O seguro habitacional e a jurisprudência dos tribunais superiores

18 de novembro de 2020

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No final de junho passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um passo importante para encerrar de vez uma questão de competência judicial que se arrastava há mais de uma década. Foi o que ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário 827.996/PR, afetado como o tema de repercussão geral 1.011, que delimitou, dentre outras diretrizes, a competência da Justiça Federal nas “causas em que se discute contratos de seguros vinculados à apólice pública” do Sistema Financeiro de Habitação (SFH).

O impacto do tema 1.011 nas coberturas do SFH foi o tema do painel de encerramento do 3º Seminário Jurídico de Jurídicos, realizado nesta quarta-feira (18/11), com transmissão pelo canal da Revista Justiça & Cidadania no Youtube. O debate contou com a participação dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva e Luiz Alberto Gurgel de Faria, do Procurador-Geral da Superintendência de Seguros Privados (Susep), Igor Lourenço, e do advogado Gustavo Fleichman, representante das seguradoras.

Realizado pela Revista JC em parceria com Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar  Capitalização (CNseg), o Seminário se firma no calendário jurídico nacional pela qualificação do diálogo entre o Poder Judiciário e o Setor de Seguros. Com coordenação científica do Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, o evento conta com apoio institucional do Tribunal, assim como do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Escola Nacional da Magistratura (ENM) e da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

Origens da questão – Para introduzir o assunto, que envolve mais de 50 mil ações em tramitação no Poder Judiciário, o advogado Gustavo Fleichman apresentou um histórico do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) desde a sua criação na década de 1960. O seguro habitacional teria surgido para proteger o sistema de crédito e assim ajudar a sustentar a política pública imobiliária que nasceu junto com o hoje extinto Banco Nacional de Habitação (BNH).

A finalidade era garantir aos agentes financeiros o recebimento do valor mutuado; além de proteger os mutuários e seus herdeiros da obrigação de pagar o financiamento em determinadas situações, como nos casos de morte ou invalidez permanente dos mutuários, ou diante de danos físicos e/ou defeitos estruturais nos imóveis.

Fleichman explicou que para evitar que o SFH fosse inviabilizado pelas flutuações inflacionárias, a  diretoria do BNH decidiu criar o Fundo de Equilíbrio de Sinistralidade (FES). Com a extinção do BNH e a transferência de suas atribuições ao Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), os recursos passaram a compor o Fundo de Equalização de Sinistralidade da Apólice de Seguros do SFH (FESA), que continuou a ser a reserva técnica obrigatória dos seguros habitacionais. Por fim, em 1988, por determinação do Decreto-Lei nº 2.476, a totalidade dessa reserva técnica foi incorporada ao Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), no qual se encontra até hoje.

Fim da apólice pública – Em 2009, a Medida Provisória nº 478/2009 extinguiu a apólice pública do seguro habitacional, proibindo novas adesões, sem acabar porém com os direitos e garantias das apólices de seguros em si. Pois, até hoje, o FCVS ainda recebe os prêmios pagos pelos mutuários por contratos de financiamento ainda vigentes.

Aquela Medida Provisória perdeu sua eficácia por não ter sido apreciada pelo parlamento, mas no ano seguinte veio a MP 513/2010, convertida pelo Congresso Nacional na Lei nº 12.409/2011, que estabeleceu novo marco legal. A partir dele, o FCVS assumiu todos os direitos e obrigações do seguro habitacional do SFH, isto é, passou a oferecer cobertura direta aos contratos de financiamento habitacional averbados na extinta apólice pública.

Ainda em 2011, por meio de uma resolução, o Conselho Curador do FCVS estabeleceu que a Caixa Econômica, na qualidade de administradora do Fundo, deveria assumir a representação judicial do extinto SH/SFH, postulando imediato ingresso nas ações judiciais que vierem a ser propostas ou que já estejam em curso, independentemente das datas das proposituras ou da fase em que se encontravam. Entendimento que teria sido confirmado, segundo Gustavo Fleichman, na recente decisão do Supremo com o tema 1.011.

Divisão das competências – De acordo com o representante das seguradoras, a decisão do STF reconhece que o FCVS é um “seguro de crédito” de natureza pública, componente substancial e essencial do SFH, que assumiu todos os direitos e obrigações do SH/SFH. E que a Caixa, administradora do Fundo e guardiã das reservas técnicas” nele depositadas – únicos recursos para cobrir as indenizações pleiteadas em juízo – estaria obrigada, portanto, a participar das ações judiciais que possam representar riscos ao SH/SFH.

