O prazo de garantia na empreitada e suas polêmicas: propostas de aprimoramento no projeto de reforma do Código Civil

3 de fevereiro de 2025

Flávio Tartuce Relator-Geral da Comissão de Juristas de Reforma do Código Civil / Professor da Escola Paulista de Direito

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Um dos dispositivos mais polêmicos e que gera os maiores debates a respeito da empreitada, pelo atual tratamento no Código Civil, é o artigo 618 da codificação privada, cuja transcrição é importante para a devida análise técnica:

“Art. 618 – Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo.

Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”.

O dispositivo traz dois prazos diferentes, tendo grande relevância prática para os negócios em questão. No caput está previsto prazo de garantia legal, específico para os casos de empreitada ali mencionados, a ser respeitado pelo empreiteiro. O prazo de cinco anos refere-se à estrutura do prédio, a sua solidez e à segurança do trabalho, tendo natureza decadencial.

Em relação ao parágrafo único, filio-me à corrente doutrinária que aponta que há prazo específico para a resolução ou redibição do negócio celebrado de 180 dias, contados do aparecimento do problema, desde que o direito esteja fundado na presença do vício mencionado no caput, ou seja, um problema estrutural do prédio. Esse prazo é também decadencial, pois a ação redibitória é essencialmente constitutiva negativa.

Por outra via, para que o dono da obra pleiteie perdas e danos em decorrência de alguma conduta lesiva provocada pelo empreiteiro, deve ser aplicado o artigo 206, §3.o, inciso V, do CC/2002 – prazo prescricional de três anos –, em casos de sua responsabilidade extracontratual; ou mesmo o artigo 27 do CDC, que consagra o prazo de cinco anos, em havendo relação jurídica de consumo.

No mesmo sentido, aliás, prevê o Enunciado no 181, aprovado na “III Jornada de Direito Civil”, que “o prazo referido no artigo 618, parágrafo único, do CC refere-se unicamente à garantia prevista no caput, sem prejuízo de poder o dono da obra, com base no mau cumprimento do contrato de empreitada, demandar perdas e danos”. Nesse contexto, e em minha opinião doutrinária, deve ser tida como superada a Súmula no 194 do Superior Tribunal de Justiça, de 1997, que consagrava prazo prescricional de 20 anos para se obter, do construtor, indenização por defeitos da obra.

No que concerne ao prazo para se pleitear indenização por descumprimento contratual que ocasiona prejuízos, a gerar a responsabilidade civil contratual do empreiteiro, estou alinhado à posição do Superior Tribunal de Justiça que aplica o prazo geral de 10 anos, do artigo 205 do Código Civil de 2002. Nesse sentido, vejamos correta ementa do Tribunal da Cidadania:

“(…). Possibilidade de responsabilização do construtor pela fragilidade da obra, com fundamento tanto no artigo 1.245 do CCB/1916 (artigo 618 CCB/2002), em que a sua responsabilidade é presumida, ou com fundamento no artigo 1.056 do CCB/1916 (artigo 389 CCB/2002), em que se faz necessária a comprovação do ilícito contratual, consistente na má-execução da obra. Enunciado no 181 da III Jornada de Direito Civil. Na primeira hipótese, a prescrição era vintenária na vigência do CCB/1916 (cf. Súmula 194 do STJ), passando o prazo a ser decadencial de 180 dias por força do disposto no parágrafo único do artigo 618 do CC/2002. Na segunda hipótese, a prescrição, que era vintenária na vigência do CCB/1916, passou a ser decenal na vigência do CCB/2002. Precedente desta Turma. O termo inicial da prescrição é a data do conhecimento das falhas construtivas, sendo que a ação fundada no artigo 1.245 do CCB/1916 (artigo 618 CCB/2002) somente é cabível se o vício surgir no prazo de cinco anos da entrega da obra. 6. Inocorrência de prescrição ou decadência no caso concreto” (STJ, REsp 1.290.383/SE, 3a Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 11.02.2014, DJe 24.02.2014).

