Edição 146
O Processo Penal como instrumento de garantia: o juiz político
23 de outubro de 2012
Paulo Rangel Desembargador do TJERJ
O papel do Estado no Processo Penal moderno e o escopo primordial da função jurisdicional, como função comprometida com o Estado Democrático de Direito, isto é, como meio de efetivação das garantias constitucionais, é a segurança do cidadão de que, uma vez acusado da prática de um crime, serão assegurados a ele todos os mecanismos de proteção contra atos arbitrários por parte do próprio Estado.
Se o direito penal, dependendo da opção política do estado, trata o indivíduo como inimigo, o processo penal, em sendo democrático, deve tratá-lo como amigo, isto é, assegurar-lhe os direitos e garantias fundamentais durante o curso do processo para, uma vez comprovada sua culpa, condená-lo, se for o caso.
Em regra, nos grandes Manuais de Processo Penal, há a definição de que o processo penal é a “disciplina jurídica que se ocupa com a atuação jurisdicional do Direito Penal, as atividades da Polícia Judiciária, os órgãos respectivos e seus auxiliares”, ou o Direito que faz “atuar as relações já reguladas pelo direito substancial”, ou como diz GIOVANNI LEONE “o processo penal visa em primeiro lugar à declaração de certeza da responsabilidade de um indivíduo e a determinação da sanção” correspondente.
Tais definições colocam o processo penal em uma posição de mero aplicador das sanções do Direito Penal, como uma ciência meramente auxiliar, subsidiária ou supletiva do papel repressor do Estado. Como se o processo penal não fosse, ele sim, um instrumento de garantia do cidadão contra abusos do Estado. O verdadeiro escudo contra atos abusivos do Estado à liberdade de locomoção do indivíduo e o seu status dignitatis.
Essa ideia diminui o papel verdadeiro que a ciência do processo penal desempenha em um Estado Democrático de Direito, isto é, a de um Direito Constitucional aplicado. É o sistema de regras e princípios constitucionais que estabelece um limite no atuar punitivo estatal, permitindo que o indivíduo tenha um devido processo legal justo.
É a limitação do poder punitivo estatal. É o poder sendo limitado pelo próprio poder. Não se deve admitir que o Estado, a todo custo, deva punir o indivíduo que desviou sua conduta do senso comum da sociedade. VOLTAIRE já dizia:
Cumpre punir, mas não às cegas. Punir, mas utilmente. Se a justiça é pintada com uma venda nos olhos, é mister que a razão seja seu guia.
O status de não-culpabilidade do acusado se mantém intacto, enquanto não houver sentença penal condenatória transitada em julgado. Logo, diferente do que se possa pensar, a instauração de um processo criminal é a certeza que o indivíduo tem de que seus direitos serão respeitados. Imagine o indivíduo ser acusado de cometer um crime hoje, e hoje mesmo o Estado puni-lo? Seria o caos no seio da sociedade.
O processo criminal é o espaço de consenso onde o tempo e maturação são necessários para uma perfeita prestação jurisdicional, diante de determinado caso concreto. O processo criminal não foi feito para terminar em um mês, muito menos para se prolongar por anos a fio.
Há que se encontrar um prazo razoável permitindo às partes exercerem o contraditório com a simétrica paridade da participação nos atos que preparam o provimento jurisdicional que se alcança: a sentença.
A jurisdicionalização da pena é uma verdadeira garantia da pessoa tida como infratora do tipo penal, pois, inadmitida sua imposição imediata, substitui-se “o império da violência privada pelo regime do direito”.
E mais: imagina o indivíduo ser acusado e absolvido (ou condenado) com trânsito em julgado e, posteriormente, ser acusado, novamente, pelo mesmo fato? A garantia do caso julgado não permitiria.
