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“O que mais incentiva a inovação é respeitar patentes”

3 de agosto de 2020

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Desembargadora federal aposentada e sócia do escritório Licks Attorneys, Liliane Roriz foi reconhecida pelo ranking Top 250 Women in IP”, organizado pela publicação Managing Intellectual Property, como uma das 250 advogadas mais influentes do mundo em Propriedade Intelectual em 2020. Lançado em 2013, o guia ranqueia os grandes nomes da área que tiveram desempenho excepcional para seus clientes e empresas no ano anterior. Este ano, apenas outras três brasileiras receberam a distinção.

No início da carreira, Liliane Roriz foi procuradora do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI). Mais tarde, integrou a magistratura por mais de 20 anos. Foi Juíza Federal titular da 21ª Vara Federal do Rio de Janeiro e Desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), além de presidir a 2ª Turma Especializada em Propriedade Intelectual por quatro anos. Ocupou ainda da Direção-Geral da Escola da Magistratura (EMARF), no biênio 2011/2012. Participou do julgamento de variados casos de Propriedade Industrial de alta complexidade, relacionadas a diversas áreas tecnológicas.

Em 2013, após sua aposentadoria como magistrada, passou a atuar como advogada privada, com foco, dentre outras áreas, em patentes, marcas, direitos autorais, concorrência desleal e combate à pirataria. Mesmo aposentada, foi cogitada para compor o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017, com apoio da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

Nessa entrevista, fala sobre as diferentes fases de sua carreira e sobre os desafios e oportunidades do ramo da Propriedade Intelectual no Brasil.

Revista Justiça & Cidadania – A senhora tem uma visão muito abrangente das questões de propriedade intelectual por conta de uma rara experiência tripartite, tendo atuado como advogada pública, quando foi procuradora do INPI, depois como magistrada em vara especializada e agora como advogada no campo privado. Essa experiência lhe permite ter um olhar além do alcance da maioria dos profissionais da área?

Liliane Roriz – Eu adquiri efetivamente um olhar diferenciado, porque ao exercer por cerca de 15 anos a advocacia pública, não só no INPI, mas antes também na Embratur e na Fundação de Tecnologia Industrial, isso me deu uma visão de Estado. Tive um aprendizado forte para entender os sentimentos e os contextos do advogado público e também do servidor público. Há até aquela velha máxima de que o servidor só pode fazer aquilo que está na lei, diferenciado-se do restante da população, que pode fazer tudo o que não é proibido. Essa visão diferente, muitas vezes, quem não passou pelo serviço público se esquece. 

Depois, na magistratura, o treinamento para ter uma visão neutra e imparcial foi também muito importante, me deu o aprendizado do que sensibiliza o magistrado, dos argumentos que podem ser mais sensíveis e melhor avaliados por conta da vivência do juiz. Agora, na advocacia privada, tenho essa visão do lado do jurisdicionado, tanto do ponto de vista do advogado quanto dos clientes, as agruras porque passa uma empresa que necessita, por exemplo, da burocracia estatal. Algo que quem está no órgão público muitas vezes não observa.

Um parêntese, voltando à questão do servidor público, é a tendência dele de sempre dizer não, porque dizendo não ele não corre risco nenhum. Vários órgãos têm para cada servidor uma curva de concessão de benefícios. Se ele diz muito sim e ultrapassar essa curva, pode acender alguma luz em algum lugar. É mais prático para ele dizer não e deixar que o Judiciário resolva a questão. No Judiciário, aliás, pegamos muitas causas que nem entendemos o porquê de terem ido parar lá, porque era óbvio que o servidor deveria ter deferido. Acontece justamente por esse receio de dizer sim muitas vezes.

RJC – Em que pé está hoje o mercado do Direito relacionado à propriedade intelectual no País? O Brasil tem uma legislação adequada de patentes e é um bom cumpridor dos tratados internacionais?