Na mesma linha, mais recentemente, merece ser colocado em destaque outro acórdão superior, que traz interessante debate sobre a incidência de prazo decadencial previsto no Código de Defesa do Consumidor, no tratamento relativo aos vícios do produto:

“Direito civil e do consumidor. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais. Promessa de compra e venda de imóvel. Embargos de declaração. Omissão, contradição ou obscuridade. Ausência. Acórdão recorrido. Fundamentação adequada. Defeitos aparentes da obra. Metragem a menor. Prazo decadencial. Inaplicabilidade. Pretensão indenizatória. Sujeição à prescrição. Prazo decenal. Artigo 205 do Código Civil. (…). É de 90 (noventa) dias o prazo para o consumidor reclamar por vícios aparentes ou de fácil constatação no imóvel por si adquirido, contado a partir da efetiva entrega do bem (artigo 26, II e § 1.o, do CDC). No referido prazo decadencial, pode o consumidor exigir qualquer das alternativas previstas no artigo 20 do CDC, a saber: a reexecução dos serviços, a restituição imediata da quantia paga ou o abatimento proporcional do preço. Cuida-se de verdadeiro direito potestativo do consumidor, cuja tutela se dá mediante as denominadas ações constitutivas, positivas ou negativas. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no artigo 205 do CC/2002, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a Súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do Código Civil de 1916 (‘Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra’)” (STJ, REsp 1.534.831/DF, 3a Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 20.02.2018, DJe 02.03.2018).

No tocante ao prazo prescricional oriundo dessas situações, deve-se entender que, em regra, no caso de relação civil, o início se dará a partir da ocorrência do evento danoso, ou seja, a partir da violação do direito subjetivo, conforme o Enunciado no 14 CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil. Todavia, também merece respaldo, na linha do último acórdão, a tese que determina que o prazo prescricional tem início do conhecimento da lesão ao direito subjetivo. Ou seja, a teoria actio nata em sua feição subjetiva, que vem sendo amplamente aplicada pelo STJ nas relações civis (ver, ainda: STJ, REsp 830.614/RS, 3a Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 1o.06.2006, DJ 1o.02.2008, p. 1).

No caso de relação de consumo, o prazo terá justamente início da ocorrência do fato ou do conhecimento de sua autoria (artigo 27 do CDC), uma vez que a Lei 8.078/1990 adotou essa vertente subjetiva da teoria actio nata. A título de exemplo, imagine-se o caso de um acidente decorrente da obra, que tenha causado danos físicos ao dono.

De todo modo, como está evidente por meus comentários doutrinários e anotações quanto à jurisprudência, o artigo 618 do Código Civil necessita de reparos urgentes, em prol da segurança jurídica, a fim de deixá-lo mais claro, para a teoria e para a prática. Por isso, a Comissão de Juristas encarregada da Reforma do Código Civil, e nomeada no âmbito do Senado Federal, sugere alterações no conteúdo.

Nesse contexto, propõe-se que o caput do comando passe a prever que “nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução estará sujeito ao regime dos vícios ocultos, durante o prazo irredutível de cinco anos, respondendo pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo”. A menção aos vícios ocultos torna a norma mais compreensível para o aplicador do direito, assim como outras proposições da reforma no mesmo sentido, sobretudo para o artigo 445 da atual Lei Geral Privada.

Em complemento, sobre a decadência para a alegação desses vícios, o novo §1o preverá, de forma bem objetiva e nos termos do citado Enunciado no 181, da III Jornada de Direito Civil, que “decairá do direito à garantia assegurada no caput dono de obra que não notificar o empreiteiro, judicial ou extrajudicialmente, no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contados do aparecimento do vício”.

Por fim, sobre o prazo prescricional eventualmente aplicável, que passará a ser de cinco anos com a aprovação do Projeto de Reforma (artigo 205) – e tanto para os casos de responsabilidade civil contratual quanto extracontratual –, o sugerido §2o do artigo 618 disporá o seguinte: “a decadência do direito à garantia legal prevista neste artigo não extingue a pretensão de reparação de danos em face do empreiteiro, sujeita ao prazo geral previsto neste Código”.

Como se pode perceber, as proposições adotam o entendimento hoje majoritário a respeito da norma, pela doutrina e jurisprudência, visando à segurança jurídica, à simplificação dos prazos e à estabilidade das relações privadas. Espera-se, com a aprovação do texto pelo Parlamento Brasileiro, a superação de todas as divergências verificadas nos mais de 20 anos de vigência da atual Lei Geral Privada.

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