder Executivo. Desde a campanha denominada “O Petróleo é Nosso” e da criação da Petrobrás, esse segmento foi tratado pelos Governos, especialmente no período militar,  como uma questão de “segurança nacional”.

Nesse contexto, todas as variáveis relevantes eram rigidamente controladas pelo Estado que ditava desde os preços a serem praticados até quando, onde e em que condições se podia abrir uma determinada empresa. No segmento da produção e refino, a Petrobrás era monopolista de fato e de direito. Na distribuição, meia dúzia de empresas controlava todo o mercado.

A quebra do monopólio da Petrobrás e a desregulamentação ocorrida na segunda metade da década de 1990 vieram romper com esse sistema então vigente. A intenção declarada da política governamental era de estabelecer uma ‘contestação’ ao poder da Petrobrás e uma ampliação da produção e do refino, por um sistema que se mostrasse atrativo aos investimentos estrangeiros. Na distribuição, buscou o Governo o aumento da concorrência pela facilitação da criação de novas distribuidoras. No varejo, igualmente, o mote era permitir que apenas as posturas municipais disciplinassem a instalação de novas empresas.

As medidas teoricamente tendentes a criar uma estrutura de mercado mais moderna e concorrencial esbarraram na absoluta incapacidade de fiscalização do Estado. A Agência Nacional do Petróleo foi criada, em 1997, contando com uma estrutura de fiscalização manifestamente insuficiente.

Para fiscalizar um mercado de bilhões de dólares, com milhares de empresas, dispunha a recém-criada autarquia de um quadro de fiscais  que mal chegava a vinte pessoas. Vários Estados da Federação não contavam sequer com um único fiscal da  Agência.

Além disso, a própria inexperiência e, porque não dizer, arrogância do órgão regulador nos seus primeiros anos acabou por distanciá-lo dos agentes econômicos, fazendo com que a ANP se transformasse no palco de inúmeras experiências ‘acadêmicas’ que estavam completamente divorciadas da realidade do mercado.

A própria extensão dos poderes da novel figura da “Agência Reguladora” era – e em boa medida ainda o é – causadora de infindáveis discussões, dentro e fora do Judiciário.

Em síntese, à época tínhamos uma Agência recém-criada, com estrutura de fiscalização pífia, excessivamente voltada para a academia e distante do mercado, inexperiente e um quadro institucional em que os seus poderes não estavam devidamente esclarecidos.

Para completar esse circo de horrores, tivemos também, ao longo desse período, uma profunda alteração das regras tributárias. Passamos de um  regime da Constituição anterior, em que  tínhamos um “Imposto Único”, incidente sobre combustíveis e minerais, para uma colcha de retalhos que faz com que os combustíveis estejam sujeitos ao ICMS, Pis, Cofins e a CIDE – Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico.

Dizem os especialistas que “imposto bom é imposto velho”. Trata-se da mais pura verdade. Com a criação de todos esses novos tributos – alguns quase inéditos, à época,  como a CIDE – um sem-número de contestações não tardaram a ocorrer. Isso sem falar nas inconveniências decorrentes da tributação ‘estadualizada’, no ICMS, em que alíquotas diferentes para os mesmos produtos se transformam em um precioso combustível da fraude e do descaminho.

Aproveitando-se desse quadro, juntamente com empresas sérias e comprometidas, surgiram inúmeras empresas “novas entrantes” criadas com o exclusivo propósito da burla da lei e do lucro fácil. Essas empresas encontraram, no terreno fértil das incertezas institucionais e legais o habitat ideal para prosperar.

Os últimos anos da década de 1990 e os primeiros cinco anos do novo milênio foram, indubitavelmente, terrivelmente massacrantes e desestimulantes para todos os empresários que trabalham licitamente –  pagando seus tributos e vendendo produtos de qualidade – e vendo, no estabelecimento vizinho, um concorrente vender seu produto muito mais barato, sem o recolhimento dos impostos devidos ou com inenarráveis vícios de qualidade.

