Edição 128
O princípio da realidade como limite ao exercício da discricionariedade administrativa: um novo nome para algumas velhas formas de se argumentar?
31 de março de 2011
José Vicente Santos de Mendonça Procurador do Estado do Rio de Janeiro
Não se assuste o leitor com o título coimbrão. Falaremos do óbvio. De fato: nada mais óbvio do que exigir que os atos administrativos tenham por base situações reais e se proponham a atingir, de modo realista, estados reais de coisas. Se o Direito Público do século XXI não é mais aquele monte de palavras bonitas com resultado zero, também o Direito Administrativo dos dias de hoje é um Direito comprometido com o contexto no qual vai ser aplicado e com o adiantamento das consequências dessa ou daquela possível linha de ação. Thomas Grey escreveu que o pragmatismo jurídico é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados1. O mesmo também é verdade em relação à maioria dos bons administradores públicos.
A história do Direito Administrativo é a história da luta entre o empoderamento do Estado e as diversas formas de se controlá-lo: por intermédio de procedimentos de controle, da participação social, da representação via voto. Nos últimos anos, em função de algumas referências doutrinárias e de certa (ainda relativamente pequena) incidência em decisões judiciais, começou-se a falar, no Brasil, no princípio da realidade como elemento de controle da discricionariedade administrativa. Referência no tema, em nosso país, é o seguinte trecho de Diogo de Figueiredo:
O entendimento do princípio da realidade parte de considerações bem simples: o Direito volta-se à convivência real entre os homens e todos os atos partem do pressuposto de que os fatos que sustentam suas normas e demarcam seus objetivos são verdadeiros.
São os fatos que regularmente ocorrem ou podem ocorrer, na natureza física ou convivencial, e só excepcionalmente, e por disposição expressa, a ordem jurídica acolhe ficções ou presunções.
Em outros termos, a vivência do Direito não comporta fantasias; o irreal tanto não pode ser a fundamentação de um ato administrativo quanto não pode ser o seu objetivo.
O Direito Público, ramo voltado à disciplina da satisfação dos interesses públicos, tem, na inveracidade e na impossibilidade, rigorosos limites à discricionariedade.2
A partir daí, vários autores passaram a se referir ao dito “princípio”. Definição simples está em Raquel Urbano de Carvalho: pelo princípio, não pode qualquer norma administrativa ignorar o mundo dos fatos. “Se há discordância entre determinada presunção e o que restou comprovado na prática administrativa, deve-se atentar para a veracidade das circunstâncias empíricas.3” Em termos dogmáticos estritos, provavelmente não estamos diante de princípio jurídico na acepção de Alexy: exigir que atos administrativos tenham bases e propósitos reais não é norma de incidência gradual. Ou eles preenchem tais requisitos, ou não. Estamos diante de regra jurídica. Mas, distanciando-nos de preocupações acadêmicas, podemos muito bem chamá-lo de “princípio” da forma, como viemos chamando todas as normas – regras ou princípios ou sejam lá o quê – que nos soem importantes.
Problema não é saber se é ou não princípio. Interessante é saber se é novo. Não é. Há – literalmente – séculos se fala que o elemento “motivo” dos atos administrativos significa que as bases de fato e de Direito do ato devem ser válidas e verdadeiras. Isso não é outra coisa senão boa parte das exigências do princípio da realidade. O princípio da realidade também já poderia ser extraído, como regra de interpretação, do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: na interpretação da lei, o juiz, como todo mundo, deve interpretá-la com base em seus fins sociais e nas exigências do bem comum.
Seja princípio ou regra, novo ou velho, fato é que o princípio da realidade já vai se tornando – perdão pelo trocadilho – realidade. Há pelo menos duas referências a ele no STF. No primeiro caso, o Supremo entendeu que havia violação, dentre outros, ao princípio da realidade na prática da Administração de demitir e recontratar professores públicos a cada final de ano letivo como forma de impedir a aquisição da estabilidade do art. 19/ADCT (RE 158.448). No segundo caso, a incidência é remota: o Supremo entendeu que, dentre outros fundamentos, o princípio da realidade tornava possível que medida provisória criasse foro especial por prerrogativa de função para o presidente do Banco Central (ADI 3.289/2005). Também constam referências ao princípio da realidade no STJ (por ex., RESP 64.124-RJ) e em vários tribunais locais.
