O Princípio Constitucional da separação dos poderes e a problemática das políticas públicas do sistema carcerário

21 de julho de 2011

Jorge Antonio Maurique Juiz Federal e presidente da Ajurfe

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
Introdução
O presente artigo busca abordar o problema da superpopulação e da precariedade das casas prisionais no Brasil, suas origens e situação atual, à luz da Constituição Federal de 1988. O enfoque parte da visão de planejamento estratégico do Poder Judiciário brasileiro, missão constitucional do Conselho Nacional de Justiça, consagrada pela reforma do Poder Judiciário, com o advento da Emenda Constitucional n° 45/2004.
 
Longe de apontar soluções “mágicas” ou imediatistas, este trabalho visa a analisar – a partir de casos concretos, tanto na seara administrativa, como no campo jurisprudencial – onde estão localizados os gargalos que ainda prendem o sistema prisional dentro da incapacidade estatal de geri-lo (ou administrá-lo).
 
Origens sociológicas do problema prisional
O problema de fundo da questão prisional concerne, em verdade, à notória incapacidade do Estado em gerir de modo adequado a execução penal. As razões sociológicas são inúmeras para tentar explicar os motivos pelos quais dificilmente políticas de execução penal pautam de modo prioritário as agendas dos governos. A origem do problema, contudo, não se encontra somente em motins, rebeliões e violações sistemáticas de direitos humanos; ela remonta à própria noção de estrutura da sociedade, seus fins e métodos de controle social.
 
O problema social da marginalização dos apenados progrediu para uma especialização da sociedade em confinar aquela minoria da qual buscava se defender justamente por não identificar seus valores anti-solidários no “espírito coletivo”, no “espírito do povo” ou na “consciência coletiva”.
 
Entre as vozes que se insurgem contra esse mecanismo, estava a de Foucault, o qual pugnava por uma reforma desse sistema punitivo de confinamento para “(…) fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade”.
 
Inegável, todavia, submeter o controle social dos homens à tutela oficial do Estado, por meio do aprimoramento do Estado de Direito, definido pelas inter-relações de neutralidade, uniformidade e previsibilidade, sustentáculos de aplicação do poder governamental, que surge com a produção normativa e impessoal do legislador e com a aplicação dessas no caso concreto pelo seu administrador oficial – o juiz.  Nesse diapasão, Habermas ressalta que “(…) o Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm de ser implantados, porque a comunidade de direitos necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados”.
 
Situação atual: a superpopulação carcerária
Introduzido historicamente o problema em suas raízes sociológicas, mister analisar o resultado na questão prisional atual.
 
Não se pode ignorar a grave situação enfrentada pelas  casas prisionais em todos o país. O Brasil possui atualmente uma população carcerária de 422.590 presos, conforme dados do Sistema Nacional de Informação Penitenciária, levantados em 2007 pelo Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Por outro lado, embora o número impressione, fato é que o problema não está adstrito apenas a países de economia emergente como o nosso: os Estados Unidos da América são frequentemente questionados perante organizações ligadas à proteção dos Direitos Humanos acerca do tópico overincarceration (superpopulação carcerária); a ONG Human Rights Watch estimou que a população de presos em solo norte-americano já seria a maior do mundo, com cerca de 2 milhões de encarcerados em 1999. O Departamento de Justiça norte-americano, através de seu Escritório de Estatística Legal, revela que o número de prisioneiros em dezembro de 2006 alcançou a população de 2.258.983 presos.
 
O problema, portanto, é macro, sistêmico, mundial e complexo. Para um problema de tamanha grandeza, são necessárias soluções igualmente complexas e adotadas com suporte de um número maior de pessoas e instituições. Caso o sistema em si esteja errado, será, pois, necessário revê-lo.
 
Conselho Nacional de Justiça e o controle da execução penal
O planejamento estratégico proposto pelo Conselho Nacional de Justiça em 2007, por exemplo, visa a estruturar o Sistema Integrado da População Carcerária na esfera de atuação do Poder Judiciário. A edição da Resolução nº 33/CNJ, a qual dispõe sobre a criação do mencionado Sistema, é motivada principalmente pela necessidade de conferir efetividade aos direitos da população carcerária, pelo fomento de uma tramitação célere dos processos de execução penal e pela democratização do acesso às informações jurídicas dos condenados. O sistema visa a obter uma visão ampla da situação dos apenados nacionais, orientando a tomada de ações concretas no âmbito do Poder Judiciário, além de facilitar a vigilância dos direitos dos presos, a reeducação, a inserção no mercado de trabalho, a diminuição da reincidência criminosa, além da prática de ações proativas contra a criminalidade interestadual. O Sistema Integrado da População Carcerária possibilita um tratamento individual – e não apenas coletivo – dos presidiários, propiciando melhor adequação.
 