Fleichman explicou que pela decisão, o novo entendimento será aplicável aos processos em trâmite com ingresso após o dia 26 de novembro de 2010, ou para os que estivessem em curso naquela data sem sentença de mérito, devendo nesse caso ser feita a remessa dos autos à Justiça Federal. Nas causas que já tinham sentença de mérito, o processo será mantido na Justiça comum estadual até o exaurimento do cumprimento de sentença, sem prejuízo para a possibilidade da União ou da Caixa intervirem em defesa do FCVS, de forma espontânea ou provocada, no estágio em que se encontre, em qualquer tempo e grau de jurisdição.

Ótica do regulador – O Procurador Igor Lourenço explicou que, na visão da Susep, a participação das seguradoras no SH/SFH sempre foi vista como uma atividade acessória, de mera intermediação. O que ocorre na medida em que apesar de atuar na intermediação, no recolhimento de prêmios, na regulação dos sinistros e, inclusive, na defesa o FCVS em ações judiciais, os riscos oriundos de sinistros sempre foram assumidos pelo Fundo.

Nesse sentido, segundo ele, a Susep orienta as seguradoras a registrar em seus balanços contábeis as receitas operacionais oriundas dessas apólices como “outras receitas”, de forma a não influenciar os cálculos de reserva e a não impactar outras questões para as quais o órgão vocaciona sua supervisão.

Porém, com o aumento do volume de ações judiciais e do valor despendido pelas seguradoras, a Susep começou a se preocupar com o risco operacional no fluxo de caixa das empresas. Pois os recursos despendidos pelas seguradoras só são ressarcidos pelo FCVS após o trâmite em julgado dos processos.

Até dezembro de 2018, segundo o Procurador-Geral, as cinco principais seguradoras que estavam nessa operação do SH tinham valores a receber do FCVS em torno de R$ 2,5 bilhões, sendo que uma delas, sozinha, possuía um passivo de R$ 1,1 bilhão. Até a decisão do STF, dada a média das indenizações, a expectativa de desembolsos do Setor em função de decisões judiciais até 2025 era da ordem aproximada de R$ 20 bilhões.

Valores discrepantes – O Procurador da Susep apontou ainda a grande discrepância entre as indenizações determinadas até então pela Justiça Federal e aquelas fixadas pela Justiça Estadual. “Para se ter ideia, até março de 2019, a quantidade de ações em curso na Justiça Estadual e na Justiça Federal eram semelhantes, destoando um pouco no número de autores. Mas quando se vê o desembolso das seguradoras em uma esfera e na outra, os números chamam a atenção. Na Justiça Federal, nas 11,5 mil ações de 30,5 mil autores, foi despendido algo em torno de R$ 150 milhões com coberturas indenizatórias. Na Justiça Estadual, com 12 mil ações e 76 mil autores, foram desembolsados R$ 3,5 bilhões ­– algo em torno de 24 vezes mais”.

Por todos esses fatores, segundo Igor Lourenço, a Susep vê com bons olhos a decisão do STF, por enxergar nela “o primeiro parâmetro objetivo para o corte temporal e para a assunção da competência da Justiça Federal nos processos que discutem essa matéria, em que a Caixa Econômica tem interesse de participar para representar os interesses do FCVS”.

Primeiras balizas – O Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria falou sobre os reflexos da decisão do Supremo que já estariam ocorrendo no âmbito da 1ª Seção do Tribunal, que cuida de questões de Direito Público, e da qual faz parte. Antes, explicou que o tema já havia sido objeto de um recurso repetitivo, no âmbito da 2ª Seção, de Direito Privado. Nesse julgamento, teriam sido estabelecidos alguns parâmetros para reconhecer a legitimidade da Caixa para participar dessas lides, como os marcos temporais de 1998, quando foi permitida a apólice privada no SH, e 2009, quando a apólice pública foi extinta. Foi estabelecido ainda outro critério, de difícil demonstração, segundo o Ministro, pelo qual a Caixa deveria demonstrar que sem a sua participação na demanda haveria um comprometimento grave do FCVS.

Essas foram, de acordo com o Ministro, as primeiras balizas a reconhecer a legitimidade da Caixa para intervir nas ações, o que, consequentemente, determina a questão da competência, pois de acordo com o art. 109 da Constituição Federal, quando uma empresa pública federal atua, mesmo que como simples interessada, a matéria é da competência da Justiça Federal. Teria restado contudo, no âmbito do STJ, o julgamento do conflito de competência 140.456/RS, que debate se a matéria deve ser julgada pela 1ª Seção ou pela 2ª Seção do Tribunal.

Conflito de competência – Ao revisitar a matéria, segundo o Ministro Gurgel de Faria, o Supremo fixou de forma clara o marco temporal estabelecido pela MP de 2010, além de observar que a Caixa Econômica passa a representar o FCVS e que o Fundo responde pelos direitos e obrigações das apólices públicas.