Seu conteúdo também não é difícil de imaginar. À luz do que se tem escrito e decidido, vamos aqui propor três núcleos conceituais de imposição de deveres prima facie. (i) Pelo princípio da realidade, políticas públicas devem pretender objetivos realistas, isto é, alcançáveis dentro do espaço de tempo em que se proponham a durar. É contrária ao princípio da realidade uma proposta de política pública que se proponha a neutralizar a pirataria de música e de software, no Brasil, em seis meses, ou, mesmo, uma política de erradicação total e absoluta da produção e do consumo de drogas ilícitas. (ii) Também por ele, medidas administrativas devem cogitar apenas de imposições que possam ser razoavelmente cumpridas pelos particulares. É eficácia vedativa que decorre da força normativa dos fatos: o que não pode ser cumprido, não pode se exigir que se cumpra4. Exemplo comum: não adianta, da noite para o dia, impor que quarenta por cento dos empregados de certa empresa sejam deficientes físicos como requisito de participação em licitações. Para a aferição do núcleo de possibilidades das medidas administrativas em cogitação, assume importância a Análise de Impacto Regulatório, tema de destaque nos debates atuais de Direito Regulatório, e certa sensibilidade em relação à dinâmica da vida empresarial e aos limites do núcleo essencial da livre iniciativa privada. Não é possível simplesmente “produzir” bondades e externalizar a conta, num espetáculo de simpatia e benquerença na qual os custos nunca fecham5. Finalmente, (iii) ficções e presunções jurídicas devem se basear em raciocínios extrapolativos realistas: ficções e presunções são imposições legais de atalho que necessariamente decorrem de conjecturas baseadas na realidade. Elas desobrigam parte do ônus argumentativo em favor de certas conclusões do raciocínio jurídico, mas apenas se for possível demonstrar que suas premissas fáticas de base são frequentes e esperadas.
Mesmo assim, em muitos casos atuais ainda se editam leis e atos administrativos afastados de bases reais e de qualquer exequibilidade. São os casos de legislação-álibi e de administração-álibi: o legislador/administrador resolve dar satisfação à opinião de senso comum (e/ou a seus eleitores) impondo obrigações impossíveis de serem cumpridas, assumindo ficções dignas do nome ou propondo finalidades públicas dignas de peças de ficção. Imposição de gratuidades em negócios privados sem indicação de custeio, criação de órgãos públicos fiscais do nada – a imaginação é farta. Conta-se que ainda hoje há ato administrativo, da época da Guanabara, que regula o horário de funcionamento das praias cariocas. E, ao que parece, ainda está em vigor lei municipal carioca que obriga todos os bares e restaurantes a fornecer gratuitamente a todos os que se sentarem um pedaço de pão e um copo d´água. De modo que, ainda hoje, quando a praia de Ipanema fechar, talvez seja uma boa irmos comer um pão de pato no restaurante do hotel Fasano.
Por caricaturais que sejam, as violações ao princípio da realidade mostram dados típicos do nosso pensamento público: ausência de planejamento, externalização de deveres, e, acima de tudo, a tendência a pretender que o mundo mude graças à edição de atos formais. Nunca mudou. O mundo e o Direito estão associados numa interação tensa, dinâmica, muitíssimo complexa. A lição de Konrad Hesse a respeito das normas constitucionais e sua relação com a aderência à realidade também é válida para o Direito Administrativo: nem o Direito Administrativo pode simplesmente descrever a realidade-tal-qual-ela-é (seria um Direito descritivo, sem qualquer pretensão de mudança), nem pode imaginar que a realidade seja um material inteira e absolutamente adaptativo às pretensões de qualquer dever-ser6. O bom caminho é o caminho do meio. Bem disse Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito.” Pois é.
NOTAS _________________________
1 GREY, Thomas. Hear the other side: Wallace Stevens and pragmatist legal theory. Southern California Law Review, vol. 63, setembro de 1990. p. 1590.
2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 2002. Negrito acrescentado.
3 CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Raquel Urbano. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Podium, 2008. p. 95.
4 A expressão tributária de Georg Jellinek foi utilizada por Eros Grau em seu voto na ADIN nº 2.240-7, p. 98. A esse respeito, cf. POGREBINSCHI, Thamy. A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões judiciais e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. In: Revista de Direito Administrativo. n. 24. São Paulo: Atlas, 2008. p. 181-193.
5 A propósito, v. JUSTEN FILHO, Marçal. O Direito Administrativo do Espetáculo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Direito Administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. pp. 65-85.
6 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991.