Na esteira do aperfeiçoamento do referido Sistema, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 47/CNJ, a qual versa sobre a inspeção nos estabelecimentos penais pelos juízes de execução criminal e permite que, desse modo, sejam colhidos os dados relevantes da população carcerária e da observância dos direitos dos presos assegurados na CF/88 e na LEP.
 
Separação dos Poderes e políticas públicas
Contudo, deve ser lembrado que não é de competência isolada do Poder Judiciário a definição das políticas públicas relativas à administração penitenciária, não podendo, ainda, imiscuir-se nos assuntos pertinentes ao Poder Executivo, sob pena de violar o princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF/88). A questão, é fundamentalmente de eleição de prioridades governamentais de competência do Poder Executivo, cuja efetivação possui seus mecanismos próprios no atual regime democrático. Qualquer invasão dessa competência poderia criar situação de conflito que, eventualmente, poderá redundar em usurpação dos critérios de oportunidade e conveniência privativos da Administração. É ela que detém o planejamento de curto, médio e longo prazo, na busca da melhor acomodação dos presos, não se mostrando razoável desconsiderá-los mediante tomada de medidas graves e de enorme repercussão no sistema como um todo, como ocorre no caso de uma interdição prisional.
 
O Estado, portanto, possui limitações em seu campo de atuação. Esse limite de atuação do Estado foi conceituado na cláusula, advinda da jurisprudência constitucional alemã, da “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen).
 
Essa doutrina foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião dos julgamentos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45/DF, de relatoria do e. ministro Celso de Mello, que advertiu que:
 

“(…) a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (…) Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa –, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável, ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado – e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico –, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.”

 
Assim, na presente questão prisional, em face da inércia do Estado, há verdadeiro conflito de princípios constitucionais – i.e., os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade versus os princípios da reserva do possível e da separação dos Poderes.
 
Esse conflito é evidenciado pelo permanente e disseminado problema da acomodação dos presos no Brasil e da necessidade de se buscar meios racionais para melhorar tal situação, sob pena de tornar o art. 85 da LEP letra morta em sua determinação de lotação compatível dos estabelecimentos penais com as suas estruturas e finalidades.
 
Essa compatibilidade de lotação dos presídios estaduais foi igualmente prevista nas normas sobre presídios federais. Com a novel regulamentação da transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima, consubstanciada na Lei n° 11671/2008, ressalvou-se, no art. 11 e parágrafos, que a lotação máxima do estabelecimento não será ultrapassada, além do que o número de presos será, na medida do possível, mantido abaixo do limite de vagas, para disposições em casos emergenciais.
 
Questiona-se o que será feito quando tal limite invariavelmente for superado; aliás, o que dirão os tribunais, quando julgarem os conflitos de competência entre os juízos de execução penal estaduais e federais (art. 9° do referido diploma), acerca da vedação estabelecida no mencionado dispositivo?
 
Considerações finais
Definida a natureza do ato de interdição dos estabelecimentos prisionais como sendo um ato administrativo típico, ou seja, sujeito ao controle hierárquico da Administração Judiciária, seus critérios de conveniência e oportunidade, tem-se que, conforme visto, a situação de precariedade e de lotação prisional no Brasil não está adstrita a um ou outro estado da Federação. O problema, aliás, não é circunscrito ao nosso país, tomando, inclusive, a pauta de nações muito mais economicamente desenvolvidas. Compreende-se a difícil situação enfrentada pelos executores das medidas de internação e encarceramento, bem como daqueles responsáveis pela fiscalização do cumprimento das penas, de tal modo que não se exige muito esforço para prever que cada caso de interdição decretada pelo Poder Judiciário, em verdade, busca conter uma explosão de uma caldeira de conflitos sob pressão constante e diária, tanto de dentro (entre os próprios apenados), como por fora (crescente criminalidade e parcos recursos do Estado para construir mais prisões).
 
Para identificar e mapear melhor o problema brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça, em seu papel planejador, instituiu a Comissão Temporária de Acompanhamento do Sistema Prisional para analisar a situação dos presídios e execuções de pena em todo o território nacional, por meio de decisão tomada por seu Plenário em 13 de maio de 2008.
 
A ideia lançada é trabalhar as políticas públicas do sistema prisional em três vertentes mais sensíveis, a saber: situação dos presos provisórios, o uso de penas alternativas e as alterações institucionais e legislativas na execução penal. Com a formalização das subcomissões temáticas, o trabalho a ser desenvolvido contará com participação de instituições e autoridades externas ao Conselho, constituindo o marco inicial do compromisso do Poder Judiciário com a melhora da situação carcerária.
 
Hoje, comemoram-se 20 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988. Espera-se chegar o dia em que comemoraremos, também, o fim da necessidade do Poder Judiciário ter de intervir no problema prisional.
 

 
Jorge Antonio Maurique
Juiz Federal do TRF-4ª Região Membro do CNJ