A relação entre o Poder Judiciário e o sistema político faz nascer um modelo típico-ideal de juiz, dentre quatro possíveis: o juiz que se torna responsável pela politização do judiciário que nada tem a ver com a sua atuação partidarizada. É o juiz Hermes que está menos preocupado em protagonizar o jogo do direito e mais ocupado em fazer com que o jogo não cesse, este é, o juiz político.
Juiz político pressupõe uma alta autonomia política e uma alta criatividade judicial identificando no magistrado um ator político com a responsabilidade de fazer efetivar direitos e garantias individuais que, muitas vezes, são negados pelo executivo pelas mais diversas razões, acarretando no cidadão uma descrença com a política, necessitando proteção à Constituição e a legislação ordinária dos ataques que maiorias conjunturais e passionais intentarem.
O juiz político faz nascer uma magistratura independente e criativa que não pode ser confundida com “a partidarização da jurisdição”, isto é, substituir o político pelo juiz seria corromper a forma de operação e reprodução dos sistemas jurídico e político das sociedades complexas, reduzindo drasticamente o espaço da democracia. Não é isto que se quer com o juiz político.
CELSO CAMPILONGO explica o juiz político, in verbis:
A função política do magistrado resulta desse paradoxo: o juiz deve, necessariamente, decidir e fundamentar sua decisão em conformidade com o direito vigente, mas deve, igualmente, interpretar, construir, formular novas regras, acomodar a legislação em face das influências do sistema político. Sem romper com a cláusula operativa do sistema (imparcialidade, legalismo e papel constitucional preciso) a magistratura e o sistema jurídico são cognitivamente abertos ao sistema político. Politização da magistratura, nesses precisos termos, é algo inevitável.
Portanto, o magistrado do Século XXI não pode se furtar a operacionalizar e efetivar direitos sonegados através de uma política, cínica, de exclusão social que só agora, de 2003 em diante, foi corrigida a tempo com políticas públicas sérias de inclusão social dos menos favorecidos e daqueles que sempre foram excluídos. Não é difícil identificar, no Brasil, eventuais desafetos da Constituição. Aqueles que, por enquanto, ainda não precisam de direitos e garantias individuais porque, também ainda, não foram acusados.
No processo penal há uma oposição de interesses entre o Estado que quer exercer seu direito de punir os infratores da norma penal e o indivíduo que quer afastar de si quaisquer medidas privativas ou restritivas de sua liberdade.
FIGUEIREDO DIAS ensina com maestria o papel do processo penal em um Estado Democrático de Direito:
O direito processual penal torna-se em uma ordenação limitadora do poder do Estado em favor do indivíduo acusado, numa espécie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidadão. Pois Estado, protegendo o indivíduo, protege-se a si próprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exercício.
É exatamente o respeito aos direitos e garantias fundamentais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo penal e da estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa, tanto na determinação do objeto do processo (thema decidendum), como na extensão da cognição (thema probandum) como nos limites da decisão (ne eat judex ultra vel extra petita partium), que vai impedir que o terceiro que não participou da relação jurídica processual penal seja atingido pelo caso julgado em seu desfavor, quando tratamos dos seus limites subjetivos e da distinção entre o caso julgado e a eficácia natural da sentença. Para tanto, mister se faz primeiro saber que as regras constitucionais de proteção existem; depois aplicá-las ao instituto próprio do caso julgado.
Isso sim é viver num Estado Democrático de Direito com um processo penal como instrumento de garantia, dando ao indivíduo a certeza de que seus direitos fundamentais serão efetivados no curso do processo e que, se punição houver, é a consequência natural de um processo criminal banhado pela Constituição, pois o processo penal de um Estado é o termômetro do conteúdo autoritário ou democrático de sua organização social.
É o que penso a cerca do processo penal como instrumento de garantia o que nada tem a ver como punição. Punição pode e deve haver quando comprovada a culpa, mas somente se houver um processo criminal instaurado dentro do devido processo legal e justo. Não há nenhuma incompatibilidade entre respeito às garantias fundamentais e a punição do individuo culpado.