Muitas empresas, à essa época, deixaram de recolher bilhões de reais em impostos aos cofres públicos, tornando-se concorrentes absolutamente desleais, muitas vezes exaltados pela própria imprensa, também de boa-fé,  como exemplos de empresários corretos e de modicidade nos preços de revenda.

Poucos consumidores ou autoridades sabem, mas de cada Real pago na bomba de combustíveis, mais de cinqüenta por cento são tributos incidentes sobre o produto.  Essa voracidade fiscal, além de inibir a própria atividade econômica, transforma o sonegador em um concorrente imbatível, que vende seus produtos a preços inalcançáveis.

Como a maioria dos competidores que deixaram de pagar esses tributos era beneficiária de decisões liminares, muitas vozes se levantaram para responsabilizar o Poder Judiciário pelas mazelas dessa cadeia produtiva. Alguns apoiaram-se em casos isolados de improbidade e corrupção – existentes em qualquer atividade humana – para criticar o Judiciário como um todo, como se não se soubesse que a imensa e esmagadora maioria dos seus componentes são pessoas absolutamente comprometidas com a honestidade e a correção.

Felizmente, hoje comemoramos outros tempos, e o próprio Judiciário encarregou-se de separar o joio do trigo. A própria magistratura percebeu a extensão dos efeitos de algumas dessas decisões e notou, igualmente, os maus propósitos de alguns dos seus postulantes, acautelando-se quanto a essas situações. Atualmente, não temos conhecimento, salvo melhor juízo, de nenhuma decisão, de natureza tributária, liminar ou definitiva,  que faculte ao beneficiário a aquisição e revenda de combustíveis sem o pagamento dos tributos correspondentes.

As decisões atualmente existentes determinam ao contribuinte a obrigação de depositar, em juízo, os valores contestados, evitando que empresas inidôneas economizem milhões de reais em impostos e desapareçam sem deixar vestígios, deixando à míngua os cofres públicos e na bancarrota os comerciantes honestos que com eles concorrem. É o quanto basta para sanar esse grave problema. Desde que haja uma garantia verdadeira de que o imposto – se julgado devido – será pago, a decisão é “neutra” do ponto de vista concorrencial, não trazendo prejuízos ao mercado.

Nesse caso, o contribuinte exerce seu sagrado direito constitucional de litigar e de recorrer ao Judiciário para não pagar o que não seja devido, mas se garante também que,  se vitorioso o fisco, seu crédito não desaparecerá.

Não obstante a sensível melhora no quadro geral, ainda há alguns problemas graves no horizonte, que precisarão ser dirimidos. O maior deles, que ainda remanesce daqueles tempos difíceis, diz respeito à incerteza quanto à extensão do  poder regulamentar das Agências Reguladoras.

Muitos juristas insistem que a autarquia não pode regular por “resolução administrativa” e que apenas a lei pode criar obrigações aos administrados, entendimento evidentemente respeitável. Outros, ao contrário, adotam a posição que julgamos mais acertada e flexível, reconhecendo à Agência Reguladora uma expertise e agilidade que jamais terá o legislador, para – nos limites da lei e nunca contra legem – regular as minúcias da atividade econômica.

Evidentemente, a última palavra sobre essa tormentosa questão –  que afeta não apenas o setor de combustíveis mas todos os setores regulados –  caberá ao próprio Supremo Tribunal Federal, já que a invocação recorrente é de inconstitucionalidade dessas regras.

Qualquer que seja o rumo tomado – embora esperemos que prevaleça o segundo entendimento, fortalecendo os órgãos reguladores – urge que essa decisão não tarde, para que, conhecedores das regras, possamos fortalecer e sedimentar as nossas instituições.

Como derradeira mensagem, queria deixar aqui um registro e um agradecimento: ao contrário do que muitos já disseram, entendo que o Judiciário, no cômputo geral de erros e acertos, vem dando grande contribuição para ajudar a melhorar e consolidar o nosso quadro institucional regulatório.

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