O magistrado ressaltou que as diretrizes de uma repercussão geral têm efeito vinculante para todas as demais instâncias do Judiciário, e comentou que ele próprio, em suas decisões monocráticas, já tem aplicado o precedente do Supremo. Admitiu, porém, que outros colegas da 1ª Seção ainda não procedem da mesma forma, “mantendo o sobrestamento dos processos que discutem a competência, porque ainda não se sabe quem será o competente”.

Em sua avaliação, contudo, como no caso da apólice pública do seguro habitacional há interesse direto do FCVS, de acordo com precedente do próprio STF, a Corte Especial deverá julgar pela competência da 1ª Seção.

Difícil aplicação do repetitivo – Para o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o tema do seguro habitacional é um dos mais espinhosos que já viu em quase dez anos no Tribunal. Segundo ele, os debates no julgamento do repetitivo na 2ª Seção, mencionado pelo Ministro Gurgel de Faria, trataram do tema de maneira muito conturbada: “Os debates foram muito tumultuados, houve vários embargos de declaração e, por fim, o repetitivo que se imaginava que pudesse traçar uma linha clara de definição de competência, que é um assunto básico, (…) se tornou na prática inútil, porque era muito difícil aplicar aqueles critérios para efetivamente decidir qual era o juízo competente”.

Com isso, segundo o Ministro Cueva, os gabinetes começaram a ficar com acervos muito grandes de processos relacionados ao seguro habitacional. Ele mesmo, em seu gabinete, teria chegado a acumular mais de 400 processos dessa natureza. “Portanto, também partilho desse grande otimismo em relação ao tema 1.011, finalmente julgado pelo Supremo, que estabeleceu critérios bem claros e um marco temporal preciso para delimitar de quem é a competência e para que essas ações possam ter um desfecho”, pontuou o magistrado.

Ferramentas de mediação – O conturbado processo de julgamento do repetitivo no STJ, entretanto, não teria sido em vão. Segundo o Ministro Cueva, um resultado positivo dos conflitos de competência é que no âmbito da Corte começaram a ser desenvolvidos esforços de mediação. “As notícias que se têm desse processo são alentadoras. No início era até difícil imaginar a hipótese desse tipo de ação ser um instrumento efetivo e útil em um caso tão complexo, envolvendo tantos atores, tantas assimetrias, tantas incertezas jurídicas, mas, pelo que se sabe, graças ao talentos dos mediadores e da boa vontade das partes, parece que já há alguns bons resultados sendo colhidos”, disse o Ministro, em referência ao projeto-piloto de mediação no seguro habitacional que vem sendo desenvolvido em Pernambuco – sob a coordenação do ex-Ministro do STJ Aldir Passarinho Júnior, e da Coordenadora da Câmara de Mediação e Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, Juliana Loss.

“O que está em jogo é o erário, pois em última análise é a viúva que vai pagar essa conta. É muito dinheiro e no contexto de uma severa crise financeira, orçamentária e econômica que tende a se protrair no tempo graças à pandemia. Portanto, é fundamental que esforços de coordenação como esse que começaram com a mediação e, agora, um tipo de coordenação que se terá no futuro, que são os critérios delimitados pelo tema 1.011 da repercussão geral do Supremo”, pontuou Cueva, antes de afirmar que, em suas decisões monocráticas, já tem julgado conforme o RE 827.996/PR.

Por fim, o Ministro observou que apesar de já ter debatido esse tema inúmeras vezes, ficou “impressionado de ter em um só evento a visão muito clara do setor e a visão prudencial da Susep”. “Temos que comemorar o fato de que finalmente o Supremo decidiu da maneira mais adequada possível. (…) É preciso pôr uma pedra nesses temas, resolver essas questões, e olharmos para frente para construir um País melhor”, finalizou o magistrado.

Encerramento – O painel contou ainda com a participação especial da Superintendente Jurídica da CNseg, Glauce Carvalhal, que apresentou sua avaliação sobre o evento: “Diante do momento de incertezas que vivemos, refletimos muito se seria o caso de fazer o Seminário. Fomos convencidos que sim porque o Seguro é muito relevante para sociedade, merece toda a nossa atenção, debate, aprofundamento e diálogo. Afinal de contas, é um elemento de estabilização da economia e de paz social. Ao longo destes três dias, tratamos de temas que atingem as vidas de milhares de brasileiros. Começamos falando sobre seguros de pessoas, as incapacidades; passamos a discutir os planos de saúde, seguros de saúde, as coberturas do rol de procedimentos; e por fim, o seguro habitacional no Sistema Financeiro de Habitação. Mais uma vez agradeço ao Tribunal da Cidadania, que foi onde encontramos condições de atingir esse propósito, de dialogar com o Poder Judiciário e com a sociedade. Obrigado a todos! Até o 4º Seminário Jurídico de Seguros”.

A cobertura completa do 3º Seminário Jurídico de Seguros você vai ler na próxima edição da Revista Justiça & Cidadania.