Edição 274
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero sob a ótica da participação feminina nas instituições do Poder Judiciário
30 de junho de 2023
Salise Monteiro Sanchotene Conselheira do CNJ / Desembargadora Federal do TRF4
A equidade de gênero é um grande desafio para o Poder Judiciário que, pela sua natureza, atua em duas frentes – no âmbito interno, com relação a sua composição e ao tratamento de situações voltadas à seara administrativa, e no âmbito externo, no que diz respeito à própria jurisdição sobre o tema.
No Brasil, há compromissos com direitos fundamentais de igualdade previstos na Constituição Federal, na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, no conjunto de leis protetivas do direito das mulheres, tais como a Lei Maria da Penha, a Lei de Importunação Sexual, a Lei de Violência Política de Gênero e aquela que tipifica o assédio. Há tipos penais recentemente criados capazes de proteger a mulher, como o de perseguição (conhecido como stalking), o de causar dano emocional à mulher que perturbe seu pleno desenvolvimento ou vise à degradação mediante diversas condutas e o de assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo.
Todavia, em que pese esse robusto arcabouço legal, o Brasil ainda é um País marcado por desigualdade de gênero.
Agenda 2030 e políticas do Poder Judiciário – A Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), foi internalizada de forma pioneira no Poder Judiciário brasileiro, conforme atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) iniciada no ano de 2018. Trata-se de um plano de ação para pessoas, para o planeta e para a prosperidade, formado por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), desdobrados em 169 metas, que buscam concretizar os direitos humanos.
Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas constitui um dos ODS eleitos pelos países que integram a ONU para compor sua Agenda até o ano de 2030. Cuida-se do ODS 5, dentro do qual destaca-se as metas de acabar com todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas; de eliminar todas as formas de violência contra mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual; e de garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública.
De acordo com a Estratégia Nacional para o Poder Judiciário de 2021 a 2026, quando o ODS 5 estabelece a bússola de uma busca contínua pela igualdade de gênero, é possível um conjunto de ações convergentes em diferentes planos, por exemplo: na jurisdição, adota-se o Protocolo para Julgamento de Perspectiva de Gênero ; na gestão administrativa, promove-se a paridade de gênero na composição das cortes, nas bancas de concurso para ingresso à magistratura, na convocação e designação de juízes e juízas auxiliares, na designação de cargos diretivos, etc., além de combater o assédio e a discriminação; na relação com a sociedade civil, emprega-se mulheres vítimas de violência doméstica nos contratos públicos de serviços contínuos, impactando de modo positivo na comunidade.
Dentre as iniciativas do CNJ para assegurar a igualdade de gênero no âmbito do Poder Judiciário, a primeira delas – e mais emblemática – ocorreu no ano de 2018, quando foram aprovados atos normativos para a instituição da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e da Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário.
Tais políticas foram capazes de abrigar a iniciativa de produção de um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero no Brasil, em cumprimento à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no caso Marcia Barbosa de Souza, em interpretação sistemática do Direito internacional e de leading cases da CIDH.
Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – A adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero está imediatamente relacionada ao acesso à Justiça e, a partir da obrigatoriedade das diretrizes desse instrumento, o Poder Judiciário brasileiro aproximou-se de ações de outros países da América Latina, como o México e a Argentina, voltadas para a concretização de direitos humanos e na sua proteção pelo sistema de Justiça.
O julgamento com perspectiva de gênero é uma metodologia de aplicação do Direito que reconhece a influência que as desigualdades exercem na produção e aplicação do direito, e identifica a necessidade de criar uma cultura emancipatória de direitos para todas as mulheres e meninas.
O Protocolo em questão apresenta ferramentas capazes de auxiliar na neutralização de vieses e estereótipos de gênero em julgamentos, de orientar profissionais de todo o sistema de Justiça para a interpretação do direito da forma que melhor proteja os direitos das mulheres e meninas e de incluir nessa interpretação uma perspectiva interseccional, ou seja, considerando eventuais outros marcadores da diferença, como raça, etnia, classe, idade, origem, religião, que possam influenciar na aplicação do direito.