LR – As nossas leis, tanto a Lei de Propriedade Industrial quanto a Lei de Direitos Autorais e as demais leis que compõem esse pacote de legislação de propriedade intelectual atendem sim aos padrões mínimos que constam dos tratados internacionais, do ponto de vista formal. Do ponto de vista material, temos que reconhecer que houve uma evolução muito grande desde a década de 1990, quando os tratados e as leis foram aprovados e sancionados no País, até os dias de hoje. É fácil perceber, por exemplo, a forma que se houve música, que era uma na década de 1990 e hoje é totalmente diferente. O mesmo vale para a forma de assistir filmes. Tudo mudou muito. Na área de patentes as questões também mudaram, mas, no entanto, a legislação continua a mesma. As questões que são discutidas hoje não são as mesmas discutidas naquela época. Então, haveria sim uma necessidade de adequação da nossa legislação ao mundo atual.

Sobre a segunda parte das perguntas, diria que sim e que não. Respeita alguns aspectos, mas não todos, muitas vezes descumpre normas constantes dos contratos. Recentemente tivemos exemplos de decisões do próprio Judiciário que vão de encontro ao que consta nos contratos. O Brasil fica tido internacionalmente como quem não respeita contratos, acordos internacionais e os direitos de propriedade intelectual, o que é uma reclamação que ouvimos bastante no contato com os clientes estrangeiros.

RJC – Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.529 para excluir o parágrafo único do art. 40 da Lei de Propriedade Intelectual, que garante prazo mínimo de dez anos de patente de invenção contados a partir da concessão. Quais eventuais prejuízos o País pode ter com sua eventual exclusão? 

LR – Essa questão é muito mais de cunho político do que jurídico, busca tirar o foco do cerne do problema, que não é efetivamente o parágrafo único do art. 40, mas a ineficiência crônica, sistêmica, do INPI. Não posso deixar de mencionar que o atual presidente, que assumiu no ano passado, teve um olhar diferenciado sobre essa questão e já está conseguindo mudar alguma coisa no status quo do Instituto. O INPI chegava a levar 14 anos para conceder uma patente, o que é inaceitável para aos padrões internacionais. A média para a patente de medicamentos era de 13 anos, a média, mas temos casos de patentes que foram concedidas com 17 anos. Se não houver o parágrafo único do art. 40, se ele for considerado inconstitucional, uma patente que levou 17 anos para ser concedida vai ter efetiva vigência por três anos apenas, o que, obviamente, vai desanimar muitos investidores, titulares de patentes estrangeiras, a trazer seu produto inovador para o Brasil.

O cerne da questão é que o INPI tenha uma atuação semelhante a que os outros escritórios de patentes têm mundo afora, que analisam um pedido de patente em, no máximo, cinco anos. Não passa disso nos grandes escritórios. Aqui no Brasil, o princípio da eficiência que consta na Constituição para os órgãos públicos é totalmente desrespeitado. Se o INPI tivesse uma atuação dentro da média internacional, o parágrafo único do art. 40 viraria um enfeite da lei, para ser usado só em casos excepcionais, mas o que aconteceu é que a exceção virou a regra e a regra virou a exceção, a maior parte das patentes hoje em dia caem no parágrafo único e não no caput do art. 40. (…)

Se o Supremo vier a declarar inconstitucional, fatalmente terá que modular sua decisão em relação às patentes que foram concedidas com dez anos, para que não tenhamos patentes com apenas três, quatro ou cinco anos de vigência.

RJC – Qual estímulo pode ser oferecido à indústria para a fabricação de medicamentos, como as vacinas e os antibióticos, em que o retorno comercial geralmente é insuficiente para cobrir o investimento em Pesquisa e Desenvolvimento?   

LR – Para qualquer medicamento inovador, é importante haver patente. A Ministra Isabel Gallotti do STJ tem uma frase em um voto muito interessante: “Pode parecer a curto prazo e no primeiro momento que não ter patente beneficia o País, mas a longo prazo a falta de proteção a uma patente prejudica muito mais o País, porque o Brasil deixa de ter medicamentos inovadores”. O que mais incentiva a inovação é respeitar patentes. Isso eu costumo falar muitas vezes em minhas sustentações orais por diversos tribunais do Brasil. Não só o Executivo e o Legislativo, mas o Judiciário também tem que fazer esse enforcement de patentes. Se uma empresa ou laboratório infringir uma patente fabricando um produto sem a devida licença, o Judiciário tem que entender o quanto isso traz de prejuízo para o mercado em geral. Não é só uma questão entre duas empresas, é muito mais ampla do que isso.