Profissionais do sistema de Justiça devem prestar atenção ao Protocolo e a sua adequação às necessidades das pessoas para o exercício dos direitos e efetividade das garantias. Em consequência, considera-se impositivo o investimento em capacitação sobre direitos humanos, gênero e raça, em perspectiva interseccional, para atingir plena concretização dos direitos constitucionais e dos direitos humanos previstos em compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Participação feminina – O Protocolo também lança sólida base sobre a lente que devemos usar para enfrentar as desigualdades de gênero existentes no Poder Judiciário. A pesquisa “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”, publicada pelo CNJ em 2019, revelou a desproporção entre cargos da magistratura ocupados por mulheres e o percentual de mulheres na população brasileira, desproporção que se acentua em cargos de desembargadora e ministra. A análise da situação nos dez anos anteriores demonstrou estagnação no acesso aos tribunais pelas magistradas.
Essa tendência de estagnação foi confirmada em dados fornecidos pelos tribunais no Prêmio CNJ Qualidade 2022 e recentemente analisados pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) do CNJ, conforme o relatório “Participação feminina na magistratura – Atualizações 2023” e as conclusões de seu resumo, dentre outras, de que o Poder Judiciário ainda conta com os mesmos 38% de magistradas que se registraram em 2019 (CNJ, 2019), com maior proporção entre as juízas de 1o grau (40%) e menor representação entre desembargadoras (25%) e ministras (18%).
Sobre o ingresso na magistratura, os dados também não apontam tendência de ampliação da participação feminina em nenhum ramo de Justiça, pois a série histórica, de 1988 a 2022, nunca alcançou 50% de magistradas. Os dados ainda indicaram que apenas seis tribunais contam com mais desembargadoras do que desembargadores e que 13 tribunais possuem apenas desembargadores homens.
Portanto, não há prognóstico de paridade de gênero na magistratura; ao contrário, está evidenciado que a mera passagem do tempo não será suficiente para alcançar a promessa constitucional de igualdade e os objetivos previstos na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
No seminário “Mulheres na Justiça: novos rumos da Resolução CNJ no 255” , foram apresentados trabalhos científicos a respeito, notadamente por juízas pesquisadoras do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre gênero, direitos humanos e acesso à Justiça da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), que desenvolvem intensa atividade acadêmica na área.
Segundo a pesquisa “Discriminação por motivo de gênero e barreiras no acesso ao segundo grau de jurisdição no Brasil por magistradas de carreira”, dissertação de mestrado da Juíza Mariana Yoshida (TJMS), pela Enfam, foram identificadas barreiras para as mulheres na carreira da magistratura, como maior afetação da vida pessoal, mais oportunidades de ascensão perdidas, menos indicações para cargos de confiança e promoções, especialmente por merecimento. A partir dessa identificação, do desenvolvimento e aprofundamento teórico, a pesquisa apresentou medidas que teriam impacto na redução das referidas barreiras, as quais foram apresentadas sinteticamente no evento.
Na pesquisa “Perfil das magistradas brasileiras e perspectivas – Rumo à equidade de gênero nos tribunais”, realizada pela Juíza Eunice Prado (TJPE), por meio de parceria entre a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Enfam, foi apresentado o resultado de respostas de uma das questões da pesquisa, acerca de dez medidas para ampliação da participação feminina. As medidas mais pontuadas foram a participação feminina nas bancas examinadoras de concurso (95,3%) e nas mesas de evento das escolas judiciais (95,3%), oportunidades suficientes para as magistradas assumirem cargos na administração dos tribunais (95%) e estímulo à produção científica feminina (94,9%).
Conforme pesquisa “A participação feminina no CNJ: Números e trajetórias” , realizada no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre gênero, direitos humanos e acesso à Justiça da Enfam, apresentada pelas juízas Adriana Ramos de Mello (TJRJ) e Marcela Santana Lobo (TJMA), a composição do CNJ teve 20% de participação feminina ao longo de toda sua história, não possuindo dados públicos sobre autodeclaração de raça que permitisse traçar a participação feminina com essa perspectiva interseccional. O estudo aponta os percentuais de indicação de mulheres para cada órgão responsável pelas indicações de pessoas para o exercício do mandato de Conselheiro ou Conselheira, chegando à conclusão de que, para a cadeira sob a responsabilidade do Senado Federal e para uma das cadeiras sob a responsabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil, nunca foram indicadas mulheres.
Ações afirmativas – Há muito trabalho pela frente, principalmente em termos de ação afirmativa para acesso aos tribunais pelas magistradas. A partir de reflexões propostas no V Seminário Mulheres no Sistema de Justiça: Desafios e Trajetórias, realizado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), passou-se a considerar pontos relevantes sobre o tema: a) a pluralidade na composição do Poder Judiciário é essencial ao acesso à Justiça, ou seja, para o exercício do poder estatal também importa que o corpo de agentes públicos reflita a diversidade da população brasileira para melhor decidir sobre o direito dessa população.; b) existe suporte normativo no ordenamento jurídico brasileiro para ações afirmativas sobre equidade de gênero, diante do status supralegal das convenções internacionais, e os direitos fundamentais a serem concretizados com as ações afirmativas são normas de aplicabilidade imediata; c) ações afirmativas raciais e de gênero precisam ser tratadas em conjunto, sem interseccionalidade, a fim de preservar o espaço de ambas as cotas, em movimento ampliativo e não de redução.
Sobre o tema, é pertinente a análise de três precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF): a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 186, em que afirmou o cabimento da adoção de cotas raciais nas vagas de universidades (Universidade de Brasília/ UnB); a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) no 41 , na qual afirmou-se o cabimento da adoção de cotas raciais para o provimento de cargos e empregos públicos da Administração Pública federal e das Forças Armadas, havendo, em votos de ministros, o reconhecimento de que a ação afirmativa se estende para concursos de remoção e de promoção; e o referendo à medida cautelar na ADPF no 738, no qual se admitiu que a observância de reserva de recursos de campanha, para corresponder às cotas de candidatura para mulheres, teve como consequência a redução de destinação de recursos para candidatos homens negros, centralizando-se os recursos nas vagas fora da cota feminina, em candidaturas de homens brancos.
Notícia publicada sobre relatório produzido em conjunto pela ONU Mulheres e o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa), lançado em setembro de 2022, indica que, no ritmo de evolução atual, a igualdade de gênero está a três séculos de distância, a igualdade em posições de poder e liderança local de trabalho, a 140 anos, e a igualdade de representação nos parlamentos nacionais, a pelo menos 40 anos.
Não há dúvida, portanto, de que as ações afirmativas são necessárias.
A participação feminina nas diversas instâncias judiciais e administrativas é essencial para que as múltiplas facetas da violência de gênero em desfavor do feminino sejam discutidas de forma ampla na jurisdição e na administração da Justiça.
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Notas
1 Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável | As Nações Unidas no Brasil
2 Sustainable Development Goal 5: Igualdade de gênero | As Nações Unidas no Brasil
3 Recomendação CNJ n. 128/2022
4 Resolução CNJ n. 492/2023
5 Resolução CNJ n. 496/2023, que alterou a Resolução CNJ nº 75/2009.
6 Resolução CNJ n. 497/2023
7 Resolução CNJ n. 254/2018
8 Resolução CNJ n. 255/2018
9 Painel de Monitoramento das Decisões da Corte IDH em relação ao Brasil
10 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/05/cae277dd017bb4d4457755febf5eed9f.pdf
11 relatorio-participacao-feminina-na-magistratura-v3-20-03-23-ficha-catalografica.pdf (cnj.jus.br)
12 presskit-participacao-feminina-na-magistratura-v2-2023-03-13-1.pdf (cnj.jus.br)
13 Mulheres na Justiça: Novos Rumos da Resolução CNJ n. 255 – Portal CNJ
14 carta-de-brasilia-mulheres-na-justica-3-3-2023.pdf (cnj.jus.br)
15 1º Relatório Parcial – Enfam
16 2º Relatório Parcial – Enfam
17 dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/764700
18 Histórico de Conselheiros – Portal CNJ, contendo dados publicados após o estudo.
19 https://www.ajufe.org.br/images/pdf/Programac%CC%A7a%CC%83o-VSemina%CC%81rio-Mulheres.pdf
20 ADPF nº 186, Relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 26/4/2012, acórdão eletrônico, DJe-205, d. 17/10/2014, p. 20/10/2014, RTJ VOL-00230-01 PP-00009.
21 ADC nº 41, Relator: Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 8/6/2017, processo eletrônico, DJe-180, d. 16/8/2017, p. 17/8/2017.
22 ADC nº 41 ED, Relator: Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 12/4/2018, processo eletrônico, DJe-087, d. 4/5/2018, p. 7/5/2018.
23 ADPF nº 738 MC-Ref, Relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 5/10/2020, processo eletrônico, DJe-260, d. 28/10/2020, p. 29/10/2020.
24 Igualdade de gênero está a três séculos de distância